“Quando era pequeno, achavam que eu ia ser pintor, porque desenhava muito bem o Pato Donald. Mas as palavras acabaram por me vencer”. Foi assim que Valter Hugo Mãe se apresentou perante os leitores da livraria Lello: um escritor imprudentemente poético, que acabou vencido, com glória, pela escrita.

Trata-se de um encontro, dos que se conseguem por intermédio dos livros. A Lello está cheia para homenagear o escritor do mês em que se celebra o Dia Mundial da Poesia. Um a um, os aficionados leem os trechos que preferem, entre os muitos livros de poesia, romances e contos infantis do autor. Tratam as palavras de Valter Hugo Mãe com familiaridade, depois de o escritor ter feito delas a sua casa.

Ao JPN, o autor de “O Filho de Mil Homens” confessou a dualidade entre querer comunicar através dos livros e chegar aos outros apenas através deles.

É mesmo possível ser-se imprudentemente poético?

Sim! E involuntariamente, inclusive. Acho que não se consegue falsear essa pulsão poética e essa imprudência é algo mais forte do que nós e que nos define, sem que mesmo comecemos por entendê-lo. Talvez nunca o venhamos a entender por completo.

Há qualquer coisa na vontade de criar, há qualquer coisa na vontade de escrever, na vontade do verso que se vai deixar inexplicável a vida inteira. O que talvez fique cada vez mais claro é o quanto é inelutável, o quanto é melhor rendermo-nos de uma vez por todas.

É alienar-se da realidade ou é exaltá-la?

Pode ser um pouco de tudo. Talvez comece por ser uma tentativa de fazer o mundo que queremos, mais do que aceitar o mundo como ele é.

Quem cria algo vive nessa expectativa, tem essa ansiedade de trazer o mundo para mais perto do que é o seu sonho. É uma forma de não estar conformado, de não estar satisfeito.Quem escreve, ou quem pinta, não está satisfeito.

“A vida é, toda ela, um encontro com o outro. Mas a escrita é uma tentativa de fazer com que esse encontro seja consequente e inequívoco”

E, se o paraíso são os outros, para quê escrever?

No meu caso, é imperioso escrever porque talvez a escrita seja a forma mais clara que eu tenho de me relacionar com os outros. Talvez seja o meu método de precisão, de rigor nesse trato subjetivo com o outro.

A vida é, toda ela, um encontro com o outro. Mas a escrita é uma tentativa de fazer com que esse encontro seja consequente e inequívoco.

A poesia, ou, por outra, as palavras são uma das melhores coisas que podemos partilhar com os outros?

As palavras poderão fazer parte do património mais importante, mais precioso da nossa vida. E, eventualmente, por mais objetos que acumulemos, talvez aquilo que mais nos marcará internamente e para toda a vida será aquilo que ouvimos dizer ou aquilo que nos disseram.

As palavras são, de alguma forma, atrapalhadas pelo uso do quotidiano ou pelo uso pragmático, mas, por mais que as gastemos, há instantes da vida em que as palavras se tornam fulcrais e essas nós nunca mais esquecemos. Há nas frases, nas expressões dos nossos pais, das pessoas que amamos, de um amigo ou de alguma pessoa que nos inspira através de um livro, da televisão, de uma canção, qualquer coisa que se inscreve na nossa identidade e essa inscrição é feita de palavras. Se nós não tivermos uma palavra para o dizer é como se a inscrição fosse confusa, é como se, ainda que existisse em nós essa inscrição, ela pudesse ser mais abstrata e menos passível de ser usada.

Quando temos uma palavra para designar alguma coisa, quando alguma palavra sobra, somos mais mais detentores, sentimo-nos na posse de alguma coisa.

“[As palavras], com todas as suas limitações, (…) são a amplitude mais absoluta do que consigo e, por isso, ainda que elas não me ofereçam o infinito, oferecem-me o maior tamanho da minha identidade”

Sempre teve esta familiaridade com as palavras? De onde é que ela vem?

Desde muito cedo que as palavras se tornaram as minhas companhias principais, talvez por faltar muita coisa ou por eu sentir que me faltava gente, uma companhia perante a qual eu me sentiria mais normal, mais entendido. As palavras desde cedo ocuparam esse vazio.

Eu acho que elas, com todas as suas limitações, que, no fundo, começam por ser as minhas, são a amplitude mais absoluta do que consigo e, por isso, ainda que elas não me ofereçam o infinito, oferecem-me o maior tamanho da minha identidade.

Tem consciência de que ler os seus livros se tem tornado uma tendência entre os jovens? Isso é importante para si?

