Os vizinhos do antigo Bairro do Aleixo, na zona ocidental do Porto, e outros nomes de relevo na cidade denunciaram à autarquia e ao Ministério da Saúde, numa carta aberta, aquilo que consideram ser “um grave problema de saúde pública”. Em causa, está a “disseminação descontrolada da venda e consumo de drogas duras em bairros residenciais, junto de escolas, em jardins públicos e outras zonas de lazer” – descreve o documento a que o JPN teve acesso.

Entre os signatários estão nomes como Sérgio Fernandez, Álvaro Siza, Rosa Maria Martelo, Ana Luísa Amaral, Jorge Campos e André e Paula Calapez, que denunciam os problemas na zona da Foz.

Na carta, aponta-se que o problema surge “na sequência da demolição Bairro do Aleixo”, que “após décadas de abandono se tinha transformado numa espécie de interposto de venda de estupefacientes”.

Agora, o consumo e tráfico de droga deixou de estar circunscrito àquele bairro e migrou “para diferentes zonas habitacionais da cidade”, com um “à-vontade” que os signatários classificam de “surpreendente, pondo em causa as condições de habitabilidade de vários bairros e degradando a vida quotidiana dos mesmos”.

Assim, na carta pede-se que, “num quadro de convergência de todos os poderes nacionais e locais”, se aja com a “celeridade” e os “meios necessários” para “conter e controlar uma situação a todos os títulos insalubre, degradante e insustentável”, e que “piora dramaticamente de dia para dia”, tornando-se num “grave problema de saúde pública”.

Carta aberta pode dar origem a abaixo-assinado

“O problema é que nós antes não víamos, não sentíamos, e não tínhamos consciência tão clara disso – porque não se passava à nossa porta. Normalmente, passava-se um bocadinho longe e escondido”, conta o arquiteto Alexandre Alves Costa, um dos subscritores, ao JPN. “Agora está ali; temos de ver todos os dias. E isso chamou a atenção para uma quantidade de pessoas que estavam ali, atentas, a ver o que é que se passava”.

“Quando estão à nossa porta, a gente não pode negar a sua existência”, reforça o arquiteto. Alves Costa salienta, também, que a iniciativa começou por vir de “um grupo restrito” que quis “espoletar a discussão – e parece que deu algum resultado”. E admite o interesse por parte dos signatários em “lançar um abaixo-assinado mais amplo, que não seja apenas dos que moram ali ao lado, e que estão a ver, mas de toda a gente”.

“Estamos interessados em encontrar pessoas que não morem ali, que é para não se pensar que são uns coitadinhos que estão ali, a viver, com medo. Daqueles tipos da droga todos temos medo. Não é brincadeira”, confessa.

“Parecem os donos daquilo”

Aos olhos de Alexandre Alves Costa, o jardim que se estende diante do Clube Fluvial Portuense foi mudando. Encaixado entre o Parque da Pasteleira, a norte, e o Jardim do Calém, a sul, o jardim repleto de árvores “tem um passadiço onde se passeava muito a pé, ciclistas e crianças, famílias e jovens”. Mas, neste momento, “passa lá muito pouca gente”. 

O arquiteto descreve ao JPN um ambiente “a degradar-se de uma maneira terrível”, à medida que conta como se vão encontrando “seringas” e “panos ensanguentados” numa zona outrora “simples, sossegada, calma, simpática” – e que na, sua perspetiva, se está a transformar numa área “violenta”.

Com o fim do Aleixo, “as pessoas que tiveram direito a casa, saíram para outros sítios. As que não tiveram direito a casa – que eram, enfim, as pessoas ligadas, mais ou menos, ao negócio da droga – não tiveram reenquadramento algum”, critica o arquiteto.

Posto isto, “os drogados, principalmente esses, mudaram-se de sítio, pura e simplesmente. Mudaram-se e espalharam-se por uma zona aprazível, simpática, e que agora não o é.”

É um cenário diário. À noite, os vendedores apregoam, alto, a droga. Estão ali numa esquina, parecem os donos daquilo – e são de alguma maneira”, reflete.

Se os problemas são atribuídos ao desmantelamento do antigo bairro camarário do Aleixo – decidido pelo ex-autarca, Rui Rio -, Alexandre Alves Costa sublinha a falta de prevenção dos últimos executivos para aquilo que o desaparecimento das torres poderia causar, afirmando que nem o executivo de Rui Rio, nem o de Rui Moreira, fizeram algum trabalho preventivo, lamenta o arquiteto.

Mas a culpa não é apenas local, reside, antes, na inação, “seja do Ministério da Saúde, seja da câmara municipal”, diz Alexandre Alves Costa, referindo que, até agora, o que tem visto é “chutar uns para os outros” a responsabilidade.

“O que nós pensamos é que a câmara tem obrigação de insistir com o Ministério da Saúde se acha que o Ministério da Saúde é o responsável. E não tem feito suficiente pressão”, confessa.

