A: Autogolos. Com seis remates certeiros, Harry Kane isolou-se no topo dos melhores marcadores do Mundial. Contudo, a estatística de autogolos duplicou a marca do avançado inglês. Em 64 jogos, houve doze golos na própria baliza, a favor de Bélgica, Croácia, Costa Rica, Espanha, França (em duas ocasiões), Irão, Panamá, Rússia, Senegal, Suécia e Uruguai. Nunca um Mundial tinha ultrapassado a dezena de autogolos. A fasquia anterior andava pelos seis remates certeiros no sentido errado, tendo sido estabelecida há vinte anos em França.

B: Baloy. Na única aparição em terra de czares, o patrão da defesa panamenha despediu-se com honra e glória frente à Inglaterra. A derrota já ia na meia dúzia, mas o capitão de 37 anos acreditava no improvável. Afinal de contas, marcar um golo era o objetivo traçado pelo Panamá neste Mundial. Ao minuto 78, Avila cobrou um livre descaído no flanco esquerdo. A bola descreveu um arco enquanto Felipe Baloy se escapava da marcação zonal inglesa. O central esticou ao máximo os seus 185 centímetros até conseguir chegar à bola. Chegou, bateu Pickford, e reduziu o marcador para 6-1. Foi o primeiro golo dos “Caneleros” em Campeonatos do Mundo, celebrado como se valesse uma vitória. Houve jogadores emocionados, um selecionador de riso incessante e uma nação inteira em pulgas. Sem resolver nada, significou muito para um istmo de 3,5 milhões que nada tinha a perder. Baloy, o homem cujo nome já está gravado a tinta permanente na história do Panamá, representava a seleção desde 2001 e tinha mais de 100 internacionalizações. Se alguém tinha de celebrar este golo era ele.

C: Campeões mundiais. Depois do céu, uma queda com estrondo no inferno. O século XXI tem descrito uma maldição para todos aqueles que tocam na Taça do Mundo. Dos últimos cinco campeões, quatro foram eliminados na primeira fase da prova seguinte: França em 2002, Itália em 2010, Espanha em 2014 e agora a Alemanha, quatro anos depois de ter sorrido no Brasil. Em 88 anos, nunca a “Mannschaft” tinha saído tão cedo nem marcado tão pouco. A geração de 2018 cessou mesmo um vício saudável: desde a Taça das Confederações albergada em 2005 que os germânicos atingiam pelo menos as meias-finais de todas as competições. No relvado, Joachim Löw até exibiu notórias preocupações para estabelecer a equipa em ataque posicional. Falhou em toda a linha ao consentir tanto desequilíbrio em transição defensiva. A sobranceria com que encarou México e Coreia do Sul foi tão evidente que o selecionador concordou que era justo ir embora antes de todos os outros tubarões. O carácter vale a dobrar na hora da derrota.

D: Desilusão. Portugal agarrou-se com unhas e dentes à fórmula triunfadora de Paris, mas dificilmente um raio cai duas vezes no mesmo lugar. Com bola, as quinas mantiveram muita gente atrás da linha da mesma, precipitando uma circulação quase sempre estéril de uma ponta à outra do campo. Encontrar os pupilos de Fernando Santos a penetrarem com bola dominada pelo bloco adversário é, de facto, um ótimo exercício à perseverança do ser humano. Mais atrás, as luvas de Patrício foram mascarando a quantidade de oportunidades concedidas no ar ou pelo chão. Abdicar tanto tempo da bola, por mais legítimo que seja, faz uma equipa subordinar-se em excesso à qualidade do adversário. Se Marrocos e Irão não criaram mossa no combinado português, que sobreviveu entre a Ronaldodependência e a marca registada de Quaresma, Espanha e Uruguai mostraram perícia a mais na hora da verdade. Depois do caminho de ninfas francês era revitalizador ter um banho gelado à moda russa. O engenheiro deve ter aprendido com ele, porque, afinal de contas, importa jogar mais bem que mal.

