Quando, em 2016, os Panama Papers invadiram as manchetes dos jornais de todo o mundo, a discussão em torno dos paraísos fiscais ganhou força no domínio público.

Em Portugal, as comissões parlamentares de inquérito ao Banco Português de Negócios e ao Banco Espírito Santo também evidenciaram o uso de offshores para ocultar informação e criar empresas paralelas.

Em “Os offshores do nosso quotidiano”, Carlos Pimenta explicou que um offshore é uma jurisdição que tem um número elevado de instituições financeiras envolvidas em negócios com não-residentes. “Na Economia significa ‘zona financeira que não está sujeita à legislação fiscal do país de que faz parte’ ou ‘zona franca fiscal'”, enfatizou.

Por todo o mundo, têm surgido casos de fuga ao fisco e de aproveitamento de leis fiscais “atrativas” para as grandes fortunas que se esquivam aos impostos.

Nesse sentido, Carlos Pimenta propôs-se falar em livro sobre “Os offshores do nosso quotidiano” [ publicado pela Almedina], porque acredita que a realidade fiscal à escala mundial é algo que afeta o cidadão comum e que todos devem estar informados.

Escreveu este livro porque acredita que as pessoas estão mal informadas acerca dos offshores?

Tenho a certeza de que as pessoas estão mal informadas. Revoltam-se quando ouvem falar em Panama PapersParadise Papers e Luxleaks, mas, depois, esquecem rapidamente essas situações. Todos os órgãos de informação deixam de referir esses problemas…

Aliás, a forma como este livro surgiu resulta exatamente disso. Foi num grupo de trabalho da Universidade do Porto. Começámos a conversar sobre quais os problemas importantes e surgiu a questão dos offshores como um aspeto que as pessoas não conheciam ou do qual não sabiam pormenores. Ouvem falar naqueles escândalos, mas nada mais do que isso. Essa é a razão fundamental.

O que é que as pessoas não sabem sobre offshores?

Como surgem, por exemplo… As perguntas que estão no livro resultam disso. Colocaram-me questões acerca do que não sabiam.

Portanto, têm dúvidas sobre como surgiram, por que surgiram, quais são as diferenças entre eles, quais são os impactos que têm… São assuntos que normalmente não são considerados nos órgãos de informação nem no ensino académico. Nem no curso de Economia, nem no curso de Direito, os alunos nunca estudam especificamente casos de fraude. Aliás, há uma tese de doutoramento no Texas, que já tem alguns anos, que mostra que, também nos Estados Unidos, é assim.

As profissões que vão lidar de perto com a fraude, que são, essencialmente, gestores, economistas, juristas e os criminólogos, não estudam especificamente a fraude. Os criminólogos dão uma grande importância ao crime de rua e esquecem completamente a questão da fraude. O Direito também não tem nenhuma cadeira especificamente sobre as fraudes financeiras e Economia tem apenas algumas referências nas cadeiras de auditoria. Por isso, as pessoas vão para o mercado de trabalho sem saberem essas coisas.

Com este tipo de ignorância logo na formação das pessoas que vão lidar com o problema, é natural que haja muita coisa que não se saiba.

“Os nomes que surgem aquando dos Paradise Papers são muito esporádicos. (…) os órgãos de comunicação procuram aqueles nomes sonantes e ficamos por aí”

Acredita que em Portugal há casos que têm sido encobertos?

Mais do que isso; tenho a certeza absoluta. Aliás, basta ler o livro do [António José] Vilela, com o título “Apanhados”,da editora Manuscritoem que ele se foca nos grandes processos portugueses, e aquilo é só offshores por todos os lados. Para fuga ao fisco, para branqueamento de capitais… Isso é um aspeto mais que evidente, existe em Portugal também.

Os nomes que surgem aquando dos Paradise Papers são muito esporádicos. Primeiro, porque são muitos os documentos para analisar e ainda há poucos trabalhos académicos de análise sistemática e matemática daquelas informações. Segundo, porque os órgãos de comunicação procuram aqueles nomes sonantes e ficamos por aí. Nunca aprofundamos muito essas questões.

