Ensinar para a vida e não para os exames. É esse o objetivo do modelo de autonomia e flexibilização curricular, implementado em 226 escolas-piloto do país. O JPN foi à Escola Básica Dr. Costa Matos, em Gaia, conferir como professores, dirigentes e alunos se estão a adaptar.

A 5 de julho de 2017 saía um despacho do Ministério da Educação (ME) que dava às escolas públicas e privadas a possibilidade de implementarem o modelo de flexibilização curricular, em regime de experiência. “O objetivo é aproximar a aprendizagem à vida real, dos desafios do século XXI, e ao mundo laboral”, explicou ao JPN Cristina Félix, coordenadora do projeto na Escola Básica Dr. Costa Matos (antiga E,B 2/3 Teixeira Lopes), em Vila Nova de Gaia.

Na prática, as escolas têm um conjunto de aprendizagens essenciais e o restante currículo é gerido pelos professores, com a introdução de novas metodologias. “A partir do momento em que saiu o despacho 5908/2017 houve uma equipa de professores que, a partir do currículo base, decidiram o que iria ser feito nesta escola. Isso é uma coisa que o despacho permite: até 25% do currículo pode ser flexibilizado pela escola, das mais variadas maneiras”, explicou Cristina Félix ao JPN.

Para Jorge Ascenção, presidente da Confederação Nacional de Associações de Pais (Confap), a aprendizagem deve ser global, integrada numa interação interdisciplinar. Assim, a evolução do modelo de ensino é desejável para que “permita estimular as aprendizagens, incentive e desperte a curiosidade e o espírito de iniciativa e criatividade que as crianças têm, e que vão perdendo há medida que vão crescendo nos graus de ensino”, declarou ao JPN.

“É muito prematuro fazer uma avaliação”

Filinto Lima fala sobre a flexibilização curricular na Escola Teixeira Lopes

Filinto Lima fala sobre a flexibilização curricular na Escola Básica Dr. Costa Matos Foto: Hugo Moreira

No total, 229 escolas fazem parte do projeto – 226 em território nacional e três escolas portuguesas no estrangeiro -, segundo consta de um documento da Direção-Geral de Educação. Alguns meses depois da implementação, ainda não é possível fazer uma avaliação dos benefícios para os alunos. À conversa com o JPN, o diretor da Escola Básica Dr. Costa Matos, Filinto Lima, disse ser “muito prematuro fazer uma avaliação”.

Nesta escola o modelo entrou em vigor para duas turmas de 7º ano e uma de 5º. O processo de seleção teve em conta turmas que já tivessem trabalhado em projetos, explicou Filinto Lima. “Se estendesse a todas as turmas, acho que ia ser mau diretor. E como é que as escolhi? Escolhi turmas que, no passado, trabalhavam em projeto. Eu conhecia os diretores de turma e falei com eles. Percebi que as turmas teriam uma capacidade de avançar com este projeto. Não os escolhi pelas notas, não foi pela cor dos olhos, nada disso”, conta.

Para o presidente da Confap, Jorge Ascenção, não restam dúvidas: “acreditamos que este é o caminho possível, que pode ter sucesso, sobretudo porque o atual modelo não responde à grande maioria das crianças e jovens, nomeadamente, no que são as suas expectativas e gostos de aprendizagem”.

“Eu acho que o ensino secundário está refém do ensino superior”

O diretor do agrupamento de escolas de Vila Nova de Gaia vai mais longe e diz ao JPN que “a escola tem de se adaptar à evolução da sociedade. E, desde há muitos anos a esta parte, a escola está sempre atrás da sociedade”.

Método de avaliação

Apesar das opiniões de Jorge Ascenção e Filinto Lima serem dissonantes nalguns pontos, há a certeza da necessidade de repensar o sistema de acesso ao ensino superior. Esta certeza emerge com a implementação do projeto de flexibilização curricular. O receio é de que o sistema de avaliação não seja compatível com o projeto-piloto.

Filinto Lima afirma que até ao 9º ano, no seu entender, os modelos são compatíveis. Deixam de o ser no secundário, afirma. “Eu conheço escolas que não aderiram ao projeto por culpa deste constrangimento. O problema não é o projeto, é o acesso ao ensino superior. Eu acho que o ensino secundário está refém do ensino superior. Eu acho que o secundário é um ciclo perdido. Não é um ciclo de preparação para a vida ou para a universidade, é um ciclo de preparação para aquelas duas horas de exame”, considera.

Na opinião de Jorge Ascenção, o que está em causa é a aprendizagem e não uma nota de avaliação. O presidente da Confap expressa ao JPN o desejo de que haja a possibilidade de poder “avaliar aquilo que são as competências e aprendizagens e não exclusivamente para selecionar e segregar, que é o que faz a avaliação hoje em dia”.

A coordenadora do projeto de autonomia e flexibilização curricular na antiga Teixeira Lopes, Cristina Félix, afirma que os alunos têm realizado avaliações baseadas no dia a dia e nos pequenos trabalhos. Assim, o receio pelos exames foi manifestado à comissão de acompanhamento que garantiu que o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) tem instruções para elaborar as provas de aferição e exames em consonância com as aprendizagens essenciais.

