São muitas as escolas que, ao longo dos anos, têm tentado a autorização para lecionarem um curso de Medicina. No entanto, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que é a única entidade que pode autorizar a abertura e funcionamento de licenciaturas, mestrados e doutoramentos, rejeitou até ao momento as propostas apresentadas.

A Ordem dos Médicos (OM) e a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) assumem uma posição desfavorável face à possível criação de novos cursos de Medicina, quer sejam privados, quer sejam públicos.

Os motivos fundamentais têm que ver com o excesso de médicos em Portugal que ambas as entidades dizem existir. OM e ANEM rejeitam igualmente novos cursos pelo facto de existirem, cada vez mais, “médicos indiferenciados”, ou seja, médicos sem especialidade, por falta de vagas de especialização.

Existem sete escolas médicas, atualmente, em Portugal: duas em Lisboa, duas no Porto, uma na Beira Interior, uma em Coimbra e outra no Minho. No Algarve é lecionado um Mestrado Integrado em Medicina dirigido especificamente a detentores de uma licenciatura na área das ciências da natureza ou das ciências exatas.

De acordo com a Ordem dos Médicos, com as sete faculdades, são cerca de 1.800 os estudantes que, por ano, ingressam nos cursos de Medicina. Juntam-se a estes os alunos que fizeram a formação pré-graduada no estrangeiro e que vêm realizar a especialização em Portugal. Por ano, são abertas entre 1.600 a 1.700 vagas de especialidade, um número que desde 2015 não é suficiente para responder à procura.

Porque é que a ANEM acha que se devem diminuir as vagas de Medicina

  • Portugal é o 9º país da OCDE com maior número de diplomados em Medicina por número de habitantes (13,6 por 100 mil habitantes). A média da OCDE é de 11,5 por 100 mil habitantes);
  • Portugal é o 4º país da OCDE com mais médicos. Um total de 4,3 médicos por cada 1000 habitantes, de acordo com dados da OCDE;
  • Existem, em média, cerca de 8 estudantes por tutor no ensino clínico pré-graduado, sendo que em alguns casos este número atinge o valor de 18;
  • O concurso especial de acesso ao curso de Medicina por titulares do grau de licenciado leva a um acréscimo de 15% ao número de vagas anuais do contingente geral;
  • O aumento do numerus clausus em Medicina, associado ao concurso especial, gerou um aumento em 397% do número de ingressos no curso nos últimos 20 anos, tendo sido o maior aumento da OCDE registado durante este período;
  • A capacidade formativa das Unidades de Saúde Portuguesas está, de acordo com a Ordem dos Médicos, limitada a cerca de 1500 a 1600 vagas por ano, pelo que, é insuficiente para proporcionar formação especializada a todos os potenciais candidatos. Este ano, candidataram-se 2.477 alunos.

Em 2015 foram 114 os alunos que ficaram sem especialidade. Já em 2016, o número de alunos sem especialidade aumentou para 157. Este ano, concorreram 2.477 alunos à especialidade. Quer dizer que, assumindo que as vagas se mantêm no valor do ano passado (1.700), o número de alunos sem especialidade pode chegar às centenas.

O destino daqueles que não conseguem uma vaga de especialidade é fazerem uma nova tentativa num concurso à frente ou ficarem como médicos indiferenciados.

OM e ANEM defendem, com base nestes dados, uma diminuição do número de entradas. Consideram também que Portugal revela assimetrias na distribuição médica entre regiões rurais e urbanas, havendo muitos mais médicos a trabalhar nas zonas urbanas. Uma assimetria que também é visível ao nível das especialidades escolhidas pelos futuros médicos.

Católica de Lisboa tenta pela segunda vez

A última proposta de uma universidade não pública para abrir um curso de Medicina pertence à Universidade Católica Portuguesa. A proposta tem cerca de um mês e envolve um protocolo com a Universidade de Maastricht, que pressupõe, por exemplo, que as aulas sejam totalmente lecionadas em inglês. A universidade holandesa tem uma experiência de 50 anos em termos de ensino e é referência global no ensino da Medicina. A candidatura surge com base num sonho de 30 anos, já do tempo da ex-reitora Maria da Glória Garcia e que a nova reitora, Isabel Capeloa Gil, pretende, agora, concretizar.

A candidatura da Católica de Lisboa não foi ainda entregue formalmente pelo que a única que se encontra neste momento a ser analisada na A3ES pertence à Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (CESPU) que apresentou a proposta em parceria com a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). A resposta será conhecida em maio deste ano.

Mas as tentativas para ter curso de Medicina não se ficam por aqui. A Universidade Católica Portuguesa, com esta, faz a segunda tentativa. Já a CESPU, com a pendente, é já a quinta tentativa. A Universidade Fernando Pessoa, a Universidade Lusófona e o Instituto Piaget de Viseu foram as restantes entidades não-públicas a realizar candidaturas sem sucesso.

“Não se pode ensinar Medicina em qualquer hospital”

O presidente da A3ES, Alberto Amaral, em entrevista ao JPN, explica que as rejeições às candidaturas do curso de Medicina no ensino não-público deveram-se sempre a três fatores: deficiências da parte hospitalar, deficiências do corpo docente e deficiências ao nível da investigação.

Alberto Amaral considera que ensinar Medicina está ao alcance de poucas instituições em Portugal. “Não é em qualquer hospital que se pode ensinar Medicina. Tem de ser um hospital com determinada dimensão, determinadas condições e onde existam todas as especialidades (…) Se for um hospital mais pequeno, de província, não serve”.

O antigo reitor da Universidade do Porto acrescenta que o facto dos grandes hospitais portugueses já se encontrarem todos ocupados com os alunos das universidades públicas não ajuda. Além do facto da Ordem dos Médicos se revelar contra a existência de mais cursos de Medicina em Portugal, visto que a legislação obriga a que se ouçam as ordens sempre que haja acreditações de curso em áreas para as quais elas existam.

Alberto Amaral também explicou como funciona o processo de acreditações: “Cada candidatura pressupõe a existência de um relatório especificamente enviado para a agência A3ES. Depois, quem avalia é uma Comissão de Peritos, que são, basicamente, três ou quatro pessoas especialistas na área, sendo uma dessas pessoas, obrigatoriamente, estrangeira. Essa Comissão faz um relatório a avaliar a viabilidade da candidatura, havendo, depois disso, uma deliberação do Concelho de Administração.”

A avaliação não pode demorar mais do que nove meses. Já as faculdades ou institutos politécnicos, a partir do momento em que a candidatura é validada, têm um máximo de 19 meses para colocar o curso em funcionamento.

“Mais cursos de Medicina vão diminuir o prestígio do país”

Em entrevista ao JPN, o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, apresentou vários motivos para justificar a oposição da estrutura à abertura de novos cursos de Medicina.

Falta de condições e emigração cada vez mais acentuada são os motivos evocados por Miguel Guimarães.

Em primeiro lugar, explicou que não existem condições para abrirem novas escolas de Medicina: “Não há professores em quantidade suficiente, não existem unidades de saúde que permitam o ensino prático da Medicina e as próprias escolas médicas que existem, atualmente, já estão saturadas com estudantes de Medicina, ou seja, têm mais estudantes do que deveriam ter.”

A segunda razão evocada por Miguel Guimarães tem que ver com a falta de capacidade, ao nível das unidades de saúde, para formar alunos nas diferentes especialidades.

O Bastonário da Ordem dos Médicos referiu que, sem especialidade, os estudantes perdem sete anos de vida a estudar para nada, porque “não vão ter emprego, não têm saída profissional e não vão fazer mais nada porque não têm jeito para fazer mais nada, já que quem se dedica à Medicina raramente tem jeito para fazer outra coisa”.