Mas não há dúvida nenhuma de que há muitos casos e, quer as autoridades portuguesas, quer os jornalistas que têm feito esse trabalho de investigação sabem perfeitamente isso e já têm detetado muitos casos.

Têm falhado ou sofrem pressões para não revelar?

Acho que, às vezes, não é uma questão de pressões, mas de falta de informação, da forma como as notícias são transmitidas.

Quando há milhares de documentos, é difícil recolher informações. Se quisermos fazer um trabalho académico, científico sobre o problema, provavelmente demoramos entre um a dois anos a tirar conclusões.

Como os órgãos de comunicação se vêm obrigados a dar logo essa informação, pegam naquilo que é transmitido e veiculado.

No que toca aos processos, a situação é ligeiramente diferente. No livro que referi, o “Apanhados”, vê-se claramente que há muitos processos que são interrompidos quando o acusado ou arguido aceita fazer o pagamento ao Estado daquilo que deve. Com o pagamento ao Estado, resolve-se o problema de fraude fiscal, resolve-se o problema de branqueamento de capitais e de fraudes de outros tipos, e o processo é arquivado.

Mas aí não é uma questão de pressão. Se quisermos, durante algum tempo, as necessidades urgentes de dinheiro fresco no Estado levaram a outro tipo de atuação que, de facto, não é o melhor. Aliás, os tribunais opuseram-se a esse tipo de atuação do Ministério Público.

“Quando é preso alguém importante, aparece logo uma série de pessoas a dizer ‘mas ele foi muito benéfico, deu bonificações aos bombeiros’, ‘é um benemérito na terra’…”

Acredita que a fraude e o crime de rua são equiparáveis?

Depende. Quando falo em crime de rua, estou a falar de assalto à mão armada, do assalto às casas, etc. Se quisermos… O crime de rua é mais frequente e é mais sensível para as populações, já que tem que ver com a segurança.

Em termos de impactos económicos e sociais, mesmo na nossa vida quotidiana, está mais que provado que a fraude é menos frequente mas atinge valores e repercussões sobre as empresas, muito maiores.

Quando há uma fraude fiscal, somos todos nós a pagar. Quando há uma fraude como no Banco Espírito Santo somos todos nós a pagar o banco. Portanto, as repercussões que isto tem sobre a vida da generalidade das pessoas e outros impactos que tem levam a que a fraude económico-financeira seja, sobretudo a partir dos anos 80 até hoje, o crime mais importante. Crime, entre aspas; muitas vezes, nem é crime, é feito legalmente, porque há circuitos para isso.

Tem uma aparência mais lícita do que os outros crimes…

Tem uma aparência mais lícita, e depois há um outro aspeto: é quem o comete. Nós continuamos a ver o criminoso como aquele indivíduo que vem nos livros do Pato Donald e dos Irmãos Metralha.

E a realidade, hoje, é muito diferente. Se calhar, é o indivíduo com quem nós conversamos todos os dias, ou é o indivíduo que, no fim da missa, tem muita gente à sua volta, porque é alguém muito respeitável. Muitas vezes, é o grande líder de grandes fraudes e até do crime organizado. É óbvio que esta aproximação pessoal faz com que as pessoas se tornem mais renitentes a aceitar ver a situação da mesma forma criminosa.

Quando é preso alguém importante, aparece logo uma série de pessoas a dizer “mas ele foi muito benéfico, deu bonificações aos bombeiros”, “é um benemérito na terra”… Esta face aparente da realidade encobre outra muito mais perigosa.

” Quem permitiu tantos acordos secretos é hoje Presidente da União Europeia. Por isso, fica-se com bastante desconfiança de que não haja aqui ligações muito fortes entre o setor político e o setor económico”

Na altura em que os Panama Papers foram divulgados, alguns dados apontaram para que a guerra na Síria estivesse a ser financiada, em grande parte, por uma cadeia de offshores. Acredita que poderia evitar-se bastantes conflitos mundiais se o problema dos offshores fosse resolvido?

