Fado Bicha é o projeto de Tiago Lila e João Caçador. Com uma vertente interventiva, dão voz à comunidade LGBTI, fazendo interpretações que trazem os problemas atuais às canções de grandes fadistas. Este mês, lançaram o primeiro single e "depois de tanto torcer, o fado ainda está lá". Entrevista com o duo num bar em Lisboa.

Foi em Lisboa e no 25 de Abril que encontrámos Fado Bicha. Nos Anjos70, João Caçador e Tiago Lila sentaram-se para uma conversa com o JPN depois de um concerto, com casa cheia, que serviu para angariar fundos para a cirurgia de redesignação sexual de Aurora Pinho, uma artista trans da grande Lisboa.

Levou-nos até ao duo “O namorico do André”, o primeiro single de Fado Bicha. Também por causa dele, a conversa fugiu à música e acabou por centrar-se em questões de género, representatividade e preconceito.

Primeiros contactos com o fado

A relação de João Caçador, guitarrista de 29 anos, com o fado nasceu de uma breve passagem pela tuna. Por sentir que não era o seu espaço, trocou engenharia civil por estudos de jazz e música moderna. Já Tiago Lila, licenciado em psicologia, conta que a ideia de fazer Fado Bicha naceu fora de portas, quando esteve num campo de refugiados na Grécia.

Com 34 anos, o fadista recorda voltar para Portugal com vontade de cantar e de se inscrever na escola de fado da Mouraria. Por não se encaixar num contexto que define como “normativo”, Tiago Lila desistiu. “Não ia cantar fado a qualquer custo, não me ia apoucar nem ser diferente daquilo que eu era”, sublinha.

O lançamento do videoclipe, a 19 de abril, deveria ter sido motivo de celebração, mas foi mais complicado do que isso. Na sequência da publicação do vídeo, a página oficial de Fado Bicha no Facebook foi alvo de várias denúncias por discurso de ódio. Denúncias que conduziram mesmo ao encerramento temporário da página.

Entretanto, o espaço voltou a reabrir, mas foi enquanto estava encerrado que registamos o lamento de Tiago Lila: “Não deixa de ser curioso que estas pessoas se sirvam de um mecanismo legítimo de regulação dos conteúdos, que pretende evitar discurso de ódio online, para reforçarem, em atos, o seu próprio ódio, conseguindo banir a página de um projeto musical de duas pessoas homossexuais e politicamente engajadas”, disse então ao JPN.

Ambos garantem “continuar a luta na vida offline, todos os dias”.

Assumindo que vocês estão na vanguarda do movimento cultural em que a comunidade LGBTI está a ganhar algum palco, o que significa ganharem uma plataforma para se expressarem, tanto para vocês como para as pessoas que vocês cantam?

Tiago Lila: Quando comecei a fazer Fado Bicha, ao qual eu chamava Noites de Fado Bicha, era um projeto e uma experimentação pessoal. É claro que eu estava ciente da subversão que era, mas não me passava pela cabeça que o projeto se ia profissionalizar ou disseminar da forma que se disseminou. Portanto, para mim era uma experimentação pessoal de coisas que eu queria experimentar, de expressão de género, de cantar e de misturar as duas coisas e experimentar uma série de posturas e abordagens, sentimentos até, que eu queria explorar criativa e artisticamente.

Enfim, o projeto avançou da forma que avançou e, obviamente, adquiriu muitas camadas políticas e de visibilidade e de representatividade que nós abraçamos e que são a nossa missão, mas não perdeu o lado pessoal. Para mim, expressar-me através de Fado Bicha é uma forma de ampliar o meu mundo, é uma forma de botar para fora  o que sentia e que não tinha um canal de expressão.

O facto de eu usar o meu nome, o meu apelido no meu nome de palco, que é Lila… Eu fui vítima de bullying severo durante muitos anos na escola e o nome era sempre uma farpa usada contra mim por ser um nome feminino. O facto de eu usar esse nome como nome de palco é definitivamente uma chapa de empoderamento. O projeto tem muito essas vertentes para nós, de descoberta, de expressão e empoderamento.

João Caçador: Ao nível pessoal, não comecei por pensar em Fado Bicha como uma coisa mais além. Foi um exercício por necessidade.

Tiago: Tu só querias ir lá tocar um bocadinho no início.

