Na secção “Da Curta à Longa”, o Curtas de Vila do Conde atenta ao percurso daqueles que já passaram pelo festival, na passagem ao universo das longas-metragens. Neste caso, foi uma série, realizada para televisão, a fazer regressar ao certame dois realizadores: André Santos e Marco Leão, que assistiram no domingo à antestreia de “Luz Vermelha”, com a exibição dos dois primeiros episódios da série em exclusivo para o público do Curtas.

Os realizadores, ambos com 34 anos, mostraram-se satisfeitos pela série ser transmitida, em primeiro lugar, num festival de cinema.

A obra é inspirada no caso real das “mães de Bragança” – o movimento criado por um grupo de mulheres de Bragança, em 2003, para tentar pôr fim à prostituição local. As mulheres insurgiam-se contra as prostitutas brasileiras que chegaram à cidade, acusando-as de desfazerem muitos lares. Entregaram, até, um manifesto às autoridades, a pedir que pusessem cobro ao alastramento das casas de alterne. O caso foi surpreendente e escaldante ao ponto de Portugal ter feito a manchete da revista “Time”, em outubro desse ano.

“Luz Vermelha” vai estrear na RTP no outono, de acordo com a estimativa dos realizadores, que concederam uma entrevista ao JPN à margem da apresentação dos primeiros capítulos.

A série vai ter 13 episódios que, apesar de inspirados neste caso, serão “um retrato mais interior e psicológico das personagens e não tanto uma visão histórica”, afiançam os cineastas.

A história foi ficcionada e escrita por Patrícia Muller, cuja ideia foi comprada pela RTP. A concretização ficou a cargo de André Santos e Marco Leão, no primeiro trabalho em que não assumem a autoria, sendo também a estreia de ambos fora das curtas-metragens.

A série, em boa parte filmada no estabelecimento “A Sela” Disco Dancing Bar, em Pinhal Novo, Setúbal, conta com a participação de atrizes como Margarida Vila-Nova, Sofia Nicholson e Mariana Badan, que representam, respetivamente, uma jornalista, a chefe das prostitutas e uma rapariga que veio do Brasil para trabalhar no bar de alterne.

São muitas as perspetivas envolvidas, mas será esta uma história de mulheres? Não necessariamente: “é uma história sobre pessoas a lidar com as suas questões existenciais, sejam homens ou mulheres”.

 Como é que nasce o projeto “Luz Vermelha”? Quando é que se deu o clique para quererem abordar ficcionalmente esta história?

Marco Leão (ML): Foi um acaso, porque o realizador que ia trabalhar nesta série, de repente, não podia, e o diretor de fotografia, que já estava a trabalhar na série, era o mesmo que trabalhou nos nossos filmes e, portanto, propôs-nos à produtora Filipa Reis [Vende-se Filmes] e aconteceu.

André Santos (AS): Foi um acaso feliz.

ML: Nós já desde há muitos anos que queremos fazer uma série de televisão. Escrevemos uma série, os dois, e chegámos a propôr à RTP. Eles acharam o projeto demasiado arrojado para a linha de programação que eles tinham na altura. Entretanto, quando nos convidaram para isto, nós pensamos: “Ok, não conseguimos pôr o pé de uma maneira, entramos de outra e vamos realizar isto”. E, obviamente, esta série, não sendo escrita por nós, tem uma série de coisas que não são, se calhar, como nós teríamos escrito. Mas, por outro lado, há muita da nossa loucura injetada na série. Os dois primeiros episódios são bastante mais clássicos, à medida que isto avança, vai-se expandindo o universo da coisa.

Margarida Vila-Nova é uma das atrizes da série.

Margarida Vila-Nova é uma das atrizes da série. Foto: D.R.

 O movimento que ficou conhecido como “mães de Bragança” é central na história, mas até que ponto este definiu a vossa série? Isto é, que outras camadas é que vocês tentaram acresentar ao que é historicamente conhecido?

ML: Este movimento é o que dá o mote, de facto, à história. Mas o que nos interessou e o que influenciou a forma como filmamos foi a forma com a vida das pessoas, ou seja, a vida de uma população toda, é afetada quando há um acontecimento assim incomum. Portanto, como é que as famílias, as prostitutas, os políticos são afetados… No fundo, o que nós fizemos foi um retrato mais interior e psicológico das personagens e não tanto uma visão histórica.