Obviamente há interpenetrações. Em relação ao Estado Islâmico, por exemplo, sabemos isso. A criação do chamado Estado Islâmico tem permitido um contrabando de petróleo em grande escala, por isso, os preços do petróleo têm sido muito influenciados.

Normalmente, quando há conflitos militares, há tentativas de aproveitamento da parte do crime organizado, que tem grande facilidade de adaptação. Depois, o crime organizado vai fazer branqueamento de capitais nos offshores e depois utilizar em iniciativas legais. Mas não consigo ter uma visão muito geral, teria de analisar caso a caso.

Segundo a Oxfam, é no espaço europeu que estão dois terços da verba ocultada. O que fazem os países europeus para contrariar esta dinâmica?

As estruturas de offshore na Europa continuam intocáveis. A Suíça, embora fortemente pressionada pelos Estados Unidos no sentido de prestar algumas informações, continua a ter um cerrado sigilo.

Sempre que há um pedido de informação relativo a uma conta bancária das polícias de qualquer parte do mundo, os bancos transmitem a mensagem a quem é proprietário da conta. Com as demoras nas respostas, quando a resposta é dada, grande parte desse dinheiro já se dispersou.

O Reino Unido continua a ter, na sua velha tradição, uma autonomia extremamente grande do sistema financeiro de Londres, que, depois, faz uma série de ramificações e tem uma lei que permite exatamente isso.

Noutros casos, no Luxemburgo, por exemplo, não há legislação no sentido de se facilitar o pagamento de impostos, mas há acordos secretos que o permitem. Quem permitiu tantos acordos secretos é hoje Presidente da União Europeia. Por isso, fica-se com bastante desconfiança de que não haja aqui ligações muito fortes entre o setor político e o setor económico.

“O facto de ser a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] o principal responsável pela fraude fiscal já é uma forma de fugir ao problema”

Como acha que deveria mudar a lei no espaço internacional? 

Isso é um problema muito complicado. Em primeiro lugar, o crime económico-financeiro, mais concretamente os offshores, deveria ser tratado ao nível da ONU [Organização das Nações Unidas] e não ao nível de outro tipo de organizações.

O facto de ser a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] o principal responsável pela fraude fiscal já é uma forma de fugir ao problema. Primeiramente, porque a OCDE é uma organização dos países desenvolvidos que tem, no seu seio, e que é comandada por alguns dos países que são líderes nesse processo de offshores. Nunca o feitiço se virou contra o feiticeiro dessa forma…

É um problema mundial, é um problema que afeta todos os países e devia ser tratado ao nível da ONU, que tem uma estrutura de peritos fiscais que tratam essa questão, mas que tem sido completamente esvaziada. Este é o primeiro aspeto importante.

A segunda questão é: a solução para os offshores passa por decisões, quer a nível nacional, quer a nível internacional e a nível intermédio, digamos assim. Portanto, é difícil conjugar todos esses esforços – daí, mais uma vez, a importância da ONU. Era importante que, no imediato, cada um dos países procurasse fazer a análise aos seus processos, considerar que não são exceção no que toca aos offshores e acabarem com os seus.

Claro que, por exemplo, acabar com os offshores na Suíça é um trabalho insano, porque a Suíça tem uma tradição muito grande de sigilo bancário. Mas, aqui, em Portugal, era fundamental que a lei que identifica quais os países são offshores fosse modificada, porque é uma lei em que todos os grandes offshores estão de fora. Só as Ilhas Caimão, que aparecem em décimo quinto lugar, e poucos outros países são um destaque relevante dessa lista. Deve haver uma atuação mais forte em relação a isso.

