A Provedoria do Cidadão com Deficiência, criada em 2004 – aquando a presidência de Rui Rio na Câmara Municipal do Porto – foi pioneira no país e dada como extinta no final do ano 2017 pelo atual executivo.

A Câmara do Porto anunciou a 14 de dezembro do último ano que iria criar a figura do provedor do Munícipe em 2018, garantindo, na altura, que a nova provedoria refletiria sobre as questões de “todo e qualquer cidadão, de forma transversal e inclusiva”.

Na nota divulgada pelo portal de notícias do município era possível ler que “o Gabinete de Inclusão, que se encontrava no último mandato sob orientação da Provedoria do Cidadão com Deficiência, organismo que não terá continuidade no próximo ano, passa a integrar de forma efectiva o pelouro da Coesão Social, sob a direção e a coordenação do vereador Fernando Paulo”.

Lia Ferreira, arquiteta de 36 anos, que, aquando do anúncio, já tinha manifestado o desagrado em relação à extinção da provedoria, conta ao JPN como foi a experiência enquanto adjunta de João Cottim – primeiro respondável pelo serviço – e, posteriormente, enquanto Provedora.

As funções de um provedor estão já clarificadas ou, por vezes, as pessoas esperam de um provedor outro tipo de ação?
Um provedor, seja ele qual for, não tem poder vinculativo nenhum. O que a Provedoria do Cidadão com Deficiência fazia era tentar contornar isto. A Provedoria não tinha poder nem orçamento sequer. Eu procurava sempre apresentar um processo com a queixa, a instrução do processo com a solução para o problema que me tinha sido apresentado e enviava para o serviço competente. Fazia questão de acompanhar a possível resolução e tentávamos sempre apresentar soluções para contornar essa situação, já que de facto não tínhamos poder, nem equipa para fazer obras. Não tínhamos meio nenhum a não ser recomendar. Para não ficarmos apenas pelas recomendações, procurávamos reunir com os responsáveis dos serviços para encontrar soluções mas, legalmente, eu não tinha poder nenhum. Nenhum provedor tem. Algumas pessoas vinham pedir casa ou emprego. A provedoria sinalizava a pessoa consoante o previsto na lei, mas não tinha casas nem bolsas de emprego, isso era encaminhado para a entidade competente. Muitas vezes senti-me injustiçada com as críticas que, por desconhecimento, algumas pessoas me dirigiram. O nosso trabalho é um trabalho de “formiguinha”, um trabalho de bastidores.

Qual é o balanço que faz do trabalho que desenvolveu na provedoria?
O balanço só pode ser positivo. Eu fui adjunta do antigo provedor dois anos e estive como provedora durante um mandato. A provedoria teve grande projeção, conseguimos trazer para a câmara prémios nacionais e internacionais. A provedoria foi exemplo para outras câmaras que queriam tirar dúvidas ou até mesmo manifestar a vontade de criar também uma provedoria. Exemplo disso são os municípios de Torres Vedras, de Paredes ou de Vila França de Xira, que se socorriam da provedoria, tendo em conta o trabalho realizado no Porto.

O que considera ter sido feito de tal forma diferente no Porto para suscitar interesse vindo do exterior?
Conseguimos implementar projetos inovadores, como é o caso do canal “A+ nos Clérigos”, o Up Clérigos que é uma aplicação cuja ideia é estender-se ao resto da cidade. Nós tínhamos também uma envolvência na comunidade de pessoas com deficiência muito grande, trabalhávamos muito de perto com essa comunidade e tínhamos grupos de trabalho para dar voz a essas pessoas e curiosamente conseguíamos que o Instituto Nacional de Reabilitação (INR) viesse ao Porto de três em três meses para ouvir as associações, perceber do que se queixavam e tirar dúvidas. Tínhamos grupos de trabalho responsáveis pelos transportes como a Metro do Porto e os STCP, a temática Vida independente, a Santa Casa da Misericórdia. Éramos nós que convocávamos as reuniões e fazíamos as atas, tudo como forma de dar voz própria às associações, e algumas situações foram resolvidas muito rapidamente, porque as associações puderam dizer em tempo real o que estava mal e como poderia ser resolvido, e isso é muito positivo. Assim, como [desenvolvemos] trabalhos de investigação que a meu ver teriam uma aplicação prática muito positiva para as pessoas com deficiência e que conseguimos trazer e implementar na cidade.

