O ano de 2018 está a ser marcante para o mundo canábico. Acontecimentos como a legalização do uso recreativo de canábis no Canadá e na África do Sul, assim como a aprovação do uso medicinal em Portugal, fizeram correr tinta na imprensa, e tiveram eco – sobretudo o último ponto – na segunda edição da CannaDouro, a Feira Internacional de Cânhamo do Porto, que se realizou no último fim de semana, na Alfândega.

O certame reuniu visitantes de várias faixas etárias e nacionalidades, com a canábis no centro de todo o programa. “A Cannadouro é uma feira canábica, que reúne empresas que estão associadas aos três usos contemporâneos da canábis: o uso terapêutico, o uso agroindustrial e o uso recreativo”, explicou ao JPN o organizador, João Carvalho.

Além da mostra de empresas, foram também elaborados debates e palestras para esclarecer os visitantes sobre as várias utilizações da planta.

Pacientes (não) esperam pela lei

A 15 de julho deste ano, o Parlamento português aprovou a utilização de canábis para fins medicinais. Este foi um passo que a comunidade canábica esperava há muito tempo, mas ainda que não consigam esconder alegria pela notícia, a incerteza também está presente.

No sábado, foi apresentado no certame a série documental “Pacientes”, realizada por Laura Ramos, que retrata a experiência de doentes que tiveram de recorrer ilegalmente a canabinóides para atenuar os sintomas das suas patologias. São vários casos de pessoas que viajam para o estrangeiro ou auto-cultivam canábis com o objetivo de adquirir óleo CBD, muitas vezes contra a vontade dos médicos que os acompanham.

Maria João Rezende é uma das protagonistas do documentário. A sua irmã, Paula, sofre de epilepsia refratária. O recurso ao CBD, assegura Maria João, fez reduzir o número de convulsões que Paula registava por mês, de cerca de 80 para menos de 20. Numa sessão aberta após a apresentação do documentário, contou um episódio de discussão com o psiquiatra da irmã, em que este a proibiu de usar a palavra “canábis” dentro do consultório.

Maria João Rezende admite que a irmã não está curada, mas acredita que ela “agora tem melhor qualidade de vida” e que se a canábis medicinal tivesse sido legalizada há mais tempo não tinha a necessidade de se sentir uma “contrabandista” sempre que se deslocava ao Brasil para comprar óleo CBD para Paula.

Embora a legalização seja uma boa notícia para doentes como Paula, a regulamentação da legalização da cannabis para fins medicinais ainda não é uma realidade, estando prevista a sua publicação até ao final deste ano.

Bruno Maia, neurologista, confessa os seus receios ao JPN: “O Infarmed e as autoridades de saúde vão regulamentar de maneira a proteger-se a si mesmas e não os doentes”, acredita. Dito de outro modo, “quanto mais difícil for o acesso, mais seguros eles estão que não estão a cometer erros.”

Construir, beber e vestir canábis

Cerveja, t-shirts e tijolos. À primeira vista, parecem não ter nada em comum, mas uma visita à CannaDouro consegue dar uma ideia de como a canábis pode ter que ver com os três.

Vencedora do prémio “Melhor Produto de Cânhamo” da edição do ano passado da CannaDouro, a empresa espanhola Cannabeer pegou numa das bebidas alcoólicas mais antigas da humanidade e reinventou-a, adicionando a canábis como o seu ingrediente (pouco) secreto.

A Feira Internacional de Cânhamo do Porto decorreu na Alfândega.

A Feira Internacional de Cânhamo do Porto decorreu na Alfândega. Foto: CannaDouro/Facebook

Por outro lado, a Natur Wear, uma empresa também espanhola, utiliza as folhas de cânhamo de uma forma pouco ortodoxa. Criou uma linha de vestuário ecológica através da utilização de tecidos de fibras selvagens, como de ortiga e cânhamo.

Dinis Dias, vice-presidente da Cannativa, uma organização que faz estudos sobre o universo canábico, conta num debate aberto ao público que as “as velas das caravelas portuguesas eram feitas com fibra de cânhamo” e que este era produzido em grandes quantidades no Vale da Vilariça, região de Torre de Moncorvo.

A SKREI, uma empresa portuguesa, constrói habitações a partir de cânhamo. Utilizando a madeira do caule da planta, produz betão de cânhamo isolante (BCI), que tem propriedades acústicas e capacidade de autorregulação de temperatura e humidade. Em termos ambientais, o cânhamo permite a construção de betão com um balanço negativo de dióxido de carbono, explicam.

João Carvalho esclarece ao JPN que o cânhamo tem “resistência à humidade e fibras muito longas e resistentes que há séculos, se não milénios, fazem com seja considerado uma matéria-prima para múltiplos usos”.

Equilíbrio e consciência recomendam-se

A vertente recreativa também foi abordada na feira. A Kosmicare, uma organização sem fins lucrativos que trabalha na redução de riscos e danos associados ao consumo de drogas, deu uma palestra para abordar perante os presentes alguns cuidados a ter e os efeitos que podem surtir do consumo recreativo de canábis.

Pedro Monteiro advertiu que os efeitos do consumo variam de pessoa para pessoa, do tipo de canábis, assim como da via de consumo escolhida. O consumo por ingestão, por exemplo – através dos chamados space cakes, manteigas ou óleo de canábis – têm um efeito mais intenso e prolongado. Nestes casos, os efeitos podem podem durar até nove horas a desaparecer.

Segundo Pedro Monteiro, o segredo para o consumo responsável e recreativo de canábis é o equilíbrio e a consciência e defende que o facto de o consumo de cânhamo não ser legal em Portugal afeta a segurança dos consumidores, por muitas vezes estes “não saberem o que estão a consumir”.

Esta segunda edição da CannaDouro contou com mais de 24 empresas participantes e associações canábicas. Segundo o site da feira, a edição do ano passado atraiu 2.500 visitantes nos dois dias do evento.

Artigo editado por Filipa Silva