Encontrámos José Eduardo Pinto da Costa, 84 anos, num local que conhece bem. Foi no seu escritório, no Centro de Medicina Legal do Porto, que o médico legista nascido na Invicta nos recebeu.

Enquanto especialista em medicina legal, Pinto da Costa fez mais de 30 mil autópsias. É com base na larga experiência que tem, que nos falou de questões como a relutância que temos em lidar com a morte, a complexa realidade da eutanásia e de como a falta de corpos doados à ciência sendo negativa, pode não ser dramática, do ponto de vista do ensino.

JPN – Vivemos numa sociedade que tem alguns conceitos enraizados na sua cultura e com grande influência religiosa. É esse o motivo pelo qual existe uma certa dificuldade em abordar temas como a eutanásia ou a doação do corpo à ciência?

Pinto da Costa – A morte ainda continua a ser um tabu, porque não há uma educação para a morte. Quando surge a palavra morte as pessoas têm tendência para fugir, ou ultrapassar de alguma forma a dificuldade, precisamente pela falta de educação. Não há uma aprendizagem. Quando existe um falecimento numa família, escondemos isso das crianças, em vez de dizer que a pessoa morreu. Apesar de ser um fenómeno natural, nós dizemos que a pessoa está “numa estrelinha” – algo que não tem lógica absolutamente nenhuma. Pela estruturação da personalidade, essa criança ao atingir o estado adulto irá continuar a rejeitar os problemas relacionados com a morte.

Hoje em dia tenta-se anular esse tabu com uma dificuldade muito grande. A humanidade viveu sempre com tabus e quando se desfaz um, cria-se logo um novo para preencher esse hiato, esse vazio existencial.

JPN – A eutanásia é um dos temas com grande prevalência nos últimos anos. Enquanto profissional na área médico legal, qual o seu ponto de vista sobre o assunto?

PdC – A eutanásia é um tema quente da atualidade. Aliás, não é só agora, mas sim desde os primórdios da humanidade. De um ponto de vista histórico, Hipócrates – o pai da Medicina, que viveu na Grécia, cerca de 450 anos A.C. – era radicalmente contra a eutanásia. Apesar disso, nessa mesma ilha, era costume convidar os velhinhos para um banquete final onde a última coisa que lhes davam era uma taça com veneno. Nota-se uma contradição: na mesma Grécia em que viveu um homem importante do ponto de vista filosófico e ético, isto era um costume considerado normal e aceite por todas as pessoas. Aqueles que eram considerados inúteis – velhinhos que não produziam, pessoas com carências, e até vistos como um “peso social” -, eram de vez em quando convidados para um festim onde eram eliminados.

Enquanto o código penal consignar que não é permitido ajudar outra pessoa a suicidar-se, legalizar o suicídio assistido seria uma contradição.

O problema, na realidade, tem de ser encarado numa perspetiva equacionada por Neukamp, em 1937, e que está agora a ser revisitada. Segundo esta perspetiva, a eutanásia compreende três níveis. A eutanásia voluntária, aquela em que as pessoas intencionalmente, e lúcidas, exprimem o que desejam – seja para evitar o sofrimento, a dor ou por não haver uma solução para a sua doença. Pode considerar-se também a eutanásia involuntária – aquela em que se propõe o suicídio às pessoas, ou seja, a sociedade ajuda aqueles que querem terminar a vida por considerar que essa pessoa é inútil. Numa perspetiva eugénica, esses indivíduos devem morrer. Na prática, a eutanásia involuntária, consiste em perguntar ao interessado se não considera mais útil para todos receber uma injeção para morrer. Mesmo não sendo esse o desejo da pessoa, nós, enquanto sociedade, dizemos “pode não querer morrer, mas vai”. Neukamp considera ainda um terceiro nível: a eutanásia não voluntária. Nestes casos, o indivíduo não tem conhecimento, ninguém lhe perguntou nada e sem saber é eliminado. Isto levou uma enfermeira a cumprir uma pena de prisão perpétua na Alemanha. De vez em quando, na enfermaria onde ela estava de serviço, havia casos de eutanásia e nos outros períodos tal não acontecia. Fez-se uma prospeção para explicar o fenómeno, e concluiu-se que, de acordo com o critério dela, aquelas vidas já não eram úteis e então ela eliminava-as. O problema é complicado. Esta perspetiva de 1937 foi retomada nos últimos anos por um filósofo australiano, considerado atualmente o maior filósofo da humanidade, Peter Sims. Este defende exatamente estes princípios: da utilidade da eutanásia na prática da vida humana e se existiria capacidade legal para a aplicar.

A eutanásia numa perspetiva camuflada é aceite em alguns países, por exemplo, na Holanda. Neste país, a eutanásia não é realmente eutanásia. Essa prática continua a ser crime. O que acontece é que existem determinados protocolos médicos que despenalizam o crime – ou seja, os médicos não são penalizados se o fizerem a pedido do próprio doente. Este princípio não tem nada de extraordinário. Nós temos o mesmo cá em Portugal relativamente ao aborto. O aborto é um crime, salvo nas situações previstas no artigo 142 do código penal em que a interrupção voluntária da gravidez não é considerada crime. Nessas circunstâncias as pessoas envolvidas – a mulher e quem lhe faz o aborto – não são penalizadas.