AS: Nós tentamos não dar um ponto de vista apenas. Não é só contar o lado das mães, é contar também o lado das prostitutas e o dos homens. Tentamos, de certa forma, questionar-nos: “Como é que todas estas pessoas envolvivas foram afetadas por isto?”, porque, para mim, seria demasiado maniqueísta pôr a coisa de um lado ou do outro.

ML: Como as mães fizeram, não é? Na carta, é completamente explícito. [Risos]

AS: É muito fácil tu pensares: “Ok, o meu marido de repente vai às prostitutas e eu vou atacar as prostitutas, porque a culpa é delas”. Não, não é, a culpa é do vosso casamento, que não funciona. E é muito fácil tu estares constantemente a projetar a culpa no outro sem olhares, primeiro, para ti, e veres os problemas que tens dentro da tua casa. Para mim, este caso das “mães de Bragança” é exatamente isso, mais uma daquela coisa pudica portuguesa de “isto acontece, mas a culpa é das prostitutas” que, ainda para mais, são brasileiras. Vem logo a xenofobia envolvida nisto tudo. Não, não é, o problema está instalado no casamento. O problema de Bragança não se resolveu, porque os bordéis fecharam em Bragança, mas passaram logo pela fronteira de Espanha. Portanto, todos os casamentos que foram destruídos aqui continuaram a ser destruídos, só que a mais quilómetros. [Risos]

Sofia Nicholson e Joaquim Monchique também contracenam em "Luz Vermelha"

Sofia Nicholson e Joaquim Monchique também contracenam em “Luz Vermelha” Foto: D.R.

Para vocês, o que é mais interessante nesta história?

AS: Para mim, é a dimensão humana, é a forma como cada um foi afetado por isto, é pensar no impacto que isto tem na mulher que se sente traída e que vai responsabilizar a prostituta, mas, por outro lado, eu quero saber também o que é que esta prostituta sente e quem é esta pessoa. E, o que nós tentamos fazer, foi pôr toda a gente no mesmo patamar e ver o drama de cada um. Porque quem está do outro lado também está a sofrer e também tem as suas questões existenciais. Se calhar, aquele marido também tem as suas questões e os filhos, que estão a sofrer, têm outras. E nós tentamos pôr toda a gente assim e olhar para cada um deles para perceber o que é que poderíamos tirar dali.

um homem tirar a t-shirt num filme é “Ai, Jesus”, mas uma mulher, se for preciso, está toda nua, e “Está-se bem”.

A Cecília Henriques disse que “estaria muito reticente em fazer uma coisa destas se fosse tratada por outras pessoas” que não vocês, dado no vosso trabalho haver uma fuga à tentação de retratar todas as prostitutas como vítimas. Esse é um dos grandes propósitos deste trabalho? 

 ML: Também há prostitutas que são vítimas, como é óbvio. Eu acho que o nosso cinema tem sempre um juízo de sensibilidade e, se calhar, foi isso que ela quis dizer. Lá está, nós tentamos não fazer distinções de comportamentos homem/mulher e prostituta/mãe.

AS: Eu já tive essa conversa com a Cecília. Ela sentia que, muitas vezes, quando lia coisas ou via filmes que retratavam a prostituição, havia sempre uma ideia de marginalização. Era o discurso do coitadinho que não tinha poderes sobre a sua condição nem sobre a sua existência. E nós, quando começamos a falar com ela, dissemos que era exatamente o oposto disso que queríamos fazer. Queríamos dar-lhes poder, voz e vida e perceber: “Eu faço isto porque quero, se calhar faço isto porque sou uma merda, ou porque a vida aconteceu e trouxe-me até aqui”. Mas nunca colocamos a pessoa apenas no discurso do coitadinho e da sua vítima. Eu acho que, tendencialmente, generaliza-se com muita facilidade e olha-se para aquela pessoa com condescendência, porque é prostituta. Se calhar, ser prostituta é um emprego como outro qualquer e eu acho que nós devemos esse respeito aos trabalhadores do sexo que estão, constantemente, a ser maltratados pela sociedade. As pessoas olham-nos de lado e isso não é fixe. Eu acho que nós estamos, constantemente, a fazer a mesma coisa – olhar para o outro como sendo outro e esquecer que ele é igual a nós. É um ser humano tal como nós que, se calhar, teve um percurso que o levou até ali ou, se calhar, foi uma escolha que fez e está ali. E nós não podemos julgar isso. É muito fácil cair nesse reduto do julgamento, que foi o que nós nunca quisemos fazer, e acho que foi isso que deixou a Cecília descansada por fazer a série com pessoas como nós. Nós até dissemos, desde o início, que uma coisa que não queríamos era ter a nudez em cenas de sexo. Seria muito fácil de repente pensar: “Ok, temos uma cena de sexo e temos uma mulher toda nua mais uma vez”, como é o mais visto no cinema. Lá está, um homem tirar a t-shirt num filme é “Ai, Jesus”, mas uma mulher, se for preciso, está toda nua, e “Está-se bem”. Porque, efetivamente, isto continua a acontecer. Tu vês a percentagem de nudez masculina versus a percentagem feminina nos filmes ou nas séries, e as mulheres estão praticamente despidas em cenas que, muitas vezes, nem sequer fazem sentido. Enquanto os homens, numa cena de sexo, nem o rabo mostram. E isto é uma coisa que, para mim, não faria sentido, porque se isto é para ser uma coisa sobre igualdade, tem que haver paridade.

