Abril não teria sido Abril sem a ação dos militares, mas para a erosão do regime contribuíram muito os estudantes da época. O JPN reuniu alguns testemunhos que nos ajudam a compreender como foi a época vivida no Porto.

A Revolução de 25 de Abril de 1974, que marcou o fim de 48 anos de ditadura e a instauração da democracia em Portugal, não passou só pela capital.

No Porto, como noutros locais do país, o antigo regime fazia sentir a sua força repressora e foi também aqui derrotado.

E se militares como o Coronel Castro Carneiro – que neste trabalho ouvimos e a quem coube a delicada missão de prender o Chefe de Estado Maior -, tiveram um papel decisivo na revolução, outros, como os estudantes universitários, deram uma ajuda preciosa na erosão do regime, como nos contam Manuela Monteiro Matos e António Regala, ambos antigos estudantes da Universidade do Porto.

António Gonçalves ajuda-nos a compreender como funcionava uma das instituições basilares do Estado Novo: a Mocidade Portuguesa (MP), criada em 1936 e extinta de imediato a 25 de Abril de 1974.

Foi formada com o objetivo de desenvolver a capacidade física, o caráter e o amor à Pátria de quem começava a pensar no mundo à sua volta, sendo direcionada para jovens entre os 7 e os 14 anos.

António Gonçalves tem agora 71 anos e a sua juventude foi vivida debaixo do regime ditatorial, marcada pela participação na MP, entre 1955 e 1966. António descreve a instituição como “o braço direito do Estado Novo”.

Dos tempos na Mocidade, recorda-se de preparar as paradas militares, num movimento de “esquerdo, direito, esquerdo, direito” constante. Participava nas várias comemorações – do dia 10 de Junho ao 28 de Maio, a data da celebração do aniversário do regime – e fez parte da equipa de canoagem da MP, que levava os jovens do Porto ao norte de Espanha para competirem em provas internacionais.

Num período em que a Europa dava uma reviravolta democrática e anti-colonialista (em 1960, a Organização das Nações Unidas [ONU] condenou a política colonial portuguesa), António carrega, dessas competições, a memória de que “a consideração que tinham por nós [portugueses] era pouca”.

A consciência do que era, de facto, a Mocidade e o Estado Novo surge mais tarde. “Só quando começamos a ficar adultos e a ir para tropa, íamos para o nosso emprego, e pelo convívio que tínhamos com toda a gente, é que começámos a falar que o regime que nós tínhamos não era democrático; havia eleições, mas só um partido é que podia concorrer – a União Nacional – e nada mais do que isso”, relembra António Gonçalves.

O Liceu Alexandre Herculano (onde a entrevista foi gravada), como tantos outros, albergava as atividades da MP, com a especificidade da sua localização: próximo delegação da PIDE/DGS, onde é agora o Museu Militar do Porto. Esta proximidade fez com que, em momentos de Revolução, vários alunos lá permanecessem à espera da libertação dos presos políticos, que decorreu a 26 de abril de 1974.

O Maio de 68 chegou ao Porto

Os estudantes foram uma das maiores forças de contestação na época do Estado Novo. Sem liberdade, sem direito ao voto livre e num ambiente de repressão e censura, era assim que Portugal vivia, numa ditadura.

Os movimentos estudantis das décadas de 60 e 70, em Lisboa e em Coimbra, são os mais recordados, mas as manifestações não se restringiram apenas a estas cidades. Os estudantes do Porto também tiveram um papel de destaque na queda da ditadura e na conquista de uma vida livre.

Manuela Matos Monteiro, hoje diretora das galerias Mira, em Campanhã, estudou na Universidade do Porto de 1969 até 1974. 

Participou em múltiplos  encontros de estudantes em locais como a antiga Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (atual Reitoria) e locais adjacentes, como o histórico Café Piolho.

A casa de Manuela era um ponto de reuniões clandestinas e entrada e saída de universitários. Discutiam-se o direito à liberdade, à democracia e o fim da guerra colonial. Produziam-se comunicados para serem distribuídos pelas várias faculdades e bairros sociais, através de um copiógrafo que mantinham escondido na casa. A repressão era real, não era ficção”, referiu.

Ao JPN explicou o efeito que o Maio de 68 teve na academia portuguesa.

A então estudante de Filosofia recorda um episódio de uma manifestação à porta da atual Reitoria do Porto. Mais de 150 estudantes foram fechados numa sala, incluindo o marido, João Lafuente, e levados depois para o Aljube.

Ao aperceber-se da situação, correu para a casa que partilhava com o marido para eliminar o material clandestino que tinha guardado. O medo falou mais alto, porque temia que fossem procurar mais informações e encontrassem documentos e material proibido. “Acabaram por ser libertados, porque eram muitos, eram 150 e então, por serem muitos, eles não queriam prender, dava muito nas vistas”, contou.

Recorda também o “incrível” boicote à Queima das Fitas de 1970.

A queda do regime foi, assim, um respirar de alívio e uma reviravolta no quotidiano da população. “Estava pronta para fugir para França, porque o João tinha sido chamado para a guerra colonial e no dia a seguir, deu-se o 25 de Abril. Nem queria acreditar”, sublinha. 

A luta foi complicada, mas é graças também à persistência e reivindicação dos estudantes que hoje todos temos direito a uma coisa tão simples como a palavra. “Uma janela aberta para um céu, que não tínhamos bem a noção que existia”, acrescentou Manuela sobre o dia em que a liberdade finalmente chegou.

Também António Regala, que entre 1971 e 1974 estudou na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, se manifestava frequentemente contra a repressão. Agora com 67 anos relembra os tempos em que viveu na República dos Lysos, um ponto de reunião entre jovens descontentes com a situação do país.

Os moradores da república, assim como outros estudantes que se juntavam lá, eram “muito interventivos politicamente”, conta António Regala, que sentia que estavam sempre debaixo do olhar atento da polícia política.

O antigo estudante tinha uma máquina de impressão, sendo que muitas vezes recebia a função de imprimir cartazes para mobilizar pessoas para manifestações clandestinas. Caso fosse apanhado pela Direção-Geral de Segurança, “ia a república toda presa”, conta António Regala.

Inevitavelmente, acabou por ser chamado para fazer a recruta e, consequentemente, combater na Guerra Colonial. Chegou a Mafra no dia 23 de abril de 1974 e, da sua camarata, ouviu “barulho e os portões a abrir”.

A Revolução dos Cravos foi a uma quinta-feira e os recrutas tiveram licença para ir a casa no fim de semana, algo pouco usual na primeira semana militar. “Quando viemos embora no carro, as pessoas acenavam-nos. Era uma coisa espetacular, um sentimento que nunca mais esqueci”, remata António Regala.

“Senti sempre que o povo estava connosco”

E sem os militares, abril nunca teria sido abril.

O Coronel Castro Carneiro, à altura capitão, lembra que a Revolução dos Cravos começou muitos meses antes. Recorda uma data em particular: 1 de setembro de 1973. Então a cumprir serviço em Angola, no contexto da Guerra Colonial, encontrou-se numa pastelaria com outros militares. “Tudo isto começa com um decreto do ministro Sá Viana Rebelo”, conta o Coronel ao JPN, ao explicar como um decreto estatal concedeu promoção a oficiais que não tinham estado na academia militar.

Ao sentirem-se ultrapassados por oficiais sem a mesma experiência começaram a reunir-se e a questionar a guerra, a militarização e as suas próprias vidas. “Íamos perder a guerra de qualquer jeito e íamos ser nós os responsáveis”, acrescenta.

As reuniões em Angola mantiveram-se depois no Porto, onde foi colocado no CICA, o Centro de Instrução e Condução Auto Nº1, considerado o quartel-general do 25 de Abril no Porto.

Foi na madrugada do dia 25 de Abril, há 45 anos, que o Coronel Castro Carneiro foi destacado para a missão delicada de deter o Chefe de Estado Maior da Região Militar do Norte

Após a detenção do Chefe de Estado Maior, o Coronel Castro Carneiro voltou para o quartel e continuou, ao longo do dia, na cidade do Porto. Com emoção, recorda sobretudo o primeiro 1º de Maio que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. “Senti sempre que o nosso povo estava connosco”, afirma.

Do Porto a Gaia, foram várias as localizações determinantes tanto antes como durante a Revolução. Os quartéis militares, à altura importantes para a manutenção e preservação dos serviços militares e de guerra, e posteriormente tomados aquando da queda do regime, preservam-se até hoje. Na Praça da República está o Quartel General da Região Militar do Norte, e do outro lado do rio, em Gaia, encontra-se o Quartel da Serra do Pilar.

Também cafés que continuam, até hoje, a ser conhecidos e visitados por tantos tiveram um papel relevante na resistência ao regime de Salazar. Era no café “A Brasileira” que os membros do Partido Comunista, então clandestino e ilegal, se encontravam muitas vezes.

A sede de candidatura do General Humberto Delgado, natural de Olivença, foi também estabelecida na baixa do Porto. Foi perto da Praça Carlos Alberto, na que é hoje a Charcutaria “O Porquinho”, que o “General Sem Medo” preparou e apresentou a sua candidatura às eleições presidenciais de 1958.

Artigo editado por Filipa Silva