Eu creio que é possível combater os offshores e o objetivo do seu fim deve ser fixado. Sabemos que é um trabalho difícil que exige vários níveis de intervenção e, nesse aspeto, sejamos o mais operacionais possível. Só com pressão pública é possível fazer isso.

“Nós temos ideia de que somos um país de brandos costumes, de que somos boas pessoas e vamos sendo iludidos com um conjunto de ideias que nos foram passadas ao longo dos séculos”

Haverá muitos interessados em manter as leis como estão? De uma forma mais holística, quem está a legitimar e quem está a lucrar?

Quem lucra é quem usa os offshores; são uma série de indivíduos que procura não pagar impostos. Neste conjunto de indivíduos, podemos incluir grandes empresas e donos de grandes fortunas. São eles que estão a ganhar, em termos de fraude fiscal.

Depois, há os que estão a ganhar pela possibilidade de utilizar os offshores para lavar o dinheiro da droga, do tráfico de seres humanos, de órgãos e outras atividades de crime organizado. Hoje essa é uma proporção da economia extremamente importante.

Eu acho que a pouca atenção que tem sido dada ao problema tem que ver com formas de pressão à volta do crime, mas está também relacionada com a ignorância e com a falta de atenção da opinião pública, por se considerar que estas situações são sempre esporádicas e que não são resolúveis.

Nós temos ideia de que somos um país de brandos costumes, de que somos boas pessoas e vamos sendo iludidos com um conjunto de ideias que nos foram passadas ao longo dos séculos. Haverá, também, falta de esclarecimento da parte dos próprios políticos e isto tudo junto resulta na situação que hoje enfrentamos. A economia mundial tem níveis de finanças não registadas extremamente elevados.

Então, por que é que há uma parte legal nos offshores? Estes são os argumentos dos seus defensores.

  • Pelo “respeito pelos mercados”, que é o “pilar fundamental de funcionamento da sociedade;
  • Pelo Estado, que é “prejudicial ao funcionamento dos mercados, pelo que não deve atuar nessa área”;
  • Porque “a concorrência fiscal entre países aumenta a eficiência” dos intervenientes no processo fiscal;
  • Porque “o investimento depende negativamente da taxa de imposto” e é “produtivo e promotor de crescimento”.

Não o preocupa o reverso da moeda? Ou seja, o descrédito pelos poderes públicos e políticos, a partir do momento em que já não sabemos separar o dinheiro lícito daquele que é resultante da fraude?

É uma questão em que nunca tinha pensado, honestamente. Em primeiro lugar, neste tipo de coisas, é preciso haver ponderação. Uma das coisas mais perigosas em que podemos cair é a generalização de ideias feitas. Dizer “os políticos são todos corruptos”… É falso. Grande parte dos políticos não é corrupta. Mas claro que os há.

Já relativamente às grandes empresas, há as que atuam licitamente e as que fazem manipulações de subfaturação em termos contabilísticos, o que lhes permite fugir aos impostos.

Aliás, no prefácio do livro, aparece uma referência da Mariana Mortágua muito bem apanhada que mostra exatamente a descontração com que as pessoas falam de terem feito fuga ao fisco, à espera de que o Governo faça perdão fiscal, ou seja, para, depois, irem entregar o dinheiro e pagarem apenas 7,5%, quando a taxa de IRC é muito mais elevada.

Há que analisar isto com cuidado, é preciso não generalizar. Mas deve haver sempre, da parte das pessoas, o pensamento de qual é o risco de fraude. Sempre que, na nossa vida quotidiana, constatamos determinados factos ou recebemos algum e-mail a dizer que ganhámos uma fortuna, temos de ter a ideia de que há fraude, oculta ou não.

Mas obviamente que a maior parte dos cidadãos é honesta, grande parte dos políticos é honesta e grande parte das empresas também. Temos de ter ponderação, sem descurar a possibilidade de sermos sistematicamente levados ao engano.

“(…) a maior parte dos cidadãos é honesta, grande parte dos políticos é honesta e grande parte das empresas também”

À medida que o fluxo de dinheiro aumenta, a tentação tenderá a ser maior? E a desculpabilização pode ocorrer quando pensam que outros fazem o mesmo?

