Muito antes de haver James Rodríguez e companhia, a Colômbia já havia sido brindada com uma geração de ouro. Adolfo Valencia, Faustino Asprilla e Freddy Rincón tratavam de alvejar as balizas. Mais atrás, Carlos Valderrama corporizava o cérebro de uma safra de exceção no futebol da terra do café. Todas estas almas ficaram imortalizadas a 5 de setembro de 1993, na derradeira jornada de qualificação da zona sul-americana para o Mundial dos Estados Unidos. No Estádio Monumental, em Buenos Aires, os argentinos estavam obrigados a vencer. Já aos “cafeteros”, que ainda não tinham perdido naquele ano civil, bastava um empate.

Pois bem, a Colômbia não se fez de rogada e goleou por cinco a zero. Rincón e Asprilla bisaram, Valencia concluiu a mítica goleada. Para muitos, o jogo mudou para sempre a história do futebol colombiano. Basta, por exemplo, frisar que foi a maior derrota da “albiceleste” na condição de visitado. Os argentinos foram recambiados para um play-off de repescagem com a Austrália. Por sua vez, a Colômbia de Pacho Maturana ia pela terceira vez ao Campeonato do Mundo e tinha o mundo a olhar para si. Apesar de ser aposta pessoal de Pelé para ganhar a competição, todas as expectativas saíram frustradas.

Os sul-americanos foram sorteados no grupo de Roménia, Estados Unidos e Suíça. Na jornada de abertura, os romenos Răducioiu (dois golos) e Hagi deram o primeiro murro no estômago dos colombianos. Valencia fez o tento de honra (3-1), mas o pior estava por vir diante de um anfitrião com escassa tradição futebolística. No Rose Bowl, em Pasadena, a Colômbia até começou com mais iniciativa ofensiva, mas foi sol de pouca dura. Aos 35 minutos, Andrés Escobar assinava o único autogolo do Mundial 1994. Ao tentar intercetar um cruzamento adversário, o central acabou por trocar as voltas ao guarda-redes Óscar Córdoba e abrir o marcador a favor dos norte-americanos.

Prostrado no relvado, Andrés, que tinha recuperado de uma rutura dos ligamentos do joelho, levou as mãos à face. Aos 27 anos, colocava em causa a hipótese de voltar ao futebol europeu, depois de uma fugaz passagem pelo Young Boys da Suíça. Mais do que isso, colocava em cheque as aspirações de uma geração que tinha atingido os oitavos no Itália’90. Stewart elevaria para 2-0 na etapa complementar, de nada valendo o tento de Valencia em cima do apito final (1-2).

Num ápice, a Colômbia passou de promessa a desilusão. A vitória sobre os helvéticos apenas serviu para cumprir calendário. Romenos, suíços e norte-americanos embalaram para desafios maiores. Apesar do futebol rendilhado, os colombianos regressavam a Bogotá com uma mão cheia de nada. Após a eliminação, Maturana aconselhou os jogadores a passar uns tempos em solo norte-americano, até que os ânimos serenassem na Colômbia. A família de Escobar até se deslocou aos EUA, mas Andrés preferiu regressar à base. Sentia que tinha um compromisso para com os seus compatriotas, perante tudo o que acontecera.

A ressaca de um fracasso é sempre complicada de gerir. Se os adeptos sofrem, como se sentirão aqueles que suam a camisola e transportam às costas o peso dos sonhos de um país inteiro? Durante o Mundial, o futebolista de 27 anos assinava no jornal “El Tiempo” um diário de bordo sobre a campanha da equipa nacional nos Estados Unidos. O último texto foi publicado três dias após a queda na primeira fase. Fiel ao seu perfil íntegro dentro e fora das quatro linhas, que justificava a alcunha de “Caballero del fútbol”, Escobar apelava à ética do povo colombiano.

“A vida não acaba aqui. Temos de continuar. A vida não pode acabar aqui. Não importa o quão difícil é, temos de manter-nos de pé. Só temos duas opções: ou permitimos que a raiva nos paralise e a violência continue; ou ultrapassamos e tentamos o nosso melhor para ajudar outros. É a nossa escolha. Deixem-nos, por favor, manter o respeito. O meu mais caloroso cumprimentos para todos. Tem sido uma incrível e estranha experiência. Voltaremos a encontrar-nos brevemente porque a vida não acaba aqui”, escreveu o defesa no jornal “El Tiempo”, logo após a eliminação. Mal sabia o herdeiro da braçadeira de Valderrama que tinha assinado a sua sentença de morte com um simples autogolo.

Numa madrugada de julho, apenas dez dias depois daquele infortúnio contra os EUA e a poucas horas de ser contratado pelo AC Milan, Escobar foi a uma casa noturna e acabou assassinado a tiro no parque de estacionamento. Várias versões montam um episódio nebuloso, mas de desfecho fatal. Uma tese dá conta de que Andrés foi apenas mais uma vítima da tradicional violência urbana noturna. Depois de ter entrado numa discussão com três homens por causa do tal lance, foi perseguido e acabou atingido por doze tiros.

Outros referem que terá sido um ajuste de contas: Escobar foi morto a mando do narcotráfico colombiano, já que os barões de droga estavam insatisfeitos por terem investido milhões em apostas naquela partida. Apesar da ausência de materialização jurídica, as duas versões coincidem num ponto: a eliminação “cafetera” do Mundial 1994.

A justiça condenou Humberto Muñoz Castro, autor confesso do crime, a 43 anos de prisão. Onze anos depois já estava cá fora graças ao bom comportamento. “Num país civilizado já tinham levado esse senhor à cadeira elétrica. Mas acontece que por vender doces e chocolates dentro da prisão ou por varrer meia hora por ali tem direito a ficar livre. Isso é uma coisa tão ridícula que nem tem nome”, afirmou na altura Darío Escobar, o pai de Andrés.

Mais de 120 mil pessoas assistiram ao seu funeral, convertendo Medellín num mar de lágrimas. Perdia-se um ídolo, que aproveitava a projeção mediática para se envolver em causas de solidariedade. Ou seja, o futebolista do Atlético Nacional era, por assim dizer, a ilusão transformada em matéria humana. Só que o assassinato fez com que o sentimento de impotência se apoderasse da nação colombiana.

Nos anos seguintes, a seleção abandonou o Mundial 1998 na primeira fase e até venceu a Copa América realizada na próprio país em 2001. A partir daí entrou numa crise de identidade, que rendeu fracassos sucessivos nas eliminatórias para os Campeonatos do Mundo. Mais do que a perda de uma hipótese de conquistar o título, o assassínio de Andrés Escobar sujou por anos e anos a imagem exportada pela Colômbia além-fronteiras.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.

Artigo editado por Filipa Silva