João: Mas tinha um sentimento de identidade e pertença. Era um projeto que me fazia sentido por, em experiências passadas, perceber que eu não cabia dentro do fado. Sempre tive de me adaptar para caber dentro dos moldes do fado e o Fado Bicha era esse exercício. Para a comunidade cria-se uma espécie de lugar de fala e de representatividade. Nunca se fala em lado nenhum da música portuguesa.

Concerto no Porto

A 26 de junho, Fado Bicha tem concerto agendado no Porto, nos Maus Hábitos. Até lá, têm outras datas agendadas em Lisboa, Leiria e Évora.

Eu faço algumas sessões nas escolas para falar sobre identidade de género, que há pouco tempo foram muito criticadas pelo PSD pelas questões da ideologia de género. Eu faço essas sessões nas escolas e apercebo-me que mais do que haver uma desinformação e informações erradas sobre questões de género, existe uma completa apatia e falta de pensamento crítico sobre isto e ignorância. Ou seja, existem padrões e, fora desses padrões as pessoas, que muitas vezes já são adultas, não conseguem sequer conceber que pode haver mais identidades. Achei quase escandaloso e de uma falta de preparação tanto dos professores e do Ministério da Educação, como dos pais e dos alunos. É transversal.

Há uma incapacidade total de saber lidar com os afetos, com o corpo, com todas as expressões e dimensões do ser humano. Achamos que o Fado Bicha é um lugar de fala importante, primeiro para as pessoas com identidades não normativas, orientações sexuais não normativas, que podem encontrar essas expressões no Fado Bicha, que não existe em mais lado nenhum.

“Fui vítima de bullying severo durante muitos anos na escola e o nome era sempre uma farpa usada contra mim por ser um nome feminino. O facto de eu usar esse nome como nome de palco é definitivamente uma chapa de empoderamento.”

Fado Bicha ao vivo no Aurora, agora!

Fado Bicha ao vivo no Aurora, agora! Foto: Pedro Borges de Oliveira

Desde os primeiros concertos a solo até agora, ao lançamento do primeiro single, o que mudou?

Tiago: O primeiro concerto que eu dei estavam cerca de quinze pessoas, três eram amigos meus e dois eram duas turistas que estavam a passar e ficaram. No segundo, já ficou cheio. O sítio também era muito pequeno e já ficaram pessoas de fora. A ideia também é muito apelativa para um pequeno conjunto de pessoas. E mudou muita coisa! Ao nível da qualidade, posso dizer que evoluí muito. Eu não cantava. Começar a cantar com muita regularidade, juntar-se o João com formação musical. Com esse apoio e experiência que ganhámos, posso dizer que mudou muito a qualidade daquilo que fazemos. As coisas que eu escrevo também, e mesmo o meu à vontade. Eu tinha algum pudor e ainda tenho algum pudor.

Quando nós estamos em palco, artistas e músicos, temos ali um momento privilegiado. Podemos dizer o que quisermos ao microfone que as pessoas à partida vão ouvir. Pode haver algum diálogo, alguma troca, mas é mais tu a emitir e as pessoas a receber. Podes dizer basicamente aquilo que quiseres. É um instrumento muito poderoso e esse poder dava-me pudor.  O que é que eu tenho de especial para poder estar aqui em palco a dizer o que eu quiser e as pessoas ficarem a ouvir? Foi uma coisa que eu fui treinando ao longo do tempo,  perceber o que é que eu posso trazer que seja genuíno e possa ser interessar, como a nível de passagem de informação como dar um espelho às pessoas, como eu sinto enquanto espectador de outros artistas. Eu sentir-me representado por outros artistas em palco e na música que fazem para mim é uma experiência fantástica.

O nosso projeto é musical, mas tem uma vertente conceptual e ativista e de mensagem muito forte que não se desliga nem nunca se delisgará. No dia em que se desligar, acabou, não faz sentido.

“Há uma incapacidade total de saber lidar com os afetos, com o corpo, com todas as expressões e dimensões do ser humano.”

A exposição que este vídeo vos deu, que seguiu o de “Lisboa Racista”, sentem algum apoio da comunidade do fado?