No jogo do empurra, a “verdade é que a sala de chuto não é feita”. A isto, junta-se a ausência de “instituições de acolhimento”, onde “as pessoas pudessem drogar-se, porque as pessoas não têm culpa, são dependentes, e precisam de ter condições de vida”, reconhece o arquiteto.

“Estamos a discutir a eutanásia, também precisamos de discutir as condições de vida dessas pessoas, que não têm uma vida digna.”

À procura de “uma ação em profundidade”

Esta segunda-feira, fonte do Ministério da Saúde confirmou ao JPN que a carta deu entrada no gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, não tendo sido possível obter mais esclarecimentos por parte da tutela, até ao momento.

Para já, Alexandre Alves Costa conta que a resposta surgiu com algum reforço policial: “A resposta sabe o que foi? Foi começarmos a ver polícias de vez em quando por lá. Hoje [segunda-feira] de manhã, vi os polícias a levantarem os sem-abrigos do chão, dois guardas-republicanos a cavalo, enfim, a assustar não sei quem, porque os vendedores de droga não se assustam com isso”, disse, esta segunda-feira, ao telefone.

O arquiteto reforça que a iniciativa que culminou na carta aberta “não é uma ideia para criar alguma repressão” sobre os consumidores, e que ver a “polícia desalojar um sem-abrigo” não corresponde ao que os signatários pretendiam com o envio da carta.

Procura-se, antes, “uma ação em profundidade”, explica Alexandre, alertando, contudo, que essa ação não deve encarar os consumidores de droga como um problema, mas antes prestar-lhes assistência.

“O que nós solicitamos é que haja repressão a sério sobre os dealers [traficantes], sobre as pessoas que vendem droga e que estão a criar uma situação insustentável no bairro, e que dêem uma saída digna àquela gente que está ali a drogar-se”, diz Alexandre Alves Costa.

Na carta, socorrem-se da lei para pedir a intervenção das autoridades: “O consumo de drogas foi descriminalizado pela Lei nº 30/2000 (de 29 de novembro), mas não foi despenalizado. A lei relativa à descriminalização prevê detalhadamente as ações a serem desenvolvidas no sentido de minimizar o consumo, designadamente na via pública, e também no sentido de identificar e acompanhar os consumidores”, pode ler-se.

Essas ações, acrescentam, citando a legislação, “devem envolver um trabalho conjugado das autoridades competentes e dos vários órgãos associados aos ‘programas de redução do consumo de substâncias psicoactivas, na prevenção dos comportamentos aditivos e na diminuição das dependências’ atualmente delineados pelo SICAD (Decreto-lei 17/2012)”.

Todavia, afirmam ainda que “esses órgãos de apoio, enquadramento e integração parecem não estar a funcionar devidamente na nossa Cidade, se é que existem e têm meios para atuar, o que faz com que a identificação e encaminhamento destas situações se torne improcedente.”

Apesar de na carta considerarem como “positiva” a “anunciada criação de uma sala de consumo”, os subscritores do documento entendem que a medida é “manifestamente insuficiente perante uma situação tão vasta e complexa”.

Alexandre Alves Costa vai mais longe e diz que “o problema não ficará resolvido com salas de consumo assistido”, apesar de, por enquanto, estas serem uma alternativa que permitirá dar “condições de higiene e de vida àquelas pessoas”. 

“Enquanto eles não forem tratados do mal que sofrem – porque aquilo é uma doença -, podem, pelo menos entretanto, ter condições de vida que sejam minimamente dignas, e ter onde dormir, ter onde comer, ter onde se lavar, e ter onde se vestir – e drogar-se em condições de higiene.” Isto porque, afirma, a situação atual é “um perigo tremendo”.

“É um perigo porque as seringas estão por todo lado. E a gente sabe que há reaproveitamento dessas seringas, e sabe o que isso significa em termos de transmissão de doenças. A situação é, do ponto de vista sanitário, gravíssima, e, do ponto de vista humano, mil vezes mais grave”.

Agora, resta aguardar pelos desenvolvimentos do encontro entre a autarquia e a ministra da Saúde, que aconteceu no final do dia desta segunda-feira. Após a assembleia municipal que se realizou à noite, o gabinete de comunicação da autarquia confirmou à agência Lusa que a câmara já reuniu com a tutela, embora não tenha adiantado qualquer pormenor sobre o encontro.

Durante a sessão da assembleia, o deputado municipal André Noronha, do movimento de Rui Moreira, disse estar “totalmente de acordo” com a carta aberta, adiantando que a autarquia tem feito “aquilo que pode”.

Alexandre Alves Costa considera “muito urgente que cheguem a um acordo – e não faltam aí casas que possam ser transformadas em instituições de apoio. A questão é que haja vontade política do Ministério da Saúde, uma vez que a câmara afirma que tem vontade para resolver o assunto, mas não tem nada com isso. Eu acho que têm, eu acho que têm todos com isso. Todos temos com isso.”

Artigo editado por Filipa Silva