“Apesar da beleza da paisagem, dos campos de arroz, do verde omnipresente, dos templos hindus, dos macacos zangados, uma das melhores coisas que trouxe de Bali foi uma oferta do João, que me embrulhou e ofereceu uma palavra, talvez duas: Jalan significa rua em indonésio, disse-me. Também significa andar. Jalan jalan, a repetição da palavra, que muitas vezes forma o plural, significa, neste caso, passear. Passear é andar duas vezes. (…) Passear é o que fazemos para não chegar a um destino, não se mede pela distância nem pela técnica de colocar um pé à frente do outro, mas sim pelo modo como a paisagem nos comoveu ou como o voo de um pássaro nos tocou. É um pouco como a arte, tem o valor imenso de tudo aquilo que não tem valor nenhum.”

Afonso Cruz in “Jalan Jalan: Uma Leitura do Mundo”

No prefácio deste novo livro, Pedro Mota escreve que “viajar é levar a nossa solidão a passear… mas é, também, insuflar o nosso mundo com novos mundos”. Escrever é viajar?
Sim, claro, não há nada que não seja viajar. Mas claro que há diferenças substanciais entre uma viagem física e, por exemplo, uma leitura, que não deixa de ser uma viagem – e até uma metáfora da própria viagem.

São experiências diferentes. A leitura é vida real – não deixa de ser vida real: é uma experiência tão intensa quanto outra qualquer, mas todo o teor destas experiências é sempre de cariz diferente. O que eu experimento quando viajo, quando vou a outro país, é sempre diferente de quando leio. Aliás, a maior parte das minhas viagens nasceram precisamente pela necessidade de corroborar aquilo que lia e, portanto, há esse complemento: precisar quase de substanciar a leitura com a experiência no local.

Muitas das viagens foram isso mesmo: li primeiro alguma coisa sobre um país, sobre um povo, uma religião ou escritor e depois quis ir àquele local para experimentar de uma outra maneira – de uma experiência nova.

Na Enciclopédia Universal existe a explicação de um conceito através de vários fragmentos textuais. A nova obra segue essa linha?
Não, porque a Enciclopédia é totalmente ficção ou quase totalmente ficção – enfim, se calhar não existe nada que seja totalmente ficção, porque nós apoiamos-nos na realidade para podermos escrever.

Mas o “Jalan Jalan” é um livro de recordações, de experiências de viagem ou são ensaios sobre variadíssimos temas.

“Jalan Jalan: Uma Leitura do Mundo”. É uma leitura do mundo geográfico ou do próprio Homem?
É isso mesmo. É uma leitura da geografia, claro, porque também há textos de viagem, focados na literatura de viagem, na minha experiência enquanto viajante, mas também há as minhas próprias leituras, neste caso literais: os livros que li, alguns livros que me marcaram; há também poética, ou seja, como é que eu olho para a literatura, como é que eu escrevo, como é que construo uma história; há textos sobre Filosofia, com um olhar mais filosófico, mais científico e outros mais artísticos; e também me debruço sobre a arte.

É um passeio sobre vários mundos que não se cingem à geografia.

E de onde surge esta vertente da Filosofia, da arte e do existencialismo?
São maneira de olhar para o mundo, são maneira de compreender o mundo. A maior parte das vezes são complementares, não são antagónicas, não se eliminam, não são contraditórias, mas dão um complemento diferente à nossa visão, à mundivisão. Ou seja, eu, por exemplo, posso olhar para um músico a tocar, que é diferente da experiência de ouvir e é diferente de olhar para a partitura que ele está a tocar, e no entanto as três são uma descrição do que está a acontecer, daquele fenómeno, mas todas elas completamente diferentes.

E a arte é uma forma de olhar para o mundo completamente diferente da ciência, completamente diferente da religião. E elas vão-se complementando, encontrando os seus nichos, encontrando as suas maneiras de se confrontarem com o mundo e o explicarem de alguma maneira – e de certa forma de apaziguarem os nossos anseios.

“Os escritores – eu acho – aprendem também muito com a escrita por vários motivos.”

Cada vez que viaja, traz anéis consigo. É uma forma de conseguir ter o mundo na palma das mãos?
[Risos] Eu já não faço isso, mas sim, antes fazia com muita frequência: trazia anéis e às vezes as pessoas perguntam-me de onde é que são.

Normalmente nunca trago objetos, trago muito pouca coisa das viagens. Ao início nem sequer levava máquina fotográfica, era muito desprendido em relação a essas coisas todas. Mas trazia anéis porque se podem usar, são leves, não ocupam espaço e é muito importante isso para quem está a viajar ou para quem viajava como eu viajava: que em quase todas as situações andava com uma mochila ou com um saco e portanto não se podem carregar grandes coisas.

Todas as vezes que cometi esse erro, acabei por me arrepender, de alguma maneira, de o ter feito. Aliás, eu falo disso no “Jalan Jalan”, sobre, pelo menos, duas viagens em que comprei objetos que foram uma carga de trabalhos para transportar [risos]. Um foi um deus hindu, que comprei a um vendedor de fruta na Índia. Era muito frágil, porque era gesso e eu não me apercebi – era oco – e podia-se partir com muita facilidade e andei o resto da viagem com ele na mão, dentro de um saco enorme, o que não deu jeito nenhum. E foi também um garrafão de vinho que comprei no interior da Hungria para beber com os amigos e como o vinho estava dentro de um garrafão de plástico, estava sempre a entornar: andava eu de comboio e estava sempre a pingar vinho, uma desgraça.