“Se continuarem a fazer exames onde a memorização é a única coisa que importa, aí poderá haver algum problema. Mas eu prefiro que um aluno meu seja capaz de ler um texto e entendê-lo do que saiba as preposições todas de cor”, afimou a professora ao JPN.

Cristina Félix conta ao JPN como se dão as aulas ao abrigo do projeto

“É preciso que as pessoas estejam disponíveis para trabalhar, aprender e modificar práticas e não ter medo de arriscar coisas novas” Foto: Hugo Moreira

Falta mudar mentalidades

O projeto está ainda numa fase inicial e as opiniões, quanto às fragilidades, não são todas concordantes. A Fenprof já veio a público dizer que os professores estão a ser sobrecarregados com trabalho. O diretor do agrupamento de escolas Dr. Costa Matos, Filinto Lima, manifesta-se: “Isto é um projeto novo e quando há algo de novidade, naturalmente, nos primeiros tempos, poderá haver um acréscimo de trabalho, que está previsto na componente letiva dos professores”.

Filinto Lima acrescenta que “os sindicatos não podem complicar a vida às escolas e a quem quer fazer mais e melhor pela educação, estando sempre do lado do contra”.

Cristina Félix, por seu turno, considera que o ME devia dar mais tempo aos docentes: “como professores, sentimos que não temos tempo para trabalhar em conjunto [com os restantes professores do projeto, em cada turma]. Acho que a tutela teria que ter isso em conta. É preciso tempo de trabalho colaborativo. No meu caso, as metodologias não mudaram muito porque eu já fazia muito do que faço hoje. Mas para os colegas que têm cinco ou seis turmas, incluindo turmas do projeto, exige algum esforço”.

Para o diretor, o maior constrangimento é a mudança: “As fragilidades deste projeto são a novidade, que é uma fragilidade natural, e convencer o corpo docente. Há tantos anos que damos este tipo de aulas, este tipo de matéria, os conteúdos quase que não evoluem e aqui mudamos um bocadinho este paradigma”.

Pais e Professores

Para levar este projeto a cabo não tem havido alterações substanciais. As disciplinas são lecioandas de forma mais interativa, com trabalhos de grupo, debates, visitas de estudo e atividades de contacto com a realidade. As aulas expositivas dão lugar à descoberta por parte dos alunos.

“No fundo, os conteúdos científicos são os mesmos. A maneira de abordar os conteúdos é que é mais inovadora. Nem todas as pessoas estão disponíveis ou sabedoras para o fazer, até porque a nossa classe está envelhecida e há pessoas que já não têm energias para estarem a mudar radicalmente as suas práticas”, explicou Cristina Félix.

Para estimular a criatividade e desafiar os alunos a superarem-se, também os professores precisam de repensar a forma como lecionam. Para Jorge Ascenção, presidente da Confap, “os professores estão preparados. É uma questão de trabalhar mais em equipa, haver mais comunicação, haver uma aprendizagem mais interativa”.

Filinto Lima diz que “os professores estão motivados. O que lhes falta é alguma formação, nomeadamente na área das novas tecnologias, porque os alunos estão muito à frente nessa matéria”.

Já os pais têm sido aliados neste processo e não um obstáculo. Filinto Lima falou ao JPN da sua experiência e afirmou que os pais do seu agrupamento se mostraram entusiasmados: “Eu tinha receio que os pais fossem um constrangimento. Mas não foram, nem estão a ser neste momento”.

Jorge Ascenção ressalva o receio dos pais quanto ao método de avaliação, mas afirma que essas dúvidas serão sanadas no decorrer do projeto e que “os pais percebem que os meninos aprendem melhor, com mais entusiasmo”.

Esta posição é corroborada pelos alunos ouvidos pelo JPN naquela escola, que dizem sentir-se mais motivadas e curiosas pela aprendizagem nos moldes do projeto. “Eu queria continuar”, diz Sara, de 11 anos. “Sim, mas não sei se vai ser possível”, completa Ana, de 12. “Mas nós estamos a gostar”, sublinha a segunda.

Disciplinas como Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e Cidadania e Desenvolvimento, integram o projeto desde o 5º ano de ensino básico o que é considerado uma mais-valia.

Alunos de 5º ano numa aula de português ao abrigo do projeto de Flexibilização Curricular

Alunos de 5º ano numa aula de português ao abrigo do projeto de Flexibilização Curricular Foto: Hugo Moreira

Futuro do Projeto

O futuro deste projeto é ainda incerto. Há avanços e recuos no que toca ao alargamento às restantes turmas. No entanto, a professora Cristina Félix afirma que “o ministério já percebeu que não é possível generalizar já”.

Filinto Lima disse ao JPN que concorda com a não imposição do projeto em todas as escolas no próximo ano. Para o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep), a solução passa por dar autonomia: “se se impuser, eu acho que vai ser má política”.

Cristina Félix concorda e acrescenta que “um projeto não se pode avaliar antes de acabar um ano”. “Eu acho que um ano não é suficiente para avaliar a eficácia, e neste momento nem um ano tem [a flexibilização curricular]. Seria demasiado cedo para decidir se é para avançar para o próximo ano”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva

Artigo corrigido às 09h50 de 12 de março. A antiga E,B 2/3 Teixeira Lopes é hoje Escola Básica Dr. Costa Matos, parte do Agrupamento com o mesmo nome, e não Dr. Costa Barros, como inicialmente se referiu no artigo.