João: Da parte do fado, zero. Antes pelo contrário, são até bastante como anticorpos. Nunca tivemos ninguém do fado a mandar-nos uma mensagem positiva e houve algumas pessoas do fado a mandar mensagens negativas. Acho que uma grande mais-valia e que serve quase como validação do nosso trabalho, é recebermos um grande reconhecimento da parte académica.

Há bastantes universidades e professores que nos convidaram para palestras e a dar aulas. Parece que nesta parte ligada ao fado se criam muitos anticorpos, mas de um ponto de vista académico e científico está uma validação completa por nos abrirem tantas portas.

E acham que era preciso agitar um pouco essa tradição que o fado tinha para começarem a nascer ramificações mais desligadas do cânone?

Tiago: Falando muito abstratamente, acho que é interessante qualquer cânone, seja em que arte for, ser apropriado e usado por pessoas, principalmente se falarmos de cânones que atravessam gerações e que atravessam séculos, como é o caso do fado e das músicas de cariz popular, de camadas sociais mais baixas, como o jazz, como o blues, como o tango, como o samba. Acho que é interessante porque como são músicas que já nasceram há décadas ou séculos parece-me natural que, ao longo do tempo, as pessoas que vão interagindo com esses cânones tragam as suas vivências.

Em relação às questões LGBTI, nós, pessoas LGBTI, fomos e somos sujeitos a uma pressão tão grande ao longo dos séculos que não permitia as pessoas viverem livremente as suas identidades ou as pessoas que amavam. Estarmos num período social em que houve uma grande evolução no que toca a isso, não só legislativa, acho que é de louvar o facto de se pegar nesta bagagem que todos nós temos e que nós os dois em particular sentimos que está tão ligada à forma como nos queremos expressar artisticamente e cruzar as coisas com as nossas vivências e trazer outras histórias e outras expressões e poder brincar com o fado e torcer o fado. No fundo perceber que depois de tanto torcer, o fado ainda está lá.

João: Já nos habituamos que as nossas identidades e as nossas formas de amar são tóxicas para as outras pessoas e são coisas às quais as pessoas não querem estar associadas e que os géneros musicais populares não se querem rever nem associar connosco.

Tiago: Só numa forma jucosa, no máximo.

João: E isso vem de uma ideia de uma higiene moral e social e de que as nossas identidades vêm contaminar e intoxicar essa higiene. É o que acontece nas escolas, quando vamos fazer sessões de esclarecimentos e nos dizem, só por uma pessoa LGBTI ir a uma escola falar sobre alguma coisa, ‘deixem as crianças serem crianças’, como se aquelas crianças não fossem ou não pudessem ser o que elas quiserem. A nossa identidade está acostumada a ser uma coisa doente, uns corpos doentes, que vêm contaminar. O grande problema e a grande questão acho que é essa, também no fado. Mesmo a Carminho, a Marisa, a Ana Moura, que introduziram novos instrumentos no fado, não são bem vistas pelos puristas, mas o grande público do fado gosta e são completamente validadas. A grande questão é esta: é nós trazermos a nossa identidade suja para o fado, supostamente, puro e muito católico. Há pouco estávamos a falar dos temas, mas esquecemos de mencionar que um dos grandes temas é a religião e nós, só por sermos como somos, chocamos diretamente com isso.

Tiago: É claro que quando falamos de reações podemos dizer que tivemos muitas reações negativas e alguns comentários boçais. Isto no início perturbava-me bastante, mas agora já não me perturbam, posso dizer que já não me perturbam. O vídeo de “O namorico do André”  é sobre uma relação de amor entre dois homens, interpretados pelo Jefferson Rocha e o Noé João, um deles brasileiro outro angolano que, no fundo, e isto só pensamos à posteriori, acaba por ser uma invocação das origens do fado, na música africana e na música brasileira que estavam presentes na Lisboa multicultural do início do século XIX. O vídeo representa o envolvimento amoroso de forma que muita gente considera gráfica e eu considero genuína, com o sexo, que faz parte de muitas descobertas e amores juvenis, muitas paixões.  Além de muitos comentários negativos, foi interessante para mim o debate que se criou à volta das reações à expressão da sexualidade no vídeo, tanto online como aquele que eu vi entre amigos.