Ricardo Quaresma e Cristiano Ronaldo apontaram cinco dos seis golos nacionais. Foto: FIFA

E: Essam El-Hadary. Tornar-se o jogador mais velho de sempre a jogar um Campeonato do Mundo era um dos segredos mal guardados do certame russo. No entanto, Héctor Cuper surpreendeu meio mundo ao arrancar o torneio com um dos pilares do apuramento egípcio na condição de suplente. Mohamed El-Shenawy foi o eleito para defender a baliza dos faraós frente a Uruguai e Rússia, mas a aposta simplesmente fracassou. Ao segundo jogo a seleção de Mohamed Salah já marchava com desalento para casa. Estava na hora do capitão garantir a honra do convento. No derradeiro encontro com a Arábia Saudita, 45 anos e 161 dias construíram o bilhete de identidade mais duradouro da Copa. Sabe-se lá até quando, ou não tivesse El-Hadary defendido uma grande penalidade nos minutos finais da primeira parte.

F: FIFA. Com um passado recente manchado por escândalos de corrupção, o organismo tentou revitalizar-se sob alçada de Gianni Infantino. O dirigente suíço de descendência italiana foi eleito em fevereiro de 2016 e desde aí tem reunido esforços para gerar consensos em todas as latitudes. No primeiro Mundial pós-Blatter, o futebol foi realmente o verdadeiro protagonista de uma trama com contornos para todos os gostos e feitios. Assegurada a assertividade das inovações tecnológicas, resta ponderar a hipótese do alargamento para 48 participantes. Coadunar-se-á um futebol milionário com a necessidade de tratar desportivamente todos por igual? Nesta decisão jogam-se as perspetivas de evolução do Campeonato do Mundo.

G: Grandes penalidades. Outra anormalidade estatística, a par dos autogolos. Em toda a prova os árbitros apontaram 29 vezes para a marca dos onze metros. Vinte e dois pontapés foram convertidos em golo, o que representa uma quebra de 16,9% de aproveitamento face a 2014. A verdade é que nunca se marcaram tantos penáltis no Mundial e o impacto do vídeo-árbitro parece inegável. O sistema ajudou a confirmar dez faltas dentro da área – lembram-se do Portugal-Irão? – mas também interveio em sentido contrário. Basta frisar, por exemplo, a maneira como Neymar foi castigado pela tecnologia diante da Costa Rica. Num primeiro momento, Björn Kuipers sinalizou grande penalidade num lance entre o brasileiro e o defesa Giancarlo González. Depois de ouvir Danny Makkelie na sala do VAR, o juiz holandês consultou as imagens e reverteu a decisão.

H: Hierro. Antes de descolar da Ciudad del Fútbol de Las Rozas, a Espanha era projetada no lote dos favoritos. Mal aterrou em Krasnodar, o plano saiu todo furado. Julen Lopetegui foi despedido na véspera da estreia frente a Portugal e Fernando Hierro foi chamado de emergência para liderar a “Roja”. O antigo diretor desportivo bem que deu indicações, mas nada funcionou. Se o empate a três com o campeão europeu deixou tudo em aberto, as amostras perante Irão e Marrocos envergonharam os profetas da era dourada do futebol espanhol. O descalabro de Iniesta e companhia consumou-se às mãos da anfitriã Rússia, justamente o adversário que há dez anos inaugurava, em pleno Europeu 2008, o domínio castelhano a nível continental e planetário. Parece de propósito, mas não é.

Na despedida de Andrés Iniesta, a Espanha caiu de forma inesperada frente à Rússia. Foto: FIFA

I: Islândia. Esta é a história de um povo condenado ao isolamento, mas que faz do futebol um motivo de orgulho além-fronteiras. Os “Strákarnir okkar” (“nossos rapazes”), alcunha da equipa nórdica, são um espelho perfeito da ilha mais setentrional do planeta: perante a adversidade, cerram os dentes, aguentam a pressão em bloco e deixam o medo em casa. Não importa o tamanho do obstáculo que aparece pela frente, até se lembrarem de um súbito contra-ataque ou uma enérgica bola parada, como se se tratasse de uma erupção vulcânica. Foi assim que os islandeses deixaram água na boca no Europeu francês. Nos meses seguintes conservaram os cubos de gelo mais valiosos, rejuvenesceram em experiência e fixaram-se como a nação mais pequena a participar no Campeonato do Mundo. A seleção de Heimir Hallgrímsson foi calhar ao grupo da morte e abandonou a Rússia sem qualquer triunfo. Três partidas foram, contudo, suficientes para colocar um guarda-redes que é também realizador de cinema a travar um penálti de Lionel Messi e quitar dois pontos ao então vice-campeão mundial. Haveria melhor guião, mestre Hitchcock?

J: Japão. No Mundial é para dar tudo. Japoneses e senegaleses levaram tão a sério o regulamento que só divergiram pelo derradeiro critério de fair-play. Tudo somado, dois cartões amarelos a mais arrasaram as hipóteses de representação africana nas eliminatórias. Na verdade, podia ter saído tudo às avessas, se de repente o Senegal marcasse à Colômbia e o Japão acabasse penalizado por não ter querido ir em busca de um golo que lhe garantisse o apuramento, com o risco de sofrer outro que o eliminasse. Uns dias depois, o país do sol nascente ofereceu outra imagem e até esteve a vencer parcialmente a Bélgica por 2-0. O adversário, lá com alguma fortuna à mistura, deu um safanão no resultado e confirmou a reviravolta num contra-ataque materializado na última jogada do tempo regulamentar. Para o futuro fica o corretivo: com 2-2, já em período de compensação e com um canto a favor, não se pode meter tanta gente numa ponta do campo e atrasar a recuperação de posicionamentos do lado contrário. Lá no fundo, é tudo uma questão de estratégia.

K: Kane. Foi o sustento de uma equipa astuta na exploração de bolas paradas: três quartos dos golos ingleses surgiram a partir de livres diretos ou laterais, grandes penalidades e pontapés de canto. Na conta pessoal, o avançado do Tottenham destacou-se da concorrência com seis remates certeiros, metade do somatório de celebrações britânicas nos relvados russos. A Inglaterra cumpriu serviços mínimos na primeira fase. Depois tremeu pela história que lhe pesa nos ombros, antes de discutir uma presença na final de Moscovo. O sonho de repetir 1966 ficou-se pelo quarto lugar, mas Gareth Southgate sabe que conduziu uma aventura impensável. Ou talvez não. As recentes conquistas em cada escalão jovem falam por si. A decisão sobre reflorescer um país habituado a praticar atletismo com bola conta o resto da história.

L: Lloris. Não é raro ouvir que ser guarda-redes é encarar a posição mais ingrata no futebol. Dentro da especialidade há quem valha apenas pelo seu desempenho entre os postes e quem se aventure nas funções de líbero. No Mundial dos guarda-redes, Hugo Lloris simbolizou uma postura híbrida entre os verbos reagir e antecipar. Foram defesas atrás de defesas, numa mistura de reflexos e agilidade. O dono da baliza francesa mostrou ainda posicionamentos capazes de quebrar a profundidade adversária e integrar a construção ofensiva da sua equipa. Como todos os comuns mortais, também dá frangos sem ninguém contar. Está aqui o perfil do guarda-redes no futebol moderno, coroado com o título mundial.

Hugo Lloris estica-se para travar um remate à meia volta de Toby Alderweireld. Foto: FIFA

M: Martínez. Dos 32 finalistas, a Bélgica fascina desde logo no papel. Tem sido assim desde 2014, à boleia de uma geração que coleciona estrelas em cada setor. No entanto, os “Diables Rouges” foram os seus próprios inimigos no Mundial do Brasil e no Europeu de França, mal chegava a hora de resolver em equipa problemas complexos. Roberto Martínez, que fez carreira no futebol britânico, aterrou em Bruxelas no verão de 2016 para estruturar tanto talento órfão de uma identidade coletiva. Na fase de qualificação mostrou um jogo pensado a caminho do golo em posse. Já em plena fase final não se importou de ajustar a ideia em função do contexto. Frente ao Brasil, no auge da campanha belga, Martínez mudou mais caras do que sistemas. A sua flexibilidade tática encontrou em De Bruyne e Hazard a rédea solta que despistou o Brasil. A medalha de bronze premeia a melhor Bélgica em Campeonatos do Mundo, mas sobretudo personifica um estilo que confere criatividade ao talento.

N: Neymar. É amado e odiado, tal como todos os monstros da bola. No último mês, já depois de ultrapassar uma entorse no tornozelo, constituiu uma abundante fonte de inspiração ao serviço dos cibernautas: foi o penteado esparguete, as quedas teatralizadas e, por que não, os golos cobrados diante de Costa Rica e México. Neymar tem o futebol-arte urbano dentro dele. A sua personagem festiva convive com a faceta de craque, esteja na ala a recriar-se com a bola ou dentro da área pronto a aproximar a canarinha do golo. Brincar com tudo o que mexe significa, no fundo, uma ponte para o número dez adquirir notoriedade numa partida de futebol. Como em quase tudo no quotidiano, há quem prefira ver o copo meio cheio ou meio vazio.

O: Osorio. Se há conjunto que acreditou até ao fim num ideal versátil, então falamos do México de Juan Carlos Osorio. Adepto do futebol de posse, o técnico colombiano costuma perseguir um modelo de construção apoiada em organização ofensiva. Só que esta forma de jogar raramente é interiorizada em profundidade num ciclo de trabalho temporário. Talvez o perfil das escolhas, acentuado por uma rotatividade sem limites, tenha potenciado outra dinâmica na hora de os “aztecas” desmultiplicarem-se por toda a frente de ataque. O México não deixou de raciocinar com a bola quando o jogo o pedia, mas foi sobretudo através das suas saídas em transição que explodiu vagabundos na plenitude das suas capacidades técnicas e atléticas. Basta observar o primeiro e último golos com sabor a tequila apontados na terra da vodka. Já agora, por explodir ainda permanece a maldição da segunda fase. Pela sétima vez consecutiva os mexicanos caíram nos oitavos. Melhor só quando chegaram aos quartos de 1970 e 1986, ambos disputados em casa.

P: Perú. Um regresso agridoce ao maior palco do futebol planetário. A ganhar ou a perder, os “Incas” procuraram atingir o último terço de pé para pé. Enquanto os laterais projetavam-se como autênticas setas pelos flancos, o duplo-pivot encarregava-se de pensar o jogo pelo corredor central através do passe. Mal descobriam companheiros nas costas da linha média adversária, os peruanos pecavam nos erros típicos de quem tem o coração ao pé das intenções: a cabeça pensa depressa demais, as pernas não andam a compasso e o último passe ou remate sai equivocado. As más decisões deram o ouro ao bandido numa transição carente de comportamentos zonais. Foi assim que o Perú de Ricardo Gareca caiu frente à Dinamarca, num jogo cruel que ditou a sina dos sul-americanos. A despedida vitoriosa com a Austrália já só serviu de prémio de consolação, quer para Paolo Guerrero, um goleador desgastado por alegadas acusações de doping, mas também para um culto da posse que arrastou às costas milhares de peruanos.

Com Schmeichel batido, Christian Cueva atira o sonho peruano para as nuvens de Saransk. Foto: FIFA

Q: Quarta substituição. Cinco jogos da segunda fase necessitaram de horas extras para decidir vencedores. Foi justamente no prolongamento que residiu uma das novidades nas regras do jogo: a FIFA passou a permitir que as equipas efetuassem uma quarta alteração. No Espanha-Rússia, Stanislav Cherchesov esgotou as três substituições durante os noventa minutos e, já em tempo extra, fez entrar Erokhin para o lugar de Kuzyaev. Estava inaugurada uma inovação que pode vir a ser pertinente, nos planos físico e tático, para resolver jogos amarrados.

R: Rússia. Jogar em casa pode ser um trunfo importante. A anfitriã do Mundial 2018 soube rentabilizá-lo para esconder as suas fragilidades e quebrar uma onda pessimista que já se prolongava há demasiados meses – nem que fosse pelo simples facto de ser o país do torneio com pior cotação no ranking FIFA. Ao perceber a ausência de referências criativas, Stanislav Cherchesov buscou na veterania uma equipa competitiva entre setores. Pelo caminho soltou espaço ao talento de Golovin, a primeira figura deste Mundial, e à veia mortífera de Dzyuba, um autêntico veículo blindado de combate. Se passar a primeira fase já criava hesitação, chegar à quinta partida já seria de loucos. Pois bem, os russos baralharam todas as previsões dos apostadores. Depois de limparem a Espanha, só caíram no último penálti frente à Croácia.

S: Supremacia europeia. Com a derrota brasileira aos pés da Bélgica confirmou-se o expectável: o novo campeão do mundo iria, pela quarta vez consecutiva, emergir do Velho Continente, perseguindo as conquistas de Itália (2006), Espanha (2010) e Alemanha (2014). Na verdade, a superioridade das equipas europeias nos Mundiais, sobretudo quando o torneio não é realizado noutro continente, já vem de trás. Pela quinta vez quatro federações da UEFA atingiram em simultâneo as meias-finais da competição, repetindo os registos verificados em 1934, 1966, 1982 e 2006. O Mundial 2018 prolongou assim a maldição das equipas sul-americanas: dos nove campeonatos do mundo conquistados por seleções daquele continente, apenas por uma vez essa conquista decorreu em solo europeu: 1958, quando Pelé se estreou a ganhar pelo Brasil.

T: Transições. Com maior ou menor competência, 32 finalistas chegaram à Rússia para impor o seu próprio estilo. Apesar de todas divergirem em nuances táticas e estratégicas, a esmagadora maioria não se importou em oferecer ao adversário um domínio claro da posse de bola. Havia um duplo truque escondido na manga: em primeiro, esconder as debilidades de quem não sente conforto a trocar a bola pé ante pé; depois, desnudar em contra-ataque ou numa bola parada as deficiências posicionais dos rivais, deixando o destino do jogo à mercê da inspiração individual. As transições defensivas das grandes seleções ajudaram a tornar este Mundial um campeonato equilibrado. Fica a lição: para ter bola e atacar muito também é preciso saber defender. Ainda para mais numa prova de curta duração, onde o tempo de trabalho escasseia e o detalhe transcende de pertinência.

Quatro toques de costa a costa e uma reviravolta a acabar. O Bélgica-Japão não deixou ninguém indiferente. Foto: FIFA

U: Uruguai. É a sentença que fica atravessada na goela portuguesa. Quem encara a seleção “celeste” sabe que, à partida, terá de trepar uma montanha recheada de desafios emocionais. Não há descanso, muito menos sossego. Desde sempre que a garra “charrúa” é assim, mesmo se a renovação geracional em curso continue a bombear sangue novo pelas veias dos pupilos de Óscar Tabárez. Sem medo de nada em campo, o Uruguai passou incólume pela primeira fase com cinco golos de bola parada. Derivou do conservador 4-4-2 para puxar pela criatividade dos médios em 4-3-1-2. E mesmo assim, tornou-se evidente que os problemas levantados pelo jogo seriam resolvidos com base na inspiração individual. Ter centrais imperais no espaço aéreo e avançados mortíferos em largura e profundidade bastou para que o primeiro campeão mundial entrasse nas oito melhores seleções do certame russo.

V: Vídeo-árbitro. A novidade do ano em várias ligas europeias de clubes abraçou também o maior palco do futebol de seleções. Utilizado pela primeira vez num Mundial, o VAR reviu 441 lances e ajudou a inverter 16 decisões iniciais tomadas pelo árbitro principal. Levantou polémica, mas saiu com nota positiva, gastando uma média de 38 segundos por jogo em termos de consulta de imagens no relvado. Na verdade, falar do crescimento do vídeo-árbitro continua a ter muito pano para mangas. Basta conferir as incidências que enquadraram a primeira parte da final. O debate acerca da sua implementação é absolutamente necessário, tal como um entendimento mais profundo e global acerca das virtudes e defeitos do sistema. Se eliminar o erro humano é impossível, chegar próximo desse alvo está a tornar-se cada vez mais provável.

W: Wilfredo Caballero. 21 de junho, Nizhny Novgorod, Argentina-Croácia. O relógio marca 53 minutos e já toda a gente adivinhou como irá responder o guarda-redes “albiceleste” ao atraso de Mercado: usando um comprido e empinado balão para as imediações do meio-campo. Ilusão a mais, meus caros. De primeira, Caballero solta uma rosca e a bola fica à mercê de Rebić, que começa a desenhar com um pontapé de moinho o regresso da Argentina a Buenos Aires. Claro que um lance não faz um Mundial, mas pode deixar feridas. A velocidade de cicatrização depende, em última instância, da gestão de individualidades, dos comportamentos coletivos e da própria estabilidade emocional. Só que nesta versão das “pampas” as três variáveis ficaram niveladas por baixo. 1) De que serve ter uma das melhores frentes de ataque do Mundial se, por exemplo, Meza (duas internacionalizações antes do torneio) tem nove vezes mais minutos do que Dybala (melhor marcador da Juventus em 2017/18)? 2) A responsabilidade de orquestrar praticamente todas as jogadas ofensivas recaiu sobre Messi, qual maestro isolado das cordas, das teclas e da percussão. 3) Jorge Sampaoli de mãos na cabeça ilustra uma seleção de rastos. Nem Maradona teve manual para resistir.

X: Xadrez croata. Zlatko Dalić caiu de paraquedas no apuramento da “Vatreni” para o Mundial. Três jogos decisivos em menos de um mês encurtaram a margem para invenções. A Croácia lá sorriu no play-off com a Grécia e o selecionador pôde respirar. Depois de entender os jogadores que tinha, acrescentou princípios ao talento individual e venerou em 4-3-3 autoridades como Luka Modrić e Ivan Rakitić. Nem sempre os croatas conseguiram rendilhar o jogo, e essa dificuldade revelava-se sobretudo quando o número dez aproximava-se dos centrais balcânicos para esboçar ações de construção e transporte. Ainda que tenha desenvolvido um maior número de matizes ao longo da carreira, a técnica desconcertante pede que o médio do Real Madrid jogue, por princípio, mais adiantado no xadrez de Dalić. Afinal, foi de frente para o jogo, perto da defesa contrária, que Modrić deu lições de inteligência em espaço curto e qualidade técnica. Materializou uma vida longa à sua nação na Rússia e sai como principal matrioska do Mundial.

Y: Yerry Mina. Na terra do café ansiava-se há muito pelo dia em que James Rodríguez e Radamel Falcao iam juntar-se num Campeonato do Mundo com as cores colombianas. O sonho ficou destroçado em 2014 porque o avançado rompeu os ligamentos cruzados do joelho esquerdo. Passado o quadriénio, Bogotá celebrou a sexta ida ao Mundial e as esperanças voltaram com outra roupagem. Só o fantasma das lesões é que não arredou pé. James arrancava o Mundial sentado no banco a ressentir-se de dores nos gémeos. Estava dado o mote para um torneio em falso por parte do dez colombiano, que jogou os últimos trinta minutos com o Japão e teve de sair à meia hora na partida frente ao Senegal. Pelo caminho, Rodríguez lá acasalou setenta e tal minutos com Falcao e tudo bateu certo: ambos participaram nos três golos que encaminharam a Polónia para casa. De resto, os “cafeteros” ressentiram-se do abaixamento de forma do seu capitão e tiveram de encontrar outro salvador da pátria. Foi a hora do defesa Yerry Mina, com três golos de cabeça que decifraram a chave dos oitavos e conduziram o duelo com Inglaterra para o prolongamento. Um goleador improvável, assente em atributos físicos e imponência.

Z: Zero-zero. Sem ser o torneio com maior eficácia da história, o Mundial 2018 teve finalizações de todas as formas e feitios. 42% dos 169 golos chegaram de bola parada e a média de tentos por jogo fixou-se nos 2,64. Foi, aliás, a edição em que mais tempo se esperou para ver um nulo. De facto, só ao 37º encontro jogado na Rússia é que se assistiu a hora e meia sem golos. Dinamarca e França foram os responsáveis diretos, numa altura em que já tinham assegurado a passagem aos oitavos e só precisavam de decidir quem ficaria com o primeiro posto do grupo C. Os adeptos, ávidos por pularem das cadeiras, viram o que não queriam e responderam com assobios no final.

“Almanaque Mundial” é um rubrica diária do JPN que mergulha em curiosidades da principal competição futebolística de seleções.

Artigo editado por Filipa Silva