Disse que não levava a máquina fotográfica. O livro serve para, de certo modo, fotografar esses momentos que não…
Eu escrevia muito e muitos dos textos no “Jalan Jalan” partem de notas que tomei nessa altura. Precisamente por não levar máquina fotográfica, às vezes anotava coisas para não me esquecer: coisas que poderia muito mais facilmente ter usado numa máquina.

Mas anotei várias coisas – tinha vários blocos. Também porque escrever, tal como ler, são atividades que fazemos sozinhos, mas não são atividades solitárias. Ou seja, não sentimos a solidão quando estamos a escrever ou quando estamos a ler. Quando estamos realmente imersos no livro, concentrados, não sentimos isso… E como viajava muito sozinho, passava algum tempo a ler e a escrever também.

Escreveu que “passear é o que fazemos para não chegar a um destino”. O objetivo do Afonso é levar os leitores a passear nas suas obras?
No caso de “Jalan Jalan”, acima de tudo… Não é uma história, não é uma história com três atos: princípio, meio e fim. São fragmentos. Aliás, no final de cada texto – que pode ser um pequeno ensaio -, eu tenho relações com outros textos e nós podemos passear efetivamente no livro e podemos escolher um percurso completamente diferente.

É um passeio pela leitura, pelo pensamento, pela geografia, mas que pode ser feito como bem entendemos, como quisermos.

E nos outros?
Na Enciclopédia também se pode passear, são livros que têm essas características. Mas os romances em princípio não, têm o tal “princípio, meio e fim” que se lermos de outra maneira qualquer que não seja da primeira à última página, provavelmente vamos perder alguma coisa da história, do enredo.

“Viajar é ganhar experiência”, escreveu em “Jalan Jalan”. Alguma vez o escritor ganha experiência tal como Picasso diz ter acontecido consigo?
Sim, com a escrita também: com tudo na vida. Porque isso é a tal questão circular : acabamos por fazer esse retorno ao sítio de onde partimos – é importante por vários motivos. E com a escrita também.

Os escritores – eu acho – aprendem também muito com a escrita por vários motivos. O mais básico é porque estruturam o próprio pensamento: escrever ajuda a estruturar aquilo para que não seja muito caótico depois quando transmitimos, quando o dizemos, e portanto ajuda-nos a pensar em termos do “como é que vou expôr esta ideia, este raciocínio? Como é que eu começo? Onde é que eu quero chegar?” e por aí fora.

Por outro lado, dá-nos também uma capacidade de nos conhecermos melhor, porque à medida que vamos escrevendo vamos descobrindo coisas que não sabíamos: às vezes até pulsões que não sabíamos que tínhamos, outras vezes desejos que não sabíamos que existiam… Mas também não é só isso. Quando temos uma história, normalmente elas têm antagonistas, têm heróis, obstáculos. Há medos, há uma série de frustrações que às vezes estão encarnados noutra pessoa: às vezes são personagens que são a antítese daquilo que nós achamos ser – há sempre uma ambiguidade naquilo que nós achamos que somos e aquilo que os outros acham que nós somos e por aí fora -, mas quando nós temos personagens que nós, por exemplo, detestamos e achamos que não têm nada a ver connosco, temos de os defender, na verdade: têm que ser credíveis e para serem credíveis eles não podem simplesmente ser maus, eles têm de justificar a sua maldade. Temos de racionalizar aquilo que ele faz e isso ajuda a compreender o outro e às vezes não precisam de ser maus, precisam apenas de ser diferentes de nós e defender determinadas coisas.

Eu falo, por exemplo, no “Jalan Jalan” sobre o caso de ter sido um aluno de artes e sempre valorizar a novidade, o ser original, o confronto com o desconhecido, a surpresa, o não ter medo de arriscar, sair do lugar onde estamos e procurar novas visões do mundo, etc.. E, por exemplo, no Pintor Debaixo do Lava Louças tenho uma senhora que defende exatamente o contrário e eu tive que defender exatamente o contrário – que não é normalmente a minha posição – com lógica e uma lógica que me seduza a mim também e que eu possa compreender esse lugar, ou seja, o lugar do outro. Neste caso foi uma senhora que diz: “não, o que eu gosto é do conforto, o conforto de ter o mesmo beijo todos os dias, o beijo de quem amo todos os dias, sentir-me bem” e ela termina o diálogo a dizer que uma pessoa só se sente feliz quando já não sente os sapatos nos pés. E esse conforto também é uma coisa desejável e todos nós o queremos: não gostamos de ser perturbados, por exemplo, nas rotinas. Não queremos que mudem. Apesar de gostarmos da novidade e de eu defender esse lado, a verdade é que acabo por descobrir que gosto também do outro e defendo o outro e até o devo fazer, porque é bom para mim. E, neste caso, não serve só para me conhecer a mim mas também para compreender melhor as posições dos outros, que é, neste caso, uma posição antagónica àquela que inicialmente eu teria.

E tendo essa senhora um filho com uma perspetiva totalmente diferente da dela, é difícil o autor colocar-se nos dois lados do espelho?
Às vezes é, às vezes é muito complicado. Aliás, se fosse fácil o mundo era muito mais pacífico porque… nós compreenderíamos com muito mais facilidade – compreendo o teu lado e por aí fora. Normalmente isso não acontece porque não há esse diálogo nem há essa viagem em direção ao outros, portanto nós ficamos um pouco calcificados no lugar onde estamos e somos incapazes de perceber isso de outra perspetiva.

Artigo editado por Filipa Silva