Claro que a generalização destas situações leva a que se cometa fraude com menos preocupações éticas.

Já não é a primeira pessoa que me diz claramente: “então, mas, se todos roubam, por que é que eu não hei de roubar?”. Isso é uma coisa perfeitamente inacreditável. O que seria correto, quer do ponto de vista pessoal, quer do ponto de vista social, era pensar “se muitos roubam, vou tentar combater os que o fazem”. Há uma certa lascividade em relação ao problema.

Há livros sobre a corrupção em Portugal e com eles percebemos que muitos setores da população até sabem que determinado presidente da câmara é corrupto, mas, se ele faz coisas pelas pessoas da terra, perdoa-se tudo. Esse tipo de situações é cada vez mais prejudicial.

Mas, quando falamos em offshores, estamos a pensar na grande fraude. Há uma certa tendência para combater a pequena fraude e ela também é eticamente reprovável.

 

“Grande parte dos défices do Estado são resultado da crise que houve a nível mundial, mas muitos deles são resultado deliberado de uma atuação de gestores de fortuna e de grandes empresas ao fugirem aos impostos”

Quão fácil é criar um offshore e fazer a tal “contabilidade criativa”?

Criar um offshore é relativamente fácil, desde que um Estado tenha condições para isso e que tenha atratividade. Se um Estado tem uma estabilidade política e social e se pode ser reconhecido no plano internacional, facilmente se pode escusar a cobrar impostos e a acolher empresas que ficam numa caixa de correio. Não precisam de estabelecimentos, nem de empregar ninguém.

A contabilidade criativa parte das empresas e isso também é relativamente fácil de se fazer, mas de contornos extremamente difíceis. Se uma empresa exportar um produto para um determinado país e, depois, a contabilidade passar por um outro país, ou se eu criar uma empresa responsável pelo comércio internacional num offshore, é de relativa facilidade fazer contabilidade criativa, ou, se quisermos, as sobrevalorizações e subvalorizações no sentido de conseguir que os lucros fiquem nos offshores.

Os offshores vêm aprofundar as desigualdades. Não acabam por ser contrários à liberdade e ao neoliberalismo que os sustentam ou legitimam?

Os offshores permitem, efetivamente, uma repartição ainda mais desigual de rendimentos. Falando no caso português, nós estamos sistematicamente com piores condições de vida devido aos défices do Estado.

Grande parte dos défices do Estado são resultado da crise que houve a nível mundial, mas muitos deles são resultado deliberado de uma atuação de gestores de fortuna e de grandes empresas ao fugirem aos impostos.

Por isso, obviamente que isso acaba por agravar intensamente as desigualdades sociais, que, aliás, tem sido um fenómeno sempre presente a partir dos anos 80.

Por outro lado, esta facilidade com que se movimenta dinheiro e com que se fazem operações ilegais vai também fazer com que se incremente cada vez mais a quantidade de recursos utilizados na especulação e que não são aplicados no processo criativo.

Hoje em dia, fala-se em dois e tal porcento como se fosse um grande crescimento económico… Isso era uma ninharia há uns anos. As taxas de crescimento, na altura, rondavam os 5 ou 6%. Isto significa que cada vez se investe menos no processo produtivo em comparação com estes mecanismos de especulação à escala mundial.

“(…) aquilo que muitas vezes entendemos por liberdade pode ser negação de liberdade”

Essa liberdade individual de movimentar o próprio dinheiro acaba por violar uma liberdade coletiva?

Há liberdades individuais que podem continuar a existir. É evidente que cada um de nós deve ter a liberdade de atuar em termos económicos, sociais e políticos. Ela continua a existir e devemos preservá-la.

Mas aquilo que muitas vezes entendemos por liberdade pode ser negação de liberdade. Isso entra em conflito em termos ideológicos.