Para mim, foi interessante ouvir as pessoas a partilhar como se tinham sentido. Algumas partilharam que se setiram automaticamente revigoradas e que acharam estimulante, do ponto de vista conceptual. Depois há outras pessoas que gostaram imenso do vídeo e apoiam, mas que sentiram que a exposição era exagerada e que faz um bocado, como se diz em inglês, um disservice, ou seja, que não ajuda à penetração do vídeo para o mainstream ou até para pessoas que não façam parte da comunidade LGBTI. Nós não temos propriamente uma resposta, nós fizemos como queríamos fazer e foi das poucas coisas mesmo concretas que dissemos ao realizador. Queríamos mesmo que mostrasse as personagens a fazerem amor e a terem prazer uma com a outra. É sobre o direito ao prazer como forma de resistência. Queríamos muito representar isso sem concessões. Acabamos por ir sempre de encontro a conceitos moralistas do que é mostrável, do que não é mostrável, do que é aceitável, do que não é aceitável.

Acham que com o passar do tempo o fado se tornou mais passivo e fechado em normas pouco atuais?

João:O fado passou por vários processos e várias fases, como todos os géneros. O fado começou como uma canção de exorcização do dia a dia, da vida das pessoas marginais, das prostitutas, dos marinheiros. Era uma música considerada menor. Não havia, do ponto de vista artístico, nada que valorizasse o fado e aí havia uma verdade muito bonita. Era o fado para curar o dia a dia, para contar histórias, para ser divertido, para ser triste, para ser aquilo que era a vida. Quando tu cantas a vida, cantas sobre tudo. Não há regras, não há limites.

Historicamente, o fado foi apoderado pelo regime, tornado canção nacional. Algumas pessoas do fado também foram apoderadas ou usadas pelo regime. O fado, de certa forma, formou-se à volta de uma elite, ou aproximou-se de uma elite, de uma classe mais artística ou intelectual. Obviamente, deixou, porque toda a música durante o Estado Novo foi censurada, de se cantar o fado vadio. Era preciso ter uma carteira profissional para cantar fado e isso condiciona tudo o que gira à volta da canção. Fado nunca foi explicitamente e abertamente uma canção de intervenção.

O fado, na minha opinião, esteve sempre um bocadinho atrás. Tem algumas músicas como o “Abandono”, mas sempre que era confrontada, a Amália dizia que não, que não tinha nada político ou carga ativista, ao contrário de outros autores, como Andriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso. Mas o fado nunca teve essa carga.

Queríamos mesmo que mostrasse as personagens a fazerem amor e a terem prazer uma com a outra. É sobre o direito ao prazer como forma de resistência.

O que vocês fazem é adaptar músicas tradicionais do fado às preocupações atuais do mundo LGBTI. Para quando originais, se é que estão a pensar dar esse passo?

João: Sim, é uma necessidade. Já começou com as letras. Ao início eram só pequenas alterações e o Tiago começou a escrever letras inteiras. Obviamente que temos essa necessidade, porque músicas também são uma coisa que se esgota. Temos depois um problema com os direitos de autor. Em muitas músicas esbarramos sempre na vontade dos autores ou dos herdeiros e detentores dos direitos de autor, porque basta eles não quererem e o nosso trabalho vai todo por água abaixo. Já percebemos também que o carimbo Fado Bicha não ajuda muito a que seja aceite.

Tiago: Eu acho que o momento atual em que estamos é um bocadinho dúbio, no sentido em que já estamos a fazer isto há dois anos e temos todo um espólio de canções, não só as que adaptamos, mas também as letras novas que eu escrevi, ou aquelas que cantamos como elas são como a “Conta Errada”. Então, neste momento temos esse espólio todo e nós queremos gravar, porque queremos deixar essa marca e gravar em estúdio. Queremos ter essa experiência e documentar este período.

Ao mesmo tempo, já sentimos a necessidade de partir para outras paragens e eu já escrevi outras letras que não cabem em fados tradicionais. Vamos ter de encontrar outros sons para passar essas mensagens, mas estamos num momento em que queremos gravar estas músicas e sabemos que depois vamos ter de promover o álbum. Temos e queremos partir em digressão para mostrar o álbum. Estamos um bocado a gerir estes dois tempos: entre ter estas canções que já cansam – não cansam, porque nós gostamos sempre de as cantar, mas sentimos que as pessoas cá de Lisboa já estão fartas de ouvir – e fechar o ciclo e passar para o próximo. Mais tarde ou mais cedo isso vai acontecer.

Artigo editado por Filipa Silva