Qual foi a mudança que mais trouxe satisfação ao longo do seu mandato?
Ver a forma como os serviços municipais passaram a reagir a estas questões. Antigamente eram temas um bocadinho estranhos e agora os próprios serviços começaram a perceber que eram questões importantes, não só para as pessoas com deficiência como para a população em geral e começaram a envolver-se nos nossos projetos e a acompanhar-nos muito de perto. Para mim isso é um ganho muito grande, porque a sensibilidade fica nos serviços assim como a consciência do que tem de ser feito.

Como define o feedback por parte de instituições e cidadãos face ao trabalho da provedoria?
Ainda hoje tenho recebido imensos e-mails e mensagens a agradecer o trabalho e a manifestar o total apoio, por isso, acho que não há melhor feedback do que as pessoas dizerem que, para elas, fez sentido. Pessoas com deficiência [elogiaram o meu trabalho] e não só , até por parte dos serviços da câmara. Para mim, não há melhor reconhecimento.

Tendo em conta o feedback positivo e a posterior extinção da provedoria, é possível dizer que o trabalho está terminado?
Acho que não. Ainda há muito que fazer, temos que ter em conta que, durante séculos as pessoas com deficiência foram ostracizadas e que certos assuntos só começaram a ser falados no final dos anos oitenta mas ainda muito a medo, e que [as pessoas portadoras de deficiência] só começaram a ser ouvidas em 2006 com a criação de nova legislação para a acessibilidade e em 2009 foi assinada a Convenção [sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência]. Portanto, temos ainda um percurso de muitos séculos para colmatar. Séculos em que isto era um “não-tema” para a sociedade.

Como vê a extinção da Provedoria?
Pessoalmente, acho que é uma grande perda para a cidade. É uma perda porque o trabalho estava a ter um bom feedback não só a nível local, mas nacional e internacional – porque a provedoria foi convidada a participar trabalhos internacionais sobre as novas normas técnicas da acessibilidade. Perder este elo de ligação entre a comunidade e as pessoas com deficiência na primeira pessoa, uma vez que a própria provedora era uma pessoa com deficiência e técnica especializada na área, porque já o era antes de assumir o cargo, só pode significar uma perda muito grande, mas só o senhor Presidente saberá o que pretende para a cidade.

Antevê um caminho para a cidadania e deficiência na cidade do Porto?
Desconheço os planos do senhor presidente para este tema, por isso, não sei se haverá ou não um caminho. Só sabendo aquilo que está preconizado para o lugar da provedoria é que poderia ter consciência se estes temas serão devidamente tratados ou não. No entanto, isto já começa mal, tendo em conta que o novo gabinete vai ser tutelado pelo pelouro de Ação Social e quem trabalha o tema da inclusão, sabe que não é um tema de ação social. É um tema transversal, que tem de estar muito acima de qualquer pelouro e ser trabalhado por vários, não podendo ser tutelado por A ou B. A provedoria, da forma como existia, dependia apenas do Presidente e não ficava limitado, trabalhando em simultâneo com todas as áreas. O gabinete que irá suceder à provedoria ficará dependente de uma área em especifico, quando todas as recomendações internacionais e tudo aquilo que está a ser feito apontam que já não há assistencialismo, isso acabou. Já não há o “coitadinho”, tem que haver uma proatividade e  uma capacidade de superação muito maior, portanto [é preciso] trabalhar as várias frentes de combate, desde o emprego, à acessibilidade propriamente dita, à questão da vida independente. Há todo um conjunto de medidas que não podem ficar restritas a uma área específica como a ação social.

Valeu a pena?
Creio que, todas as melhorias que possam haver valeram a pena, há coisas que francamente melhoraram. Há práticas que agora são tidas na cidade que antes não existiam e que sei que se vão manter. Valeram a pena todo o trabalho e todo o esforço, sem dúvida. Eu vivi para a Provedoria.

Um desejo para o futuro da cidade do Porto.
Eu só espero um futuro melhor. Que as bases que, entretanto, foram construídas possam ser fortalecidas e melhoradas, mas isso já não depende de mim.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro