No princípio, era uma conferência. Uma como tantas outras que a Universidade do Porto acolhe durante todo o ano. Mas o encontro “Basic science of a changing climate”, que esta sexta-feira arrancou na Faculdade de Letras, acabou por receber uma atenção mediática incomum, além de duras críticas de membros da comunidade científica, dentro e fora de portas.

Em causa, estão as visões defendidas por vários membros da organização da conferência, o “Independente Committee on Geoethics”, os quais recusam o que a esmagadora maioria dos especialistas climáticos defende: a emissão de gases com efeitos de estufa para a atmosfera, à cabeça dos quais o dióxido de carbono, acontece sobretudo por ação humana e está a provocar o aquecimento global.

A vinda dos chamados “negacionistas” ao Porto para debaterem a matéria num espaço académico começou por fazer títulos nos jornais e resultou numa carta aberta, subscrita por sete dezenas de professores e investigadores portugueses – muitos deles da Universidade do Porto – em “protesto” pelo facto de a instituição “promover” um encontro que, afirmam, “vem favorecer a desinformação” com base em “ideias cientificamente infundadas”.

Universidade e faculdade rejeitaram as críticas, mantiveram a conferência e sublinharam uma ideia: a academia deve ser “um espaço de debate e discussão por excelência” com lugar para ideias diferentes.

Assim é, mas assim sendo o que tem este caso de particular? Deixará alguma marca para o futuro?

“Um caso estranho”

“Não me compete a mim dizer à Universidade do Porto o que fazer. Era o que faltava. O que digo é que estamos perante um caso estranho, porque não é normal que, pessoas que negam factos estabelecidos da ciência, apresentem as suas conclusões numa universidade”, afirma Carlos Fiolhais em conversa telefónica com o JPN.

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Carlos Fiolhais

“Qualquer universidade tem a obrigação de gerir e cuidar o que se passa dentro das suas portas”, prossegue o físico, que foi também um dos signatários da carta aberta. “Se uma pessoa dentro de portas estiver a albergar iniciativas que põem em causa a Ciência e o método científico, está de alguma forma a prejudicar o nome da própria instituição”, e a aproveitar-se “do prestígio” dela, acrescentou à frente.

Assunção Araújo, catedrática da FLUP e responsável por endereçar o convite para a realização do evento na UP, não podia estar mais em desacordo. Garante que a atividade dos membros da conferência é científica, rejeita o rótulo de “negacionista” – não negam as alterações climáticas, mas antes que sejam o CO2 e a ação humana os seus causadores – e aplaude a atitude da instituição de ensino: “a universidade portou-se bem. Não suspendeu a reunião, disse, pelo contrário, que a universidade deve ser um sítio de discussão e que todas as opiniões devem ser apresentadas”, lembrou aos jornalistas antes da conferência, esta manhã.

Adélio Mendes

Adélio Mendes, catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), que tem as alterações climáticas no plano curricular que ministra em dois cursos da FEUP, não reconhece validade científica ao evento. “Este tipo de conferência, é uma conferência política. Porque não a reconheço sequer como técnica”, afirmou ao JPN.

O investigador, Prémio Universidade de Coimbra em 2016 e também ele signatário da carta aberta, acusa os que rejeitam os efeitos do CO2 nas alterações climáticas de “pessoas desonestas ou ignorantes”. “O senhor Reitor terá uma opinião sobre o assunto. A minha opinião em relação a estas pessoas é esta: em primeiro lugar, honestidade. Ética acima de tudo”. “Nós somos uma escola plural. Não somos uma escola num só sentido. Acolhemos de um lado e do outro, mas ao mesmo tempo”, frisa.

Polémicas “normais e saudáveis”

Nuno Garoupa é professor universitário e há vários anos que dá aulas em universidades dos Estados Unidos, onde o debate em torno da liberdade de expressão e mais recentemente do “politicamente correto” é um clássico das academias.

Na visão do docente, “estas polémicas são normais e saudáveis”. Aliás, refere, “até seria útil para o debate público que acontecessem mais vezes.”

“Silenciar quem pensa distinto dentro do mundo universitário seria a pior forma de censura”, adverte. Contudo, “a Universidade do Porto é uma instituição pública, financiada pelo contribuinte, logo a sua decisão de ‘promover’ conferências tem de estar sujeita a algum tipo de escrutínio científico e público”, defende.

Numa resposta por escrito ao JPN deixa uma sugestão: “Isto é matéria que deveria ser objeto de decisão pelo Conselho de Curadores da Universidade e seria útil que os curadores se pronunciassem publicamente sobre estes assuntos”, concluiu.

Aprender “com os erros”

Carlos Fiolhais, por sua vez, recomenda “reflexão” interna: “Há percalços na vida das instituições. O que temos de fazer é aprender com eles. Estou certo de que se isso voltar a acontecer na Universidade do Porto, haverá de certeza mais cuidado”.

Na sessão de boas-vindas da manhã, Fernanda Ribeiro, diretora da FLUP, recebeu uma ovação de pé depois de frisar no breve discurso que dirigiu à plateia a “atitude tradicionalmente aberta e plural” da faculdade que dirige.

“A FLUP organiza mais de 300 eventos culturais e científicos todos os anos, na maioria por iniciativa dos nossos docentes e investigadores. E, naturalmente, não temos qualquer tipo de serviço de informação que valide o que deve ou não deve acontecer, porque confiamos nos nossos professores e investigadores”, disse também.

Questionada pelo JPN sobre se tal serviço seria desejável, a responsável respondeu que não. “O escrutínio das atividades é feito pelo própria comunidade académica. As atividades são, normalmente, propostas pelos departamentos e pelos centros de investigação ou validadas por eles”, explicou, não havendo, na sua opinião, “razões para qualquer alteração” no modo como a validação dos eventos é feita.

Assunção Araújo e Nils-Axel Mörner

Assunção Araújo e Nils-Axel Mörner Foto: Filipa Silva

Assunção Araújo, confessa, não esperava o “grande exagero” criado em torno do evento. “A universidade tem todo o direito, tem a obrigação de permitir que haja outras opiniões no seu seio e é da confrontação de ideias que sai alguma verdade”, disse num outro momento de entrevista, na véspera de arranque do evento.

Carlos Fiolhais insiste: “Não me venham dizer que vão começar aqui um debate, porque há debates há dezenas de anos. Há milhares de projetos, de estudos, de meta-estudos, há painéis internacionais que depois de muito trabalho chegaram à conclusão de que há aquecimento global e que a causa do aquecimento global é a emissão de dióxido de carbono e que boa parte dessas emissões tem origem humana”. “A ciência não é feita por unanimidade, mas é feita por consenso e esses consensos não são arbitrários. Pode dizer-se o que se quiser, mas não se pode dizer, por exemplo – e eu sou físico – que a matéria não é feita de átomos”, concluiu.

A conferência “Basic science of a changing climate” termina este sábado, na FLUP.