A violência no futebol volta a estar na ordem do dia. Um dia depois de ter agredido um árbitro, Marco Gonçalves foi ouvido na manhã desta segunda-feira, tendo sido constituído arguido, com termo de identidade e residência. O Ministério Público aplicou a medida de coação mais leve, numa sessão que decorreu à porta fechada no Tribunal de Instrução Criminal de  Gondomar.

A decisão foi anunciada à comunicação social pelo advogado do jogador, Nelson Sousa, que se recusou a prestar mais declarações sobre o caso. Marco Gonçalves vai aguardar em liberdade pelo desenvolvimento do processo-crime.

Em causa estão os primeiros instantes do jogo entre o Sport Rio Tinto e o Canelas 2010, relativo à terceira jornada da fase de subida da Divisão de Elite da Associação de Futebol do Porto (AF Porto). Aos dois minutos, o jogador gaiense agrediu um atleta da formação da casa. José Rodrigues não teve dúvidas e mostrou vermelho direto ao avançado gaiense. A partir daí, instalou-se a confusão.

Quem é quem?

Marco Gonçalves: Integra a claque Super Dragões e é o braço-direito de Fernando Madureira. Forma dupla com “Macaco” nas bancadas e na frente de ataque do Canelas 2010. Tem 34 anos e esteve na Luz a assistir ao clássico, horas antes da agressão. Está referenciado pelas autoridades, embora não sejam conhecidos quaisquer processos contra si.

José Rodrigues: Oficial de Justiça, é um dos árbitros mais experientes nos campeonatos portugueses. Tem 43 anos e está no futebol há dezasseis. Atualmente encontra-se na categoria C2, depois de ter sido o primeiro classificado a nível nacional. Só foi impedido de subir devido às restrições de idade que constam nos regulamentos.

“Depois de ter recebido a ordem de expulsão, o jogador rodeou o árbitro e agrediu-o com violência, com uma joelhada, atirando-o ao chão”, relatou fonte do Rio Tinto em declarações à agência Lusa. O árbitro foi socorrido no local pelo INEM, antes de ser transportado para o Hospital de São João. José Rodrigues tem o nariz partido em três pontos e vai ser submetido a uma cirurgia reconstrutiva.

Já Marco abandonou o campo sob escolta policial. Foi identificado e detido pelas autoridades no estádio de Rio Tinto. Em declarações à SIC, disse que não se lembrava da agressão, embora admita essa possibilidade. “Não me lembro de o ter agredido. Foi o empurra aqui e empurra ali. Lembro-me de agarrar o árbitro, mas não sei como aconteceu aquilo. Você [jornalista] está a dizer que foi uma joelhada… talvez fosse”, referiu. Algumas horas depois, o avançado soube que estava despedido do Canelas 2010. A expulsão foi comunicada através da página oficial de Facebook do clube, pelo presidente Bruno Canastro.

Apesar do dispositivo montado – ao contrário do habitual, até os jornalistas foram revistados por agentes antes de entrarem no recinto -, deixaram de existir condições de segurança para o reatamento do encontro. A interrupção aos dois minutos gerou protestos dos adeptos, que se dirigiram em massa à bilheteira para tentar reaver o dinheiro dos ingressos.

Mais policiamento para clubes violentos

As reações das altas instâncias do futebol português não tardaram. Face à violência registada nos últimos tempos, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) já tomou medidas que previnam casos de violência contra árbitros. A partir de agora, passa a ser obrigatório o policiamento em jogos de clubes com historial de violência.

A decisão foi comunicada esta tarde por Hermínio Loureiro, após uma reunião que juntou o organismo federativo, a Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) e o presidente do Conselho de Arbitragem (CA), José Fontelas Gomes. “Fizemos um levantamento exaustivo de todas as situações de violência ocorridas distrito a distrito. Foi feita igualmente uma sensibilização para que exista uma atenção especial para os encontros mais decisivos da época desportiva em curso”, referiu o vice-presidente da FPF.

Hermínio Loureiro reforçou a “política de tolerância zero” contra a violência no futebol. Ontem, domingo, o CA garantiu que “agirá para que este e todos os atos que atentem contra o desporto e a sua essência sejam punidos de forma exemplar e dissuasora”, lê-se na nota federativa.

Entretanto, a FPF terá solicitado à AF Porto a remessa de todas as informações relativamente às incidências do jogo. Em comunicado, a entidade que rege o futebol distrital portuense garantiu que “envidará todos os esforços ao seu alcance para que os atos de violência sejam erradicados do futebol português e que o fair play não seja expressão vã”.

Contactado pelo JPN, Lúcio Miguel Correia classifica a agressão como “um ato de violência no futebol com relevância extradesportiva”. O advogado especialista em direito desportivo lembra que a “responsabilidade disciplinar é independente da criminal e/ou civil”, pelo que todas podem “correr em paralelo”.

Face ao que se passou em Rio Tinto, o docente universitário julga que há “matéria disciplinar grave e relevante para sancionar de acordo com os regulamentos de disciplina em vigor”. Se existirem mudanças nos próximos tempos, serão determinadas pela “atuação da Secção Não Profissional do conselho de Disciplina da FPF”, considera Lúcio Correia.

Situação não é virgem

Já não é a primeira vez que o Canelas 2010 enche as manchetes. A equipa está envolvida em polémica há vários meses, por alegado incitamento à violência. Repercussões mais concretas só chegaram no ano passado. Em outubro, 12 emblemas da AF Porto decidiram boicotar os jogos com a equipa onde atuam vários elementos da claque portista Super Dragões.

Estes clubes aceitaram perder por falta de comparência e pagar 750 euros por jogo, para evitar um alegado clima de intimidação por parte do clube de Vila Nova de Gaia. A medida jamais tinha ocorrido no futebol português. Contas feitas, o principal campeonato da maior associação do país ficou desvirtuado. Sem jogar, o Canelas apurou-se com bastante antecedência para a fase de subida ao Campeonato de Portugal Prio, o equivalente à terceira divisão nacional.

Apesar de tudo, a situação não é exclusiva do Canelas 2010. Muito menos da AF Porto. Segundo dados da APAF citados pelo “Jornal de Notícias”, só em 2016/17 estão contabilizados 43 casos em que árbitros (seja o principal ou os respetivos assistentes) foram agredidos durante um jogo de futebol. Também estão registadas cerca de 60 participações às autoridades policiais e quase uma dezena de incidentes de vandalismo contra os carros dos árbitros.

A violência reparte-se por todo o território nacional. De norte a sul, 13 distritos já presenciaram agressões aos donos do apito. A maioria das ocorrências verifica-se em Lisboa, sobretudo nas competições distritais e no futebol de formação – ao contrário da agressão deste domingo em Rio Tinto, que ocorreu numa competição sénior. Acima do medo, Lúcio Miguel Correia fala num “clima de suspeição”. O advogado apela à mudança de mentalidades em favor da modalidade. Afinal, reconhece, o futebol “não merece estes atos, pois tem dado muito à economia e ao país”.

Artigo editado por Filipa Silva