No dia 9 deste mês, os termómetros da Antártida marcaram os 20.75ºC. Segundo um comunicado do cientista Carlos Schaefer à Agence France-Presse (AFP), o responsável pela medição “nunca viu uma temperatura tão alta como esta na Antártida“. Em declarações ao JPN, Assunção Araújo, docente de Geografia Física na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), pede menos alarmismo. Por outro lado, Irina Gorodetskaya, investigadora de meteorologia e clima no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), alerta para o degelo.

O último recorde na zona climática da Antártida – que engloba a península, os arquipélagos e o oceano – foi de 19.8ºC em Janeiro de 1982. Passados cerca de quarenta anos, a temperatura aumentou quase 1ºC.

O valor em questão foi captado na ilha Seymour, ao largo da costa da península, através de uma estação de monitorização brasileira. A ilha, que faz parte de um arquipélago da península da Antártida, está situada na zona mais a norte do continente.

Esta descoberta não permite, contudo, retirar conclusões sobre o atual estado da Antártida ou prever as consequências climáticas vindouras. Segundo Carlos Schaefer, tratou-se apenas de uma leitura singular e não de um estudo de longa data. “Não podemos usar isto para antecipar alterações climáticas no futuro“, adiantou o cientista, que confirma ser “apenas um sinal de que algo diferente está a acontecer naquela zona“.

Menos alarmismo

Em entrevista telefónica ao JPN, Assunção Araújo, catedrática da FLUP, defende que há uma utilização “acintosa e alarmista” dos dados recolhidos. A docente não acredita que as temperaturas estejam mais altas atualmente “do que estiveram, por exemplo, em 1975” e interpreta esta medição como uma “temperatura instantânea” pois “não se trata de médias”. “É algo que pode acontecer um dia por condições extraordinárias, não nos vai dizer que o clima está a mudar nessa área“, assegura.

Na leitura destas descobertas apela ao “cuidado” na distinção dos conceitos. “O clima sempre mudou, faz parte do clima. Há muitas pessoas que acabam por confundir clima e condições meteorológicas e são coisas diferentes. O clima é medido a trinta anos e as condições meteorológicas são instantâneas”, explica a docente.

Para a especialista, na origem da temperatura registada poderão estar ventos catabáticos quentes, ou seja, “que vêm dos pontos altos da calote gelada e ao descer todas as massas de ar têm tendência a comprimir e a aquecer”.

Quanto à possível subida do nível das águas – área que “domina melhor” -, não vê motivo de preocupação. “Se a Antártida estivesse toda a aquecer muito, efetivamente poderia haver alguma fusão do gelo da Antártida e isso poderia provocar alguma subida do nível do mar. Essa subida é pouco provável que fosse catastrófica porque é difícil fundir gelo – a Antártida é um sítio onde há camadas de gelo, de dois ou três quilómetros.”

“Efetivamente, se todo o gelo da Antártida fundisse, o nível do mar subia para aí 70 metros. Só que o gelo da Antártida está lá há milhões de anos, uma coisa que está lá há 20 e tal milhões de anos não desaparece de um dia para o outro”, elucida.

Recordes térmicos são demasiado frequentes

Já Irina Gorodetskaya, investigadora do CESAM, reforça que não é primeira vez que se documentam recordes térmicos na Antártida e que a curta periodicidade entre eles é preocupante – “o que é alarmante é que [os registos de temperaturas elevadas] estão a ser demasiado frequentes”.

A investigadora, que fez várias expedições à região da Antártida, aponta como possível causa “uma combinação de excesso de calor e humidade”, provenientes da passagem “de um ciclone”. Ou seja, a “massa de grande humidade que viajava na atmosfera” atingiu precisamente a península devido a rajadas “muito fortes, duradouras e de grande pressão”. Assim, “esta pressão elevada direcionou o calor e a humidade neste corredor atmosférico do ciclone para a península”. Além disso, registou-se também “formação de precipitação” que causou “uma libertação de calor extra” e “contribuiu para a temperatura recorde, mais elevada do que o normal nesta região.”

Sobre as possíveis consequências deste recorde térmico, Irina Gorodetskaya alerta que já é possível observar os efeitos das anteriores leituras térmicas elevadas. Segundo a investigadora do CESAM, “na parte oriental da península da Antártida, já vimos uma desintegração muito significativa da plataforma de gelo Larson [nos segmentos] A, B e, agora também, C. Todos localizados no lado oriental da península da Antártida. Neste tipo de eventos, quando temos este excesso de calor e humidade por vezes está mais quente no lado oriental da península e temos um grande degelo da superfície da plataforma de gelo.”

O aquecimento da região não é um problema recente

O último mês ficou registado como o Janeiro mais quente que a Antártida já viveu, até agora. Mas este não é um problema recente. Os alertas dos cientistas são recorrentes: o aquecimento global no pólo sul está a causar tanto degelo que, eventualmente, iremos testemunhar a sua desintegração. O que significa um subsequente aumento do nível global das águas em pelo menos 3 metros ao longo dos próximos séculos.

De acordo com a World Meteorological Organization (WMO), das Nações Unidas, as temperaturas na península da Antártida aumentaram quase 3ºC nos últimos 50 anos e cerca de 87% dos glaciares ao longo da costa oeste daquela zona diminuíram desde então. A WMO avançou, ainda, que nos últimos 12 anos os glaciares demonstraram uma “diminuição acelerada”.

No dia 06 deste mês, foi também registado um recorde térmico da península em si. Na ponta noroeste da península da Antártida – uma das regiões a aquecer mais rapidamente na Terra – foi registada uma temperatura de 18.3ºC, pela base de investigação argentina Esperanza. Aumentou, então, 0.8ºC desde a última leitura recorde – registada em Março de 2015, num valor de 17.5ºC. A porta-voz da WMO, Claire Nullis, declarou a repórteres em Geneva que “[isto] não é um valor que se associaria normalmente com a Antártida, nem no verão” e alertou para a consequente subida dos níveis das águas.

As imagens satélite da NASA revelam o degelo ocorrido este mês, depois das temperaturas recorde registadas.
As imagens satélite da NASA revelam o degelo ocorrido este mês, depois das temperaturas recorde registadas.

Novas imagens satélite divulgadas pela NASA corroboram o degelo de que fala a investigadora Irina Gorodetskaya. A ilha Eagle, na ponta norte da península da Antártida, perdeu uma quantidade substancial de gelo de 04 para 13 de fevereiro. Na imagem final (direita) pode observar-se uma maior zona terrena descoberta, e dois lagos descongelados no centro. A ilha Eagle situa-se perto da estação Esperanza que registou a temperatura recorde a 06 de fevereiro.

Todas as leituras de temperatura recolhidas no último mês ainda aguardam verificação da WMO. Do outro lado do globo o cenário é semelhante. Ainda em julho de 2019, foi registado um recorde de 21ºC na ponta norte da ilha Ellesmere, no Ártico Canadiano.

Artigo atualizado às 16h00 de 26 de fevereiro de 2020 com o testemunho de Irina Gorodetskaya, investigadora de meteorologia e clima no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM).

Artigo editado por Filipa Silva.