isto é uma história sobre pessoas a lidar com as suas questões existenciais, sejam elas homens ou mulheres.

Temos as prostitutas, as mães de Bragança, a jornalista… Isto é uma história de mulheres? Ou é mais ampla do que isso?

 ML: É complicado, porque, de facto, há uma grande incidência de personagens femininas, e determinantes, na história. A jornalista acaba por ser, também, uma personagem que faz desenrolar muita ação. Mas há, também, todo um lado de homens que acabam por deambular nisto tudo. Não sei, acho que é difícil…

AS: Eu percebo que haja coisas que possam cair na ideia de uma história de mulheres, mas eu cada vez mais quero acreditar que vamos viver num mundo em que não temos de estar catalogados pelo género porque, para mim, o género é uma construção social. Dizer que uma rapariga veste cor-de-rosa e que um rapaz veste azul é completamente atroz, portanto, fechar isto em histórias de homens ou mulheres deixa-me assim num sítio complicado. Eu acho que isto é uma história sobre pessoas a lidar com as suas questões existenciais, sejam elas homens ou mulheres. Acho que há questões que são transversais.

O que é que se tem revelado mais complexo até aqui? 

ML: Eu ia dizer tudo! [Risos] É a falta de tempo e não sentir o desgaste ao fim de nove semanas. É filmar e trabalhar muitas horas por dia, muitas horas mesmo. Conseguires manter a identidade e os teus níveis de qualidade, standards muito altos… Isso é que foi difícil. Porque é muito pouco tempo para muita coisa, por causa do financiamento da RTP. É fácil tu, rapidamente, perderes o fio à meada.

AS: Uma coisa que acontece, mas que nós nunca tinhamos feito, nada nestes termos, é o facto de, caso seja para filmar num café e a primeira semana de rodagem for nesse café, e caso tenhamos uma cena do primeiro episódio aí, duas do terceiro, etc, filmamos tudo de seguida. Se for preciso, no mesmo dia, filmamos a primeira e a última cenas da série. E isto, para a nossa cabeça e para os atores…

ML: É preciso uma ginástica mental… Para perceberes as emoções, qual é que foi a cena anterior, onde é que aquilo está situado na história…

AS: Para mim, é sempre o tempo, o fator mais complicado nesta equação.

"Luz Vermelha" marca a estreia de Marco Leão e André Santos na realização de séries para televisão.

“Luz Vermelha” marca a estreia de Marco Leão e André Santos na realização de séries para televisão. Foto: D.R.

Como é estrearem-se em televisão? Tiveram que abdicar de alguma ideia por ser um trabalho para exibido neste meio?  Ou conseguiram, como pretendiam, levar alguma da liberdade do cinema para este projeto televisivo?

ML: Por acaso conseguimos!

AS: Nós fizemos um exercício, antes de começar a filmar, que foi ver séries de televisão para perceber o que eram séries de televisão. Chegamos à conclusão que são o que tu quiseres que seja. E, quando começamos a filmar, percebemos: “Ok, isto vai ser o caminho que estamos a encontrar para aqui” e fomo-nos divertindo a fazer o que nos apetecia. Acho que foi um bocado intuitivo.

ML: Eu acho que sim, que trouxemos muito cinema para aqui.

Em que momento da produção estão? Já terminaram as gravações?

ML: Estamos agora, ainda, a finalizar a pós-produção, já só a fazer aprovações dos episódios. Mas ainda estamos a trabalhar…

AS: Estamos a trabalhar desde novembro!

Já há uma data de estreia prevista na televisão?

ML: Definitivamente, este ano. Acho que será por volta de outubro ou novembro.

Artigo editado por Filipa Silva