Foi com o objetivo de preservar o património ferroviário da antiga estação de Porto-Boavista que 60 cidadãos escreveram, esta terça-feira, uma carta aberta dirigida a diferentes entidades públicas. Em causa está a planeada construção, naquela zona, de uma nova superfície comercial e hoteleira e a possível perda de património histórico e ferroviário.

Os assinantes são a favor da preservação daquela infraestrutura, sita junto à Praça de Mouzinho de Albuquerque, no Porto – mais conhecida como Rotunda da Boavista -, e apelam à classificação da mesma pela Direção-Geral do Património Cultural. O objetivo dessa classificação é uma maior proteção ao nível legal e institucional do equipamento. Os signatários da carta esperam “impedir a concretização do projeto imobiliário do El Corte Inglés” naquela zona.

Está previsto que nasça naquele terreno uma nova superfície comercial e hoteleira do grupo El Corte Inglés, como avançou o jornal “Público“. Porém, esse plano não gera consenso.

Hugo Silveira Pereira – primeiro assinante da carta, investigador na Universidade Nova de Lisboa e estudioso do caminho de ferro em Portugal – explicou ao JPN que “o projeto que está previsto para aqueles terrenos pelo El Corte Inglés não se coaduna com o objetivo de preservar a estação”.

Projeto não traz “nada de novo”

Segundo o investigador, o plano de construir, ali, um centro comercial e um hotel “não iria trazer nada de novo àquela zona da cidade”. Na referida carta pode, ainda, ler-se que “num raio de apenas um quilómetro desde a Rotunda da Boavista, existem pelo menos cinco centros comerciais ativos (Cidade do Porto, Península, Brasília, Parque Itália, Sírius), um abandonado (Dallas) e diversas unidades hoteleiras (Hotéis da Música, Tuela, Meridien, Crowne Plaza, Sheraton, Douro, HF Fénix, ABC e Quality Inn Portus Cale)”.

Assim, Hugo Silveira Pereira reforça a ideia de que os terrenos pertencem, ainda, a uma entidade pública – a IP-Infraestruturas de Portugal. Os assinantes pedem, por isso, ao Ministério das Infraestruturas e Habitação, à IP-Infraestruturas de Portugal, à Câmara Municipal do Porto, à Direção-Geral do Património Cultural e à Metro do Porto que, num esforço conjunto, tomem medidas de proteção daquele património ferroviário.

Deste modo, é proposta a procura de novas soluções para o espaço. Ou seja, “implementar naquele local uma solução urbanística que inclua a preservação dos elementos ferroviários ali presentes, com entrada pela antiga estação da Boavista, que assim manteria a sua função original de acolhimento e ponto de passagem de cidadãos, outrora passageiros do caminho de ferro, presentemente usufrutuários de um espaço público”, como refere o documento.

O Grupo El Corte Inglés assinou, há quase 20 anos, um contrato-promessa de direito de superfície com a IP por aqueles terrenos, tendo pago à entidade estatal 18,5 milhões de euros como sinal. Caso a classificação do terreno avance, esse valor teria que ser devolvido, ao grupo espanhol, em dobro.

Entre os assinantes da carta aberta estão académicos ligados à história e ao património do caminho de ferro em Portugal, entusiastas da ferrovia como é o caso de membros da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de ferro, cidadãos da cidade do Porto e não só.

A realidade ferroviária portuguesa

Do monopólio dos transportes públicos ao abandono, o caminho-de-ferro português mudou muito desde a sua implementação. Rotas que eram consideradas da maior importância no país acabaram por ver muitas das suas estações fechadas e, consequentemente, votadas ao esquecimento.

De um lado, surge a necessidade de preservação daquilo que é património histórico. De outro, a possibilidade de revitalizar esse mesmo património através do turismo. Apesar de muita desta revitalização necessitar de um estudo mais profundo, Hugo Silveira Pereira não duvida das potencialidades da ferrovia portuguesa.

“É preciso dizer que há esforços muito meritórios já realizados que preservaram muita da memória e do património do caminho de ferro – não só ao nível de museus, mas também ao nível de reaproveitamento de antigas infraestruturas, feitos por câmaras locais”, sublinha.

No caso português, o estudioso aponta estações como as de Vila Real, Chaves e Bragança que, apesar da cessação no serviço ferroviário, foram capazes de se reinventar como centros culturais, no caso das duas primeiras, ou reconvertidas para outra função, caso da última.

Já o exemplo negativo mais gritante para o investigador é o da estação do Barreiro, em Lisboa. “Foi uma linha importantíssima nos primórdios do caminho de ferro em Portugal” e está neste momento votada ao abandono, à espera que lhe seja dada uma nova vida, sublinha.

Segundo o estudioso, investigador no Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, há uma quantidade imensa de material ferroviário (seja fixo ou circulante) que é “fulcral” preservar, já que representa uma fase da história de Portugal. Essa mesma valorização, refere, seria benéfica tanto para as gerações futuras como para o turismo nacional e estrangeiro, mas sobretudo estrangeiro já que o turismo ferroviário é muito valorizado noutros países da Europa, como Suíça, Itália, Inglaterra ou Alemanha.

Além do turismo, o caminho de ferro tem o benefício de ser, segundo a evidência científica, o transporte mais amigo do ambiente, capaz de transportar um maior número de pessoas com uma pegada ecológica menor.