A maneira de contornar esta dificuldade em torno da eutanásia é o suicídio assistido. Mas tudo depende da lei para ser ou não considerado aceite. Existem países, e até em alguns estados nos Estados Unidos da América, em que esta prática está legalizada. Em Portugal, era para a ter aprovada, mas tal não ocorreu aquando da votação na Assembleia da República. O suicídio assistido é complicado, porque atualmente a lei não penaliza o suicídio do próprio.

Em tempos, o indivíduo que se suicidasse não tinha direito a enterro religioso e a primeira coisa que o Estado fazia era confiscar-lhe os bens. Atualmente, não é assim. Se um cidadão português se suicida, ninguém lhe vai confiscar os bens – esses serão para quem a eles tiver direito por direito sucessório. O suicídio em si mesmo não é crime, mas a lei refere que a ajuda ao suicídio é penalizada. O homicídio piedoso, nem que seja a pedido da vítima, é um crime. Enquanto o código penal consignar que não é permitido ajudar outra pessoa a suicidar-se, legalizar o suicídio assistido seria uma contradição. A primeira necessidade seria anular essa criminalização da ajuda ao suicídio e então depois teríamos o suicídio assistido com uma certa pertinência.

As opiniões dividem-se muito em todo o mundo. O problema da eutanásia são os abusos. A Austrália já teve uma lei que a permitia, mas anulou-a (exceto no estado de Vitória) porque se constatou que existiam, de facto, muitos abusos. Hoje, segundo se refere, na Holanda, há muita “eutanásia não voluntária”. As pessoas nem sabem. Os países estão a tentar encontrar um ponto comum para evitar situações de abuso desse género. Até é mais fácil, de um ponto de vista de organização social eliminar os velhinhos – são menos reformas, menos encargos financeiros.

José Eduardo Pinto da Costa é irmão do presidente do FC Porto: Jorge Nuno Pinto da Costa.

José Eduardo Pinto da Costa é irmão do presidente do FC Porto: Jorge Nuno Pinto da Costa. Foto: Bruna Neto

JPN – Um profissional de saúde é visto como alguém que salva vidas. Existe alguma contradição com o facto de ser profissional de saúde e defender práticas como a eutanásia ou até o aborto?

PdC – Depende da conceção de cada um. Muitos defendem radicalmente que o médico é para dar vida e não morte. Se tivermos uma perspetiva desse género, é eliminada a possibilidade de um médico praticar algo assim. Como as opiniões são muito divergentes, a lei portuguesa dá o direito de objeção de consciência. Se o médico na sua convicção, sem ter que dar satisfações, for contra a prática, por exemplo, do aborto, tem o direito a dizer que não o fará. A organização do Estado, ou o diretor do serviço do hospital, tem a responsabilidade de resolver o imperativo legal, ou seja, de arranjar outro médico para o fazer.

Há muita gente que quer doar o corpo à ciência, mas os mecanismos não funcionam.

Relativamente à eutanásia, o raciocínio é semelhante. Se o médico não concorda com a eutanásia – nem que a eutanásia venha a ser legalizada de alguma maneira – ele poderia apresentar o estatuto de objeção de consciência. Se considerarmos que a função do médico é dar vida, mas que, para além disso, é ajudar o doente a morrer já é diferente. Essa ajuda é muito ampla. Ajudar a morrer, do ponto de vista consignado por muitos filósofos, não é propriamente matar. Ajudar a morrer envolve uma série de envolvimentos psicológicos e terapêuticos para suavizar o processo da morte. Mas como vão existir sempre muitas opiniões divergentes, continuará a existir a objeção de consciência. 

JPN – Segundo dados da Faculdade de Medicina do Porto, tem vindo a diminuir o número de corpos doados à ciência. A que se deve esta resistência em doar o corpo à ciência?

PdC – É sobretudo uma questão de publicidade. Se alguém como uma figura pública doar o corpo e isso for manifestado na televisão como algo que positivo, evidentemente passa a haver uma menor resistência. Se ninguém falar nisso há sempre a reserva do cadáver em si mesmo, e, portanto, há pouca gente a doar o seu corpo.