Eu fujo a falar de livre circulação de capitais, por exemplo. Quando se fala em livre circulação de capitais, isto soa bem, porque é livre, e é uma palavra bonita. Todos nós queremos ser livres. Mas esta livre circulação de capitais implica que há todo um conjunto de setores que vão suportar os custos desta livre circulação de capitais. 

Por outro lado, os Estados vão sofrer as consequências dessa liberdade de circulação de capitais. Toda a gente perde. Por isso, a liberdade individual pode comprometer a liberdade social.

Repare: Quando um Governo diz que tem de fazer determinada política económica,  normalmente, a argumentação é a liberdade dos mercados. Isso significa que a própria democracia está limitada. A pessoa votou em determinado partido, mas, depois, a política que é seguida é aquela que é imposta pelos próprios mercados e não pelas pessoas.

Desde que há impostos, provavelmente terá havido sempre pessoas a tentar fugir a eles. Mas acredita que o crescimento mais relevante deste fenómeno terá ocorrido durante os anos 80?

Sim, isso é um facto. Por um lado, os impostos passaram a ter um significado muito diferente. Se compararmos os impostos do tempo de D.Luís XIV com os impostos atuais, do mundo moderno, os desse tempo eram essencialmente para alimentar o estilo de vida da nobreza.

Hoje os impostos são aplicados por causa do papel do Estado no sentido de satisfazer melhor a nação, para melhores serviços públicos e melhores condições de vida.

Portanto, a partir do século XIX, os impostos passam a ter um significado bastante diferente. Quando, após a crise de 1929-1933, a influência do keynesianismo começou a sentir-se à escala mundial, passa a haver a noção de que o Estado-Nação é a base da sociedade. Então, a noção e o papel dos impostos alterou-se.

O crime de fraude fiscal começa a aparecer muito mais intensamente e daí os offshores terem-se institucionalizado e terem ganhado esta importância e poder.

“Os nossos impostos, os nossos salários, a política do Estado que resulta de um processo democrático de votações estão sistematicamente a ser influenciados pelos offshores”

Os offshores estão organizados em teia. Qual o papel de Portugal nessa teia e porque nos devemos preocupar?

Eu não sei se as pessoas se sentem atingidas, mas são atingidas. Se o sentem, não sei. Admito que as pessoas possam estar muito distraídas em relação a isto e que acabem por consumir esta ideologia que lhes é transmitida massivamente.

Portugal deve preocupar-se com este problema. Primeiro, porque é uma parte do mundo, que hoje está unificado em vários aspetos. Deve posicionar-se em termos de decisões nacionais e internacionais.

Em segundo lugar, porque Portugal tem ele próprio um offshore, que é a Madeira, e há instituições portuguesas que se instalam lá e que têm bonificações fiscais brutais só pelo facto de lá estarem.

Por essas razões, devemos preocupar-nos.

Quando dá a este livro o título “Offshores do Nosso Quotidiano” é porque eles são cada vez mais frequentes ou porque afetam o cidadão comum e a sua vida, sem que ele se aperceba? 

É nesse sentido. Quando entreguei o livro à editora Almedina, disseram-me que o título seria “Offshores”. E eu disse que não, que usar apenas essa palavra remeteria para aquela ideia de coisa longínqua.

O meu propósito era mostrar que isto tem que ver com o nosso dia a dia. Os nossos impostos, os nossos salários, a política do Estado que resulta de um processo democrático de votações estão sistematicamente a ser influenciados pelos offshores. É qualquer coisa que nos marca profundamente, mesmo que não tenhamos consciência disso.

As pessoas devem estar informadas, alerta, criar uma opinião pública altamente favorável ao fim dos offshores. Se as pessoas tendem a chamar de bandidos e ladrões quem os rouba com um puxão na rua, mas que até só levam uns tostões e deixam que outros roubem fortunas, há uma realidade que não pode continuar.

Artigo editado por Filipa Silva e Sara Beatriz Monteiro