É bem provável que Wendell Lira seja desconhecido para muitos. Os mais atentos devem recordar-se de um brasileiro que surpreendeu meio mundo, ao vencer o prémio Puskas para o melhor golo de 2015. Dois anos depois, o atleta de 28 anos virou do avesso os horizontes. Abandonou o futebol para se dedicar aos jogos de vídeo. A decisão foi explicada na primeira pessoa em pleno Football Talks, numa história inspiradora que impressionou a plateia.

Do sonho italiano à realidade brasileira

Wendell Lira discursou no primeiro dia do Football Talks. Foto: FPF

Lira não precisou de esperar muito para saborear a fama. “Comecei a ser chamado para treinar no Goiás, uma equipa que estava na Libertadores e na Série A do Brasil. Aos 17 fiz a minha estreia e pensei que estava lançado para uma carreira de sonho. Agora é que vai ser”, pensou o então extremo.

Os prémios de melhor marcador e jogador revelação num campeonato brasileiro sub-20 alargaram horizontes. Lira ficou conhecido como o “novo Robinho” e chegou a ter em mãos uma proposta do AC Milan. A história era tão fora do vulgar que até dava para desconfiar que ia acabar mal.

O Goiás achou que os italianos ofereciam pouco por aquela jovem promessa. Recusou a proposta milanesa, mas a esta hora o arrependimento deve pesar. É que, duas semanas depois, o azar bateu à porta de Wendell. O jogador sofreu uma rotura de ligamentos e ficou parado “um ano e sete meses”. Foi emprestado ao Fortaleza, até cessar o contrato com os esmeraldinos.

“Depois de sair do Goiás estive quatro meses desempregado. Já sem dinheiro e desesperado aceitei ir jogar para a Série C. Estive bem no clube e marquei muitos golos. No final da temporada tinha dez propostas para sair e voltei a pensar que ia dar tudo certo na minha carreira”, contou. Apesar de ganhar pouco dinheiro, Wendell Lira experimentou vários clubes das divisões estaduais secundárias. De resto, foi longe dos holofotes e das manchetes que passou a ser reconhecido além-fronteiras.

“Puskas? Nem sabia o que isso era”

Razão? Um golo acrobático marcado com a camisola do modesto Goianésia. Foi em março de 2015, batiam os últimos cartuchos do verão no hemisfério sul. “Estavam 342 pessoas no estádio. Era um jogo da quarta divisão brasileira. Pensei que era um bonito golo, mas apenas mais um”. Pouco ou nada serviu, na verdade. Lira tornou a ser dispensado e perdeu a expectativa de construir uma carreira à volta do futebol.

Acabou a servir ao balcão do snack-bar da mãe, que outrora lhe tinha pedido para abandonar os relvados. “Era um sucesso porque toda a gente ia lá só para me ver, afinal o meu golo se tornara famoso. Foi de tal forma que foi criada uma corrente na internet para promover o golo”, lembrou. Por uma vez na vida, a fortuna cruzou o destino de Wendell.

“Um dia recebo umas chamadas de um número anónimo na qual me dizem que eu estou nomeado para o prémio Puskas. Eu nem sabia o que isso era”, confessa. O brasileiro viajou até à Suíça em janeiro do ano passado. Arrebatou o prémio a Messi e Tévez, tendo ainda conhecido os ídolos Kaká e Cristiano Ronaldo.

Lira voltou a acreditar no futebol. Aceitou uma proposta do Vila Nova, mas a rédea era curta. “Umas semanas depois de ter estado na Suíça já estava a ser despedido outra vez. Dessa vez nem me disseram o porquê. Só me disseram que não podia entrar mais no centro de treinos e que tinha dois dias para deixar a casa que eles me tinham dado. Fiquei farto e magoado com o futebol. Foi o final do sonho para mim”, ressalvou. Exatos 200 dias depois da consagração em Zurique, Lira cessou a carreira como futebolista. Nada mais seria igual a partir daquela gala da FIFA.

Um golo para mudar a vida

À margem da gala FIFA, Lira recebeu um convite inesperado. “Eu estava muito nervoso antes de começar a gala e houve uma pessoa que me perguntou se eu queria jogar uma partida de FIFA numa consola. Eu disse que sim. Ele só falava inglês e eu não sei falar inglês. Perguntei quem ele era e disseram-me que era o campeão do Mundo de FIFA”, explica. Mal sabia o que estava para vir.

Wendell derrotou o saudita Abdulaziz Alshehri por 6-1. O feito foi mediatizado e abriu caminhos alternativos. “Uma pessoa ligou-me do Rio Grande do Sul. Dizia que queria que eu me tornasse youtuber de videojogos, aproveitando a minha fama por ter ganho o Puskas. Como já não tinha esperanças no futebol por causa das lesões, aceitei o desafio porque esse era um mundo que estava a evoluir e a movimentar cada vez mais dinheiro”, disse.

Lira assume fazer da consola a sua profissão. Realidade que, dependendo da vontade, pode ser suficiente para a subsistência. “No Brasil existem torneios diários, semanais e mensais que te dão prémios de três mil reais. Se treinares muito, facilmente consegues ter uma vida um pouco melhor do que alguém que trabalha dez horas por dia e ganha o salário mínimo”, garante.

Para o jogador, a nova caminhada “foi um presente de Deus”. Hoje tem um salário fixo, proveniente das receitas do canal WLPSKS. O prémio Puskas precipitou de forma indireta  para o sucesso. Por isso, Wendell está grato às pessoas que “não conheciam a sua história”, mas que “acabaram por contribuir para o bem da família”.

“O videojogo é bem diferente do campo”

Jogar futebol com as mãos e com os pés tem algumas semelhanças. “Uma delas é disciplina. Se você quer viver disto tem de ter uma disciplina de treino como se fosse dentro do campo”, salienta Wendell Lira. Mas há mais. “Por ser youtuber acabo por lidar com jovens. Nunca bebi, nunca fumei. Por isso tento ser um exemplo para crianças de 12 anos”, lembra o jogador profissional de videojogos. Seja como for, as diferenças entre o mundo real e a realidade virtual são gritantes.

Os videojogos já foram uma espécie de brincadeira dos fins de semana. Hoje é diferente. “Há pais e famílias que vivem disso”, destaca Lira, que confessa estar a “viver intensamente” a aventura. O brasileiro deixou de praticar desporto e abdicou das saídas à noite e dos encontros com os amigos. No entanto, alerta para as consequências: “Devo passar umas oito horas por dia sentado numa cadeira. Quando me levanto parece que estou engessado, mas não dou trabalho à minha mulher”, indica em tom de brincadeira.

A bem da proximidade com as novas tendências, Wendell espera que cada emblema brasileiro possa ter nos seus quadros um representante de FIFA. Alguém que adquira um estatuto profissional para vestir a camisola oficial do clube. Para já, importa não perder o ritmo e apanhar a carruagem para o mundial deste ano.

Artigo editado por Filipa Silva