É. Apercebo-me que há muita gente nova a ler o que eu escrevo, muitos universitários, por exemplo, e isso é profundamente gratificante. No meu percurso – eu estou com quarenta e seis anos -, o meu tempo de juventude é fundamental para a pessoa que eu sou. O intervalo de tempo a partir dos meus dezassete, dezoito anos até aos meus vinte e quatro anos talvez tenha sido a minha grande oficina, quando eu mais escrevi, quando eu mais li e quando todos os meus sonhos se evidenciaram duma forma clara.

Quando eu encontro leitores mais novos, eu sinto-os dentro desta moldura ou penso nesta que foi uma moldura na minha vida, uma moldura de tempo muito definida. E penso no quanto eu teria gostado de encontrar algum autor que eu lesse. A primeira vez que eu conheci um poeta foi depois de já ter publicado, não conheci escritores antes e vivia fascinado por eles e pelos livros.

“Sou muito curioso em relação aos mais novos, porque eles trazem um inusitado de que nós, às vezes, como mais velhos e mais viciados, já não somos capazes”

O que é que lia? Lembra-se?

Eu lia muito Herberto Helder, antes ainda de o conseguir entender. Lia Al Berto, era muito fascinado pela poesia dele. Luís Miguel Nava, Isabel de Sá, apesar de ser difícil, na altura, encontrar as coisas que ela escrevia. Gosto muito da poesia dela.

Lia Fernando Pessoa, mas lia, sobretudo, Kafka. Tenho uma admiração profunda por Kafka e sinto que ele me marcou muito e que me inspirou muito para aquilo que eu faço hoje.

Eu tenho uma certa nostalgia dessa descoberta, desse tempo em que os autores eram, de alguma forma, todos novos para mim. O assombro de encontrar os seus universos e de descodificar os seus mundos é algo que eu nunca vou esquecer. Isso acontece muito no contexto universitário ou já próximo da universidade.

Sou muito curioso em relação aos mais novos, porque eles trazem um inusitado de que nós, às vezes, como mais velhos e mais viciados, já não somos capazes.

Podemos até ter à nossa espera o nosso melhor livro aos setenta anos, mas a minha identidade literária está mais ou menos definida, está mais ou menos a descoberto.

Quando encontro autores novos, que se estão a estrear ou que ainda não estrearam como editados, a minha curiosidade é sempre essa: a de saber que tipo de equação eles trazem, porque cada um de nós acaba por ser uma equação única.

Eu fui editor durante vários anos, publiquei muitos estreantes e guardo sempre essa curiosidade. Adoraria poder perceber quem vai ser brilhante daqui a dez, vinte, trinta anos. Tenho muita curiosidade por saber qual vai ser a literatura do futuro.

“Quando escrevo, talvez me procure a mim. Quando leio, estou permanentemente a encontrar o outro e a encontrar-me”

A leitura e a escrita dão-lhe coisas diferentes? O que busca em cada uma delas?

Devo dizer que sou um péssimo leitor, no sentido em que eu estrago os livros com o que escrevo. Quando começo a ler, muitas vezes, os livros suscitam-me o meu próprio mundo. Por isso, a cada página, paro para tomar notas para coisas minhas ou penso em coisas minhas ou, às vezes, paro de ler porque quero escrever.

Sou um leitor muito desarrumado e o que me prende mais acaba por ser do universo da poesia ou, sobretudo, do ensaio. No ensaio o que eu procuro é inevitavelmente a aprendizagem, uma espécie de educação contínua que não deve parar, que não tem por que parar. De facto, há autores e pensadores incríveis que me inspiram e me motivam muito.

Quando escrevo, talvez me procure a mim. Quando leio, estou permanentemente a encontrar o outro e a encontrar-me.

Tem uma escrita muito distintiva. É fácil ler tanto e ser tão inspirado pelo que os outros escrevem sem ganhar vícios de escrita?

Eu julgo que assim paulatinamente, lentamente, as coisas vão criando um sentido muito único para mim e vão-se afundando na minha identidade ao ponto de não poderem ser de outras pessoas.

No início, há um contágio enorme, há uma tentativa de aproximação, há um deslumbre pelos autores que vamos descobrindo e que imperam sobre nós de uma forma ofuscante.

Mas, depois, eu diria que, numa busca até obstinada, há qualquer coisa que parece finalmente radicar mais em nós e que já não é nada de inspiração, mas que é uma súmula de tantas coisas que já é uma identidade. Isso leva muito tempo, eventualmente alguns autores poderão chegar lá mais depressa… Tem que ver com o processo de maturação de cada um. Mas passa por muitas leituras, passa por muitos afastamentos, por perdermos algum fascínio e conseguirmos encontrar outras soluções.