Também por causa dos problemas em relação à especialidade dos futuros médicos, de acordo com um inquérito feito pela Ordem dos Médicos, quase 600 médicos pediram para emigrar no ano de 2016, o que significa um aumento de 30% em relação a 2015. Este é outro motivo que leva Miguel Guimarães a considerar “um erro estar a formar médicos porque vão parar ao desemprego”.

O médico salienta que a inclusão de mais cursos de Medicina vai “diminuir a qualidade da medicina em Portugal”. Acrescenta, também, que um novo curso será “mau para o prestígio do país”, visto que Portugal é reconhecido lá fora também graças à qualidade da Medicina que tem – como é comprovado, diz a Ordem, pelo recrutamento feito por vários países de médicos portugueses.

“Isto é uma situação que deve preocupar todos os portugueses”

Para além da Ordem dos Médicos, a outra entidade que assume uma posição contra a existência de mais cursos é a ANEM.

Rita Ramalho sugere que o número de estudantes de medicina passe de 1.800 para 1.300 estudantes por ano.

A presidente, em entrevista ao JPN, explica que não existem condições para a abertura de mais cursos de Medicina, caso se tenha em conta a integração da formação pré-graduada e pós-graduada. Como tal, Rita Ramalho revela que “é com preocupação que a ANEM encara estas possibilidades”.

A aluna que se encontra a estudar Medicina na Universidade do Porto vai mais longe e salienta que “não está a haver uma responsabilidade para com os atuais médicos que este país já forma”, sobretudo, porque a ANEM tem vindo a defender a revisão das necessidades e da capacidade formativa dos estudantes, no sentido de verem a formação pós-graduada assegurada.

“Isto é uma situação que deve preocupar todos os portugueses e não só os médicos e estudantes que têm a possibilidade de ficar sem especialidade”, explica Rita Ramalho. Nesse sentido, a ANEM assume uma posição desfavorável em relação à integração de novos cursos e propõe, ainda, a redução do número de estudantes por ano, de 1.800 para 1.300 alunos. Tudo para que a formação especializada dos médicos seja garantida e salvaguardada.

“As respostas são claramente políticas”

Ao JPN, fonte de uma instituição que viu a sua candidatura rejeitada – e que preferiu não se identificar para não prejudicar uma possível candidatura no futuro – considera que não havia razões para rejeitar a proposta. “Tínhamos preparado um curso de Medicina muito completo”, garante, referindo-se ao plano de estudos, ao corpo docente e a infraestruturas como laboratórios e salas técnicas de vários tipos. A isto, a candidatura terá juntado a possibilidade de colaborações com hospitais e centros de saúde e várias instâncias de cuidados de saúde e estágios que abrangessem todas as especialidades.

Tratava-se, por isso, de “um dossiê enorme”, mas que, ainda assim, considera que reunia condições mais que suficientes para aprovar um curso de Medicina no ensino não-público.

Como tal, na sua opinião, “as respostas são claramente políticas”, ou seja, “qualquer que seja a candidatura, repete-se, sucessivamente, o processo”. Na opinião da mesma fonte, as rejeições não têm nada que ver com as garantias dadas pelas escolas, mas antes com o “facto da Ordem dos Médicos se opor, formalmente, à formação de novos cursos de medicina”.

E exemplifica com o caso em que participou: uma das razões apontadas para a rejeição da candidatura foi o facto do hospital indicado para receber os estagiários não reunir as condições necessárias. No entanto, no ano seguinte, esse mesmo hospital recebeu estagiários de faculdades públicas que ministram o curso. “Se o hospital não tinha condições para nós, não estou a ver porque é que tinha condições para as faculdades públicas que já existem”.

Contactada pelo JPN, a Universidade Católica não adianta prazos para a apresentação da candidatura. Confirma apenas a assinatura de um protocolo, há cerca de um mês, que envolve a Universidade de Maastricht e o Grupo Luz Saúde, em Cascais.

Artigo editado por Filipa Silva