“Afinal, o que é que vocês estão aqui a fazer na escola?” A primeira pergunta dirigida por Pedro Cabrita Reis aos estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) não podia deixar de ser provocadora. O artista de 63 anos, com formação na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, encontrou uma sala cheia para o receber, naquela que foi a primeira visita do escultor à FBAUP.

Ao longo de pouco mais de uma hora, falou-se sobre a arte e o ensino da arte, com uma fugaz referência, pelo meio, à polémica “Linha do Mar“, recentemente inaugurada (e vandalizada) em Matosinhos.

Coube a Francisco Laranjo, artista plástico e professor naquela instituição, conduzir a conversa com Cabrita Reis, cuja desenvoltura a falar, aliada a um sentido de humor cáustico, arrancou, periodicamente, gargalhadas à audiência.

O artista deixou desde logo um conselho à audiência: não esperem nada da escola, que esta só serve de algo se for usada como local de encontro. Fica evidente, em poucos minutos, que para o escultor o contacto pessoal, a comunicação, é fulcral na sua perspetiva de formação de um artista: “Eu tirei boa quantidade das cadeiras do meu curso de Belas Artes no café, aquilo era uma plataforma giratória, em alta velocidade, de ideias, pensamentos, de ação, de debate, de radicalismos, de oposição. A evolução é esta espécie de aleatório, de encontros fortuitos, de conversas que não se sabe de onde é que vêm, não são propriamente as aulas”, afirmou.

A escola, para Cabrita Reis, é sobretudo um local de exercício de relações de poder, que serve para formatar e condicionar o aluno. Julga, por isso, que as escolas deviam “poder suicidar-se”, incutir nos alunos um espírito de subversão, recusando a formatação do pensamento.

Cabrita Reis criticou, entre outras coisas, o afastamento que existe em Portugal entre as escolas de Belas Artes e os artistas mais provocadores e jovens, que são, para si, aqueles que vale a pena manter debaixo de olho e que com a sua diferença poderiam “contaminar” os restantes estudantes.

Mas o seu ceticismo não se prende apenas com a academia; é extensível aos curadores e diretores de museus, que, diz, ainda não ousaram “transformar o museu num efetivo território de confronto, um laboratório para o olhar e para o pensamento”, e ao mercado artístico, capitalista, alimentado a obsolescência, que procura manter os consumidores “em permanente estado de histeria e de atenção”, mesmo que isso signifique a repetição do que já se fez antes sob uma nova roupagem.

O trabalho de Cabrita

O escultor falou sobre as suas criações e aquilo que o motiva a criar, quais os objetos em que escolhe focar-se e porquê. Crê que a curiosidade é a ferramenta mais importante do pensamento de um artista, de quem se espera total abertura a toda a gente e a todas as coisas. Diz também que um artista não faz escolhas; a única coisa que se escolhe, diz, é se se vira as costas ao objeto ou se se efetiva o papel de artista, e neste caso, “tão importante é um fragmento de uma conversa como uma sombra projetada na fachada de um edifício, como o que se ouve quando se anda na rua.”

Pedro Cabrita Reis assume-se como um acumulador, ou como prefere chamar-se, um “recoletor”. Apanhar as coisas que se encontra na rua é trazer consigo pedaços de histórias individuais, de vidas que o artista sempre desconhecerá, mas nas quais não consegue deixar de se deter a pensar. “Quem é que tocou nas coisas que estão pela rua? Porque é que se deitam as coisas fora? Ao deitar fora, deitam fora um pedaço de si próprias? Há aquela espécie de eco de coisa estranha que é o lixo que se deixa à porta, os trastes, o entulho. De alguma forma aqueles objetos são meus, porque os escolhi apanhar”, descreve.

“Eu, as de mar, não tenho muito jeito”

A única menção ao recente episódio de vandalismo da sua obra na marginal de Leça da Palmeira aconteceu em tom sarcástico, quando o escultor falava do seu gosto pela pintura de paisagens. Disse preferir preferia as de campo: “Eu as de mar, não tenho muito jeito para isso. É muito difícil pintar o mar, eu pelo menos não me tenho saído nada bem”, ironizou.

Formar novas gerações

Francisco Laranjo realçou a importância do desconhecimento, e da consciência desse mesmo desconhecimento, no processo de formação de jovens artistas. Descrente numa perspetiva eurocêntrica, incentiva os seus alunos a conhecer o que se faz noutras paragens, noutros pontos do mundo, a relacioná-lo com a História. Também Cabrita Reis critica a cultura dominante, americanizada, que, a seu ver, não deixa espaço para o silêncio, para a interiorização, para o isolamento: “o artista só está consigo quando está a trabalhar, e só trabalha para si. A circunstância que faz um quadro ser visto e partilhado não o iliba nem o redime da absoluta solidão e tristeza de estar sozinho a fazer aquilo.”


Exposições de Cabrita no Porto
O escultor de “Central Tejo” tem neste momento duas exposições na cidade do Porto.
Na Galeria Pedro Oliveira podemos encontrar um conjunto de faianças, produzidas pelo artista na fábrica Bordallo Pinheiro, no verão passado. Para ver até sábado (15).
No Museu de Serralves está uma exposição de cariz autobiográfico, concebida especialmente para os espaços do museu, onde o lisboeta expôs pela primeira vez em 1999. “A Roving Gaze (Um Olhar Inquieto)” compõe-se de estruturas metálicas, fotografias, desenhos e objetos tão variados como garrafas, frutos ou partes de automóveis. Até 15 de março.

A propósito de uma intervenção do público, o escultor Pedro Cabrita Reis aproveitou para rejeitar, como já é seu hábito, a ideia de que a arte nasce do sofrimento, que apelida de decadente e obsoleta. Para si, a arte nasce de “uma luz interior que os artistas têm em si e que os leva a olhar para o mesmo mundo que todos os outros olham, mas um bocadinho ao lado”.

Termina na mesma nota de provocação com que começou a conversa: “Não há coisa mais assustadora que o bom senso. Gostaria que ao sair desta sala ficasse no ar uma semente de recusa ao bom senso. As coisas que vos dizem, que vos sopram aos ouvidos: façam ao contrário.” E Francisco Laranjo reforça: “Não é o bom comportamento que traz novas ideias.”

E como para o artista de “Um Olhar Inquieto” o diálogo está na base da evolução, concluiu desafiando os estudantes para que se envolvam mais, incentivando-os a apresentar uma lista de pessoas que gostavam que fossem falar à faculdade. Reciclando a histórica frase de John F. Kennedy, terminou dizendo: “não perguntes à escola o que ela pode fazer por ti, encarrega-te tu de fazer a escola”.

Artigo editado por Filipa Silva