“O novo regime de proteção de dados está a servir de pretexto para ocultar informações, nomeadamente referentes a contratos públicos, essenciais ao escrutínio da atividade do Estado”. A acusação é de José António Cerejo que, esta terça-feira, assinou um artigo de opinião no “Público”, sobre o tema. No texto, o experiente jornalista de investigação faz alguns alertas para a incompatibilidade que acredita existir entre as novas regras impostas pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), em vigor desde maio do ano passado, e a atividade jornalística.

Esta não é uma posição inédita na classe profissional. Antes da aprovação do RGPD já o Sindicato dos Jornalistas se tinha oposto a alguns dos termos do novo regulamento. “O Sindicato dos Jornalistas entende que o jornalista e a prática do jornalismo devem ser excluídos do referido regulamento”, pode ler-se no documento que a entidade submeteu à Assembleia da República, no âmbito do processo de consulta pública para aprovação da legislação nacional relativa ao RGPD.

Luísa Neto, especialista em Direito Constitucional, diz que o novo regulamento não vem travar o acesso à informação. A docente na Faculdade de Direito da Universidade do Porto explica que há uma proposta de lei, com medidas de execução do RGPD, para aprovação há mais de um ano na Assembleia da República, que poderá resolver algumas das questões levantadas por José António Cerejo.

O jornalista de investigação afirma que a “confusão generalizada que reina em muitos serviços públicos”, desde que o RGPD entrou em vigor, é um “caos”. Luísa Neto contrapõe: “Julgo que o caos de que fala o artigo resulta, em grande medida, do facto de a proposta de lei ainda não ter sido aprovada”. A docente considera que é uma questão temporária até que as normas estejam fechadas.

A proposta do Governo, que deu entrada no Parlamento em março de 2018, foi aprovada na generalidade, tendo depois baixado à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para avaliação na especialidade. Houve propostas de alteração à proposta do Governo por parte de vários partidos e, neste momento, há um grupo de trabalho a discutir e a votar cada uma. No final, será de novo votada em plenário.

José Manuel Pureza, redator do parecer da Comissão competente, afirma que o trabalho deverá estar concluído até ao final do mês, havendo “condições para passar à votação final” global. “Nos princípios de abril, haverá uma decisão final sobre este assunto”, avança o deputado do Bloco de Esquerda ao JPN.

O novo regulamento prevê que o controlo, antes feito pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), passe a ser feito internamente pelas entidades que tratam os dados. “Isto significa que as entidades que fazem tratamento de dados têm maior responsabilidade e possibilidade de ter sanções mais pesadas“, explica Luísa Neto.

Assim, as entidades devem “desenhar os circuitos de informação” de forma a que estes não recolham nem revelem mais dados do que os estritamente necessários. Isto faz com que as entidades tenham mais cautela com aquilo que fazem “sair cá para fora”, salienta a professora.

José António Cerejo destaca as vitórias até agora conseguidas com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que “em prol da transparência”, possibilitaram “algum escrutínio, por parte de um número crescente de jornalistas e de outros cidadãos, sobre os mais variados negócios do Estado”. O jornalista afirma que o RGPD vem contrariar estes “avanços” conseguidos com a CADA.

Luísa Neto discorda e acrescenta que o conflito entre a CADA e a CNPD não é “nada de novo”, uma vez que cada uma das entidades tem competências diferentes. “A CADA tenta, quanto possível, garantir o acesso à administração aberta, e a CNPD corresponde à proteção das exceções a esse acesso aos documentos”, explica a especialista.

Direito à informação vs direito à privacidade

Inerente às questões levantadas está o conflito entre dois direitos – informação e privacidade. De acordo com o Sindicato dos Jornalistas, “não existe fundamento legal, por contrariar o previsto na legislação europeia sobre o direito à informação e à liberdade de expressão, para estender aos jornalistas e à atividade jornalística as matérias constantes neste regulamento”.

Também José António Cerejo defende que “independentemente dos ganhos que as novas regras de proteção de dados possam trazer à salvaguarda de alguns direitos dos cidadãos, elas estão a servir para pôr em causa o princípio constitucional da administração aberta e para tornar o Estado mais opaco“.

Luísa Neto entende que “quaisquer direitos podem conflituar e alguns podem ser restringidos se isso for necessário para salvaguardar outros direitos”. A professora defende que é necessário encontrar formas de equilíbrio entre os dois. “A ponderação, em cada um dos casos, se deve prevalecer o direito à informação ou a reserva da vida privada é a one million dolar question“, remata.

Artigo editado por Filipa Silva