Por outro lado, a lei que permite a doação do cadáver, não deixa dúvidas nenhumas. Quer seja para ensino, quer seja para investigação científica, tudo está perfeitamente legal. O problema está na falta de conhecimento da existência dessa possibilidade. Por exemplo, também há poucas pessoas a fazer o testamento vital. Porquê? Porque não se fez propaganda ao testamento vital. Para além disso, existem certos condicionalismos na aplicação prática desse testamento que levam a que não haja uma adesão muito grande. Mas se a comunicação propagar que o Cristiano Ronaldo ofereceu o seu cadáver à ciência, muitas pessoas vão querer fazer o mesmo. É uma questão de fazer passar a mensagem do aspeto altruísta e positivo. Na prática, também é preciso que os mecanismos de receção do cadáver sejam propícios a que a doação seja concretizada. É fundamentalmente isso. Há várias pessoas que têm oferecido o cadáver, mas depois os mecanismos não funcionam. Não basta a pessoa dizer que quer doar o corpo à ciência. É preciso que os locais que recebem os corpos, como as Faculdades de Medicina, tenham um arquivo ou base de dados que mostre que pessoas doaram o corpo para aquele local.

Já se fazem autópsias virtuais – as “virtópsias” – em que só com scanners conseguimos visualizar toda a parte interna.

Portanto, quando se fala num baixo número de corpos doados à ciência, temos que analisar os mecanismos todos: se há uma base de dados nacional das pessoas que ofereceram os cadáveres e quem é quem tem acesso a essa base de dados. Se houver uma lista com as pessoas que ofereceram o seu cadáver à Faculdade de Medicina, automaticamente o registo civil não deixa fazer o enterro. É mais uma questão burocrática, não apenas psicológica. Há muita gente que quer doar o corpo à ciência, mas os mecanismos não funcionam.

JPN – Um baixo número de corpos doados pode afetar os estudos e investigações, ou até mesmo a formação de novos profissionais de saúde?

PdC – Historicamente, desde a idade média, o cadáver foi sempre a base do ensino médico. Atualmente, com as tecnologias, não é tão importante. Por exemplo, já se fazem autópsias virtuais – as “virtópsias” – em que só com scanners conseguimos visualizar toda a parte interna. Também a relação médico-doente é feita através do computador. O médico nem tem tempo de olhar para a cara do doente: só introduz dados no sistema durante os dez minutos, ou quarto de hora, que dura a consulta. Os materiais pedagógicos e didáticos são muito diferentes daquilo que eram há cem anos. Muito mudou. O mundo não é como gostaríamos que fosse, mas é como é. Temos de ter essa humildade.

É importante ter um corpo em sala de aula, mas caso não exista não é um drama

Outrora era necessário existir um corpo para que o estudante fizesse uma prova de cirurgia. Hoje não é necessário. Na prática, continua a ser importante a observação sistemática de um corpo. Essa observação ajuda – e ajudou-me a mim, na minha vida profissional – a relacionar a parte externa com a parte interna. Observei cerca de 30 mil corpos ao longo da minha carreira, mas nem toda a gente tem essa oportunidade. Ter essa possibilidade é uma riqueza, mas não é acessível a toda a gente.

Hoje os métodos de ensino, e trabalho, são diferentes. Quando um doente se queixa de determinados sintomas, o médico pode colocá-los no computador e fazer o diagnóstico. E o cadáver? É uma conceção totalmente diferente. Outrora a nossa preocupação na medicina era curar as pessoas e erradicar as doenças. Atualmente não nos interessa curar. A grande preocupação da medicina passou a ser ajudar o paciente a conviver o maior número de anos possível com a sua doença e com as suas limitações biológicas. O mundo mudou. É importante ter um corpo em sala de aula, mas caso não exista não é um drama e não irá afetar o ensino dos novos médicos. Isso é mais demagogia para justificar a entrega de cadáveres do que outra coisa.

JPN – Por outro lado, a doação de órgãos tem vindo a aumentar, colocando, em 2017, Portugal em 3º lugar numa lista elaborada pela União Europeia. Existe uma diferença na perceção destes dois tipos de doação?

PdC – Há um sentido positivo na doação de órgãos. Sabe-se que uma criança precisa de um órgão e surge um movimento internacional. O gesto de doação de um órgão é louvado: é louvada a mãe que dá o rim ao filho ou a criança que dá o rim ao irmão. Caso não exista outra possibilidade, a lei – atualmente – permite a doação de órgãos em vida, desde que não exista nenhum prejuízo significativo para o dador. A doação de órgãos é muito valorizada pela sociedade e é por isso que as pessoas o fazem. Outro motivo é porque há mais garantias para o dador, ou seja, uma pessoa consegue viver normalmente só com um rim – o que não acontecia antes.

JPN – Existem outros temas que possam beneficiar de uma melhor sensibilização?

PdC – Qualquer tema pode usufruir disso. A vacinação é um bom exemplo. Há pessoas que não se querem vacinar. A sensibilização pode fazer com que toda a população passe a vacinar-se. O diagnóstico precoce do cancro é outro exemplo. Para as pessoas saberem que ao sentirem um nódulo qualquer não devem deixar andar, é preciso que estejam sensibilizadas. Se eu tirar um nódulo atempadamente, é mais provável que não aconteça nada. Caso não o faça, posso ter aí uma degenerescência ou cancro maligno. A sensibilização é fundamental.

Artigo editado por Filipa Silva