No último dia do Primavera Sound, a mensagem ficou clara: pode-se continuar a experimentar, o resultado (com numeros recorde) é positivo.

A tarde do último dia do Primavera Sound começou solarenga, no palco Super Bock, com Nuria Grahm, a banda de Barcelona que nunca subiu ao palco do festival com o mesmo nome, só que dito com sotaque espanhol.

Mas nem a versão de “Toxic”, de Britney Spears, dos espanhóis que rumaram a terras mais a litoral, nem as novas músicas que os portuguesas Evols apresentaram no palco NOS preparam o público para o que horas depois aconteceria no palco Super Bock. Sentados nas toalhas amarelas e brancas, com um orelha no sistema de som e outra em conversas paralelas, foram apanhados de surpresa.

É que com o fim da tarde, chegou a mulher do fim do mundo.

A mulher do fim do mundo tem 79 anos, canta sentada num trono negro e denuncia problemas antigos. O cenário, tanto o que está em palco como o do mundo sobre o qual canta, é negro, desde a imponente cadeira acima do nível do Palco Super Bock até à saia feita de algo parecido com algas escuras que desce como uma cauda até ao mar de gente que avança relvado acima.

Batom preto, vestido preto, cabelo roxo. “A carne mais barata no mercado é a carne negra”, grita Elza Soares, a quem a BBC, em 1999, chamou a “cantora brasileira do milénio”. Acima de aplausos continua a gritar “Eu sou negra, negra”.

É disso que canta. Sobre os excluídos, os pobres, a violência, a desigualdades, o preconceito, as mulheres que sofrem caladas, o sexo e o mundo que já não lhe esconde nada e que, acredita, “vai terminar num poço de merda”.

O público samba levemente, de flores na cabeça e pé descalço, mas este samba é pesado. Começa com um baixo interrompido com uma pergunta: “cadê meu celular? Eu vou ligar p’ró 180”, o número de ajuda às mulheres vitimas de violência doméstica no Brasil, um dos países com mais mortes por violência contra as mulheres.

“Mão, cheia de dedos / Dedo, cheio de unha suja / E pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamais, mané!”, brada interpretando uma mulher “brava” de Vila Verde. “Denunciem! Nada de sofrer calada, chega, mulheres! Mulher tem que gritar! Gemer só de prazer!”.

Elza Soares continua a incomodar e a falar de tópicos que, em dias de festival, pouco entram nas conversas no Parque da Cidade.

 

“Benedita”, que nasceu Benedito, é interpretada com Rubi, que faz a vez de Celso Sim, na versão em estúdio. Desta vez é a homenagem a Gisberta Salce Junior, símbolo da transfobia, que fugiu para Portugal aos 20 anos depois de uma vaga de homicídios a transexuais em São Paulo. Acabou morta num poço, por “um grupo de miúdos”, entre os 12 e os 16 anos, relembra a cantora entre lágrimas que rapidamente se tornam em mais palavras de ordem. “Para que não aconteça com outra”, continua a cantar.

Em feriado nacional, Dia de Portugal, cantou os parabéns a Portugal antes de sair do palco, numa cadeira de rodas, a acenar, não fosse ela conhecida como a “diva do Brasil”. “Volta por cima”, uma das músicas finais, mostra bem o espírito da cantora: “reconhece a queda, mas não desanima”. E se havia dúvidas que esta mulher já viveu até ao fim do mundo, ela garante: é até aí, ao fim, que ela vai cantar.

A electrónica de Metronomy não electrizou como a de Aphex Twin

Em debandada, o público dividiu-se pelos outros palcos que, a meio do concerto dos The Growlers, no palco NOS Primavera Sound, ficavam vazios. Ao pôr do sol, as atenções dividiram-se entre a apresentação do recente “City Club” e a última oportunidade para arranjar uma coroa de flores que, nesta edição, se completou com os brilhantes na cara e nas compridas barbas do público masculino.

A proposta começa animada: “pois bem, temos uma hora para enfiar estas músicas todas para vocês”, anuncia o descontraído vocalista de voz arranhada, Brooks Nielsen. E fizeram-no, com as guitarras a entoarem filmes de cowboys (se a banda sonora ficasse a cargo de uma banda indie), movimentos de dança à Pulp Fiction e energia de uma banda independente que o continua a ser, mesmo que tenha assinado recentemente com uma produtora.

O vocalista dos Growlers, Brooks Nielsen NPS/Hugo Lima

“Row”, “I’ll Be Around”, “Tuff” e a musica country “Psycho”, lançaram braços no ar, esbatidos pelo laranja do sol que brilhou durante todo o último dia do Primavera.

Dançar, aliás, foi o mote do resto da noite. Com o pop elétrico de Metronomy, o hip hop do inferno de Death Grips e o experimentalismo de Aphex Twin.

Em Metronomy, viam-se corpos a balancear ao som do baixo de “The Look” e “Love Letters”, um pop digital que não encheu o público (nem o palco) como Bon Iver, que havia atuado na noite anterior, pela mesma hora. Era possível ver o concerto de copo na mão, sem medo que virasse com encontrões típicos de uma enchente ou causados por uma vontade repentina de dançar freneticamente (que talvez só tenha aparecido durante o sucesso “The Bay”).

Ao mesmo tempo que atuavam os Japandroids no palco Super Bock, o duo de guitarra e bateria que no dia anterior tinham andado pelo Porto a gravar um novo videoclipe, os Make Up, mostravam por que é que a experiência é tida como a melhor professora. “Perplexidade” é a melhor palavra para descrever o aglomerado de pessoas que se juntava no palco, à medida que o vocalista, o excêntrico Ian Svenonius trepava plateia acima em movimentos que desafiavam a elasticidade dos fatos dourados que todos os elementos da banda envergavam.

Estava quase a chegar à meia-noite quando as mensagens de amor chegavam entre gritos de libertação e gestos exagerados de quem tem tudo sobre controlo. “Muitas bandas boas aqui”, começou por elogiar. “Mas nenhuma é como os Make Up”, atira provocando mais risos entre o público. “Essas só querem orgasmos, mas nós pensamos a longo prazo. A nove meses!”, não existissem eles desde 1995. “Let’s have a baby together!”, grita exasperado. Não fosse ele um rock ’n’ roller.

Se já era difícil escrever sobre o que é estar num concerto de Nicolas Jaar, então o que dizer do ambiente em Aphex Twin? A eletrónica do compositor irlandês é difícil de digerir, e ao vivo a coisa não fica melhor. Richard David James, seu nome original, não quer ser o centro das atenções: a sua presença em palco é ofuscada por grandes quadros que vão passando rostos reais da plateia. Ora reais ora distorcidos, ora pele ora osso, para acompanhar a música também ela torcida. Ora pele, ora osso.

A passagem de uma faixa à outra nem sempre é clara, e muitas vezes parece que estamos a ouvir o mesmo disco a tocar há horas, num estado de transe quase interminável. Poucos, ou nenhuns, fazem aquilo que Aphex Twin faz em concerto, mas isso não é sinónimo de que seja bem feito.

O NOS Primavera Sound deste ano acabou umas boas horas depois na tenda Pitchfork e com mais eletrónica na carta. Os Tycho chamaram o público para a tenda para uma viagem dançável pelo deserto. Bícep arrumou em definitivo as guitarras deste festival e tratou de colocar os resistentes a dançar. O encerramento coube a Marco Piñol.

O festival que levou 80 mil pessoas ao Parque da Cidade regressa para o ano a 7, 8 e 9 de junho.

Artigo editado por Filipa Silva