“Ser reconhecido por ele [Saramago] é como se o amador passasse a ser a coisa amada. Passei a vida toda amando-o e, depois, fui um pouco amado por ele também”

O que é que os prémios acrescentam? Ou as vendas? Ou até ter José Saramago a dizer maravilhas sobre a sua escrita?

Não podemos ter um prémio como objetivo, nunca. Nem nenhum livro deve ser escrito especificamente para um leitor, tem de ser escrito por nós, por uma necessidade impossível de conter e, às vezes, até impossível de explicar.

Mas, quando esse reconhecimento acontece, é muito gratificante, porque há qualquer coisa no ofício do escritor que propende para a solidão, propende para uma subjetividade alienante, assozinhadora. Vamo-nos assozinhando e o prémio é uma espécie de convite à companhia. É uma prova de companhia e de que, do lado de lá da nossa solidão, há um diálogo à espera. É uma espécie de identificação, de reconhecimento dos pares.

Os prémios que ganhei deixaram-me uma felicidade muito honesta que não teria por que esconder, sobretudo porque eles significam uma espécie de acolhimento.

Ter a sorte, por exemplo, de ser acolhido como fui por José Saramago, acolhido, elogiado, lido por ele, que admirei tanto e que me provocou tantas sensações, foi como conquistar um amigo muito único, muito precioso. Ser reconhecido por ele é como se o amador passasse a ser a coisa amada. Passei a vida toda amando-o e, depois, fui um pouco amado por ele também. Há uma correspondência nessas paixões que é profundamente recompensadora.

Eu sei que isto pode ser como perguntar a um pai se tem um filho preferido, mas, de entre os seus livros, elegeria algum?

Todos eles marcam instantes da minha vida. Eu não consigo abdicar de um livro, porque isso seria como abdicar de anos da minha vida. Eles influem na minha biografia de uma forma muito clara.

Acompanham a sua pulsação de vida, no fundo…

Sim, prendem-se com a minha aprendizagem, com a minha relação com o mundo e com as pessoas e, por isso, todos eles representam um tempo e todos eles me representam, a mim e às pessoas que estão na minha vida.

Mas, de uma forma muito racional, e porque são os mais recentes, por isso, talvez estejam mais próximos de quem eu sou hoje, aconselharia os romances “A Desumanização” e “Homens imprudentemente poéticos”. São os que eu talvez sugerisse para lerem, se ainda não leram nada e ainda não conhecem o meu trabalho.

“No dia após a minha morte, os meus livros estarão aí ainda e, de alguma forma, superam-me”

Há personagens que ainda mexem consigo?

Sim! O Baltazar Serapião, por ser um estafermo. A Maria da Graça, por ser uma mulher admirável, com força, uma feminista livre. O senhor António Silva, d’ “a máquina de fazer espanhóis”, por me ensinar a perder a angústia perante a morte. O Crisóstomo, por ser a figura mais esplendorosa da história do mundo. A Halldor, do livro “A Desumanização”, por ter a coragem de se libertar do jugo masculino. E a menina Matsu, em “Homens imprudentemente poéticos”, por conseguir ver na cegueira.

 Sente menos medo da morte por ser escritor?

Talvez, e acho que usei muito os livros para o conseguir. Acho que, eventualmente, muito do que escrevi foi para enganar a morte, para fazer com que alguma coisa a vença, para que alguma coisa consiga estar no dia seguinte à disposição das pessoas.

Se as pessoas, depois, dispõem ou não dos meus livros, isso é outra coisa. Mas, no dia após a minha morte, os meus livros estarão aí ainda e, de alguma forma, superam-me.

Como tantos livros me fizeram companhia – e tantos autores mortos me fizeram companhia e importam na minha vida, como se fossem pessoas vivas – talvez os meus livros possam ser uma companhia e importar para alguém, ainda que eu esteja morto.

“Às vezes, tenho inveja dos livros, porque eles entram na casa das pessoas, entram na intimidade delas e são eles, na verdade, que estabelecem a relação”

Não tem medo de que o conheçam unicamente através dos livros?

Sim. Os livros superam-me, eu acho que eles são melhores do que eu. Mas tenho sobretudo pena de não poder encontrar as melhores pessoas que os livros encontram. As melhores pessoas que os meus livros encontram deviam ser obrigadas a encontrar-me a mim também.

Às vezes, tenho inveja dos livros, porque eles entram na casa das pessoas, entram na intimidade delas e são eles, na verdade, que estabelecem a relação. São os livros, de facto, que descobrem as pessoas mais incríveis. Eu, muitas das vezes, só posso imaginar isso.

Mas esse mistério também é atraente…

Esse mistério é atraente.

Artigo editado por Sara Beatriz Monteiro