Se para grande parte da comunidade científica é um mal necessário, para muitos ativistas é crueldade animal. O uso de animais na experimentação científica é ainda uma prática recorrente, que o PAN, o BE e o PCP quiseram levar à Assembleia da República, mas ainda não foi desta que as propostas foram aprovadas. O projeto de lei do PAN e os projetos de resolução do PCP e do BE foram chumbados, esta sexta-feira, havendo a possibilidade de discussão na especialidade de uma outra resolução.

O projeto de resolução do PCP realça a necessidade da “promoção do investimento para o desenvolvimento de alternativas ao uso de animais para fins experimentais” e a importância de uma “devida articulação entre as diversas entidades ligadas à experimentação animal”; já o Bloco de Esquerda sublinha a “revisão da composição da Comissão Nacional para a Proteção dos Animais Utilizados para Fins Científicos”.

Do lado do PAN, que apresentou mais do que um diploma sobre o tema, há abertura para trabalhar com ambos os partidos no sentido de uma proposta de consenso. “Reconhecemos que no caso do PCP a proposta é bastante positiva, no caso do Bloco de Esquerda, a proposta deixa muito a desejar, mas não é por isso que deixaremos de dialogar”, observa Bebiana Cunha ao JPN.

As propostas do partido tanto no projeto de lei como no projeto de resolução vão ao encontro das diretivas europeias já existentes que estão a ser “incumpridas no que diz respeito à fiscalização e à redução do número de animais e à redução dos elevados níveis de dor a que estes estão sujeitos”. “Entendemos que é fundamental haver uma política de incentivo à investigação com métodos alternativos e, por isso, sugerimos que 10% das verbas destinadas à investigação em Portugal sejam para quem usa métodos alternativos”, acrescenta a deputada.

O presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, também apela ao diálogo entre os partidos, afirmando que “o ideal é que existisse uma proposta de consenso, tal como no caso do testamento vital”, mas realça que “a Assembleia da República já podia ter feito mais há mais tempo”.

A “falta de meios” e a validade dos testes

Segundo os dados mais recentes da Direção Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV), foram usados 20.623 animais para experimentação científica em 2015, em Portugal. Já em 2016, o número subiu para 31.712, tendo voltado a subir para 52.983 em 2017.

Para Rui Nunes, a razão deste aumento é o “crescimento exponencial da geração de conhecimento científico” no país. O especialista em Bioética tem um “sentimento ambivalente”, porque “é positivo que haja mais investigação”, mas há preocupações “do ponto de vista da ética”.

“A possibilidade de gerarmos conhecimento científico novo não é muito grande e eu temo que os cientistas, porque têm de produzir ciência para terem graus académicos ou financiamentos, possam ser compelidos a ultrapassar determinadas normas éticas com vista à criação de conhecimento científico, e isso não pode acontecer”, explica.

A investigadora do Instituto de Investigação e Inovação da Universidade do Porto (i3S) Teresa Summavielle defende que o aumento se justifica com “uma melhor qualidade do controlo dos animais que são testados”. “A forma como nós hoje em dia reportamos o número de animais usados, e para quê, é feita com muito mais controlo do que era há alguns anos”, sublinha a especialista, que também integra a Comissão de Ética do i3S.

A falta de meios da DGAV é também um problema. “Estamos a falhar, porque não há condições em Portugal para haver a devida fiscalização e é a própria DGAV que diz que não tem meios suficientes para o fazer. Temos relatos de investigadores que avançam os seus projetos sem o parecer que é necessário e isso é incompreensível”, considera Bebiana Cunha.

Há também testes específicos que preocupam investigadores e ativistas. Um exemplo é o Forced Swim Test (FST), em que se coloca o animal, geralmente ratos ou ratinhos, em recipientes com água sem terem forma de fugir. “Os ratos não gostam de água e o comportamento que esperamos é que façam tudo o que está ao seu alcance para tentar sair da tina. Este era um teste para depressão, ou seja, a rapidez da desistência do ratinho de encontrar uma saída, poderia ser um sinal de depressão”, esclarece Teresa Summavielle.

Para o PAN, “está mais que provado que esse teste não tem qualquer transferibilidade para o conhecimento do comportamento humano”, mas a investigadora do i3S realça que o FST só pode ser usado quando associado a outros testes. “Mais recentemente surgiu outra interpretação, especialmente em relação aos ratos, porque são animais muito inteligentes, que sugere que ao verificarem que não há uma saída, os ratos adotam uma estratégia de poupança de energia”, acrescenta.

A criação de um Conselho Nacional e os métodos alternativos

Já existe a Comissão Nacional para a Proteção dos Animais Utilizados para Fins Científicos, mas o PAN quer ir mais longe. O partido apresentou uma petição para a criação de um Conselho Nacional da Experimentação Animal, que já conta com mais de 4 mil assinaturas. A ideia é que a estrutura seja independente e siga o modelo dos 3 R’s.

Diferente dos 3 R’s de “Reduzir, Reutilizar e Reciclar”, esta política de William Russell e Rex Burch é menos conhecida. Criada em 1959, refere-se à ética animal nas experiências científicas e incorpora: a Substituição do uso de animais; a Redução dos métodos que precisam de seres não humanos para obter informação representativa e o Refinamento, ou seja, a diminuição da severidade de processos dolorosos aplicados aos animais (em inglês: Replacement, Reduction e Refinement).

Mas a verdade é que a proposta do PAN não é uma ideia nova. Em 2016, a Associação Portuguesa de Bioética também apresentou no parlamento um diploma para a criação de um Conselho Nacional, num modelo semelhante ao do Conselho Nacional de Procriação Assistida.

Rui Nunes explica que as três grandes vantagens da criação de um Conselho são a centralização da regulação num organismo que aplique as mesmas regras para todos, a função pedagógica perante os investigadores sobre as regras éticas e a independência. “Ao ser independente, o organismo fica muito mais legitimado, porque não presta contas a ninguém, a não ser periodicamente à Assembleia da República. O organismo não pode ser um braço do governo para não sofrer influência de ninguém e para se evitar a captura do regulador”, esclarece.

Se a falta de meios da DGAV é uma dificuldade, no caso do i3S há controlo interno, sendo que “nenhum investigador pode usar algum tipo de animal sem primeiro passar pela comissão de ética experimental”. Segundo Teresa Summavielle, é precisa “uma licença em que todos os procedimentos a que os animais são sujeitos estão bem especificados e justificados”, mas sublinha que não cabe aos investigadores “determinar se de facto a questão a que o investigador quer responder justifica o uso dos animais”.

Uma parte importante do formulário que os investigadores têm de preencher é explicar também o porquê de não se usarem métodos alternativos como a experimentação com células, linhas celulares em cultura ou biologia sintética.

No entanto, os testes em animais “vão ser sempre necessários”. Teresa Summavielle realça que “as pessoas têm de ter noção que a maioria dos investigadores não gosta de usar animais” e que é um “mal necessário”. Já a deputada do PAN explica que quando o partido fala em substituição, refere-se a “sempre que seja possível, ou seja, quando não há necessidade expressa de usar animais”.

“Quando está em causa um avanço significativo da Medicina, existe algum consenso social de que é proporcional usar animais na exata medida que sejam indispensáveis para o efeito”, começa Rui Nunes. “A sociedade tem de perceber que caminho quer seguir, porque não se trata apenas da experimentação animal, trata-se de todos os domínios das nossas vidas, seja a alimentação, ou a experimentação. Temos de encontrar um equilíbrio fora do radicalismo”, conclui.

Artigo editado por Filipa Silva