Mudar de treinador tem efeitos imprevisíveis. Se umas escolhas encaixam na perfeição, outras podem ser meros tiros no escuro. O Boavista agarrou-se este sábado à semana agitada e fez dela um manual de sobrevivência. Frente ao Benfica, entrou no fundo do poço e acabou prostrado ao céu.

Uma cambalhota no marcador (2-1) durante a etapa complementar teve duplo condão: resgatou os axadrezados da cauda da tabela e agravou a má forma encarnada. Jorge Simão entrou com o pé direito no Bessa e já refaz enredos: desde 2006 que o Boavista não dava três facadas nas águias.

Tropeçar sem cair

Horas antes, o novo timoneiro tinha prometido colorir a pele da pantera com cores idênticas ao passado. Aliás, não mexeu um milímetro em relação aos condimentos apresentados em Guimarães. Na forma e no conteúdo, o Boavista preferiu conservar linhas recuadas, colocando Idris e Gilson e suportar o raio de ação à frente da defesa.

Ao entregar o ouro ao bandido, deixou rédea solta para os criativos: Pizzi começou a afinar miras, antes de Jonas acertar no alvo. Aos oito minutos, Živković recebeu bola na esquerda, olhou para a área e serviu a cabeça de Jonas na medida exata. Os defesas limitaram-se a marcar com os olhos o avançado brasileiro, goleador neste arranque de temporada – sete remates certeiros em seis jornadas.

O Boavista reagiu. Acreditando nos desequilíbrios de Renato Santos, potenciando os raides de Kuca e valorizando os princípios do jogo direto, onde pingar bolas para a área são mera trivialidade. Numa delas Talocha libertou no coração da área Bulos, que atirou a contar em posição irregular. Com mais luta que consciência, a pantera arranhou as aspirações encarnadas. Não por muito tempo, notória era a falta de ligação entre setores.

Sem forçar muito, os lisboetas terminaram a primeira metade a controlar operações. Além do marasmo na zona intermediária, destaque inteiro para Jonas. Aos 33 anos faz meia equipa do Benfica. Referência ofensiva, explorador de entrelinhas, chame-lhe o que quiser. A movimentação em espaços curtos simboliza terror para os defesas, o pontapé mortífero costuma tratar do resto. Desta vez, o internacional dispôs de duas ocasiões para fechar o jogo antes do intervalo. Desperdiçou – com a cumplicidade de Vágner – e manteve o rasto da pantera ativado.

De cara lavada para ir à luta

Pôr David Simão em campo significou mais do que uma troca posicional. Foi assinar uma declaração de interesses renovada. O Boavista apareceu transfigurado na etapa complementar e deu outra vida ao jogo. Fábio Espinho deu o mote para o golo que teria cortesia de Renato Santos.

Tudo começa num lançamento lateral. A defesa do Benfica – que teve Jardel lesionado, Lisandro na bancada e Rúben Dias em estreia absoluta – demorou a afastar, o extremo brasileiro recuperou a bola e esquivou-se da confusão para estabelecer o empate aos 54’. Quarto tento axadrezado na Liga, o primeiro da conta pessoal de Renato Santos.

Por esta altura já Salvio reclamava espaço na clínica encarnada. Os visitados honraram um dos clássicos nacionais e lançaram-se à procura da reviravolta. Não há filosofias invencíveis, mas apreciar a bola é meio caminho andado para atingir felicidade num retângulo de relva. David Simão garantiu essa qualidade de passe, oferecendo momentos para a ofensiva boavisteira ganhar notoriedade no último terço.

Do outro lado, muitas perdas em construção. Raúl Jiménez entrou para dar ânimo a um ataque órfão dos rasgos de Jonas. Ambos tiveram chances, mas foi o Boavista a agitar o marcador (74’), misturando surpresa com aselhice. Livre frontal de Fábio Espinho e frango de Varela, a ver a bola passar entre as mãos quando tentava socar para longe. Em 30 metros, um remate frouxo virou canto do cisne.

Daí até final, Rui Vitória montou um trio de atacantes e tentou carregar de todas as maneiras e feitios. Os axadrezados souberam jogar com o relógio e voltaram a mostrar sorrisos, impondo a segunda derrota seguida ao Benfica, a primeira do campeonato. Depois da cambalhota sofrida na Champions, nova reviravolta consentida sem dó nem piedade. O Benfica saiu num coro de assobios e já vê o Sporting a cinco pontos.

“É uma estreia de sonho”

No final do jogo, Jorge Simão valorizou o triunfo da pantera, sem esquecer a empreitada deixada pelo seu antecessor. “Em dois dias, é impossível dotar uma equipa de uma ideia de jogo diferente. Esta vitória é uma estreia de sonho, mas o mérito tem de ser atribuído ao trabalho que os jogadores fizeram, ao qual tenho de associar também o nome do Miguel Leal, técnico que me antecedeu, porque está aqui muito do trabalho dele”, começou por dizer em conferência de imprensa.

Para o técnico do Boavista, a etapa complementar foi mais bem-sucedida. “[Na primeira parte] não defendemos com rigor, apesar de o Benfica não ter criado muitas situações de finalização. Fomos com demasiada sede ao pote. A segunda parte foi muito melhor, quer defensivamente, quer ofensivamente. O David Simão deu outro fôlego à equipa para gerir melhor a posse de bola e ter mais qualidade no processo ofensivo”, apontou, frisando que o triunfo “retira pressão e afasta alguma instabilidade”.

A terminar, um apelo à massa associativa do Bessa. “Foi o meu primeiro jogo. Já tinha jogado aqui como adversário. Desta vez, senti o que é a força deste estádio quando torcem por nós. Sonho com o dia em que consigamos encher este estádio com adeptos do Boavista. Isto vai ficar impossível para os adversários”, afiançou.

“Frango? É você que está a dizer!”

Já Rui Vitória lamentou a ansiedade que dominou o Benfica durante grande parte do encontro. “Entrámos fortes, convictos, a ter o controlo da partida. Fizemos um golo e tivemos ocasiões para fazer mais. Na segunda parte, um lance de bola parada e um livre acabam por alterar o cariz do jogo. A perder, a equipa acaba por funcionar com mais ansiedade e o esclarecimento acaba por ser menor”, comentou na sala de imprensa.

Dois jogos, outras tantas derrotas. A semana acabou da pior maneira possível para os encarnados, mas o treinador não deita a toalha ao chão. “Somos campeões quer nas derrotas quer nas vitórias. A revolta e o orgulho estão presentes. Estamos cá para trabalhar. Estes jogadores são feitos desta fibra. Já passámos situações difíceis e ultrapassámo-las. Não vamos enfiar a cabeça na areia. O passo seguinte é fecharmo-nos mais e estarmos mais unidos”, direcionou.

Sobre a fífia de Bruno Varela, Rui Vitória apelou ao coletivo. “Frango? É você que está a dizer! Quero que fique bem claro que não vou usar esse termo. Por uma razão muito simples: quando ganhamos, ganhamos todos. Há sempre um que empurra a bola para a baliza. Quando perdemos, perdemos todos”, concluiu.

Artigo editado por Filipa Silva