O Plano de Contingência do Governo admite o isolamento obrigatório, mas já há quem, como o presidente da Câmara do Porto, peça que se decrete o estado de emergência. Constitucionalista Jorge Miranda é contra.

O Governo declarou “estado de alerta” esta quinta-feira, o qual se estende até 9 de abril. Escolas fechadas, visitas a lares de idosos suspensas, restrição no acesso a espaços públicos e comerciais, são algumas medidas do executivo, numa tentativa de contenção e mitigação do novo coronavírus.

Esta medida acontece depois de na passada segunda-feira ter sido apresentado um plano de contingência ao Covid-19, onde era admitido o isolamento obrigatório para suspeitos de infeção pelo novo coronavírus.

A Direção-Geral da Saúde (DGS) indica no documento que “o isolamento, quando tecnicamente justificado, pode ser aceite voluntariamente ou, em situações de recusa, ser determinado pela Autoridade de Saúde. As situações desta natureza que ocorram fora do contexto de declaração do estado de emergência, devem ser previstas e tipificadas”.

Não tendo ainda sido decretado o estado de emergência, que este sábado o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, veio requerer, o JPN ouviu três especialistas da área do Direito sobre o que preveem as leis portuguesas nesta matéria, todos antes do Governo decretar o estado de alerta, em que o país, por ora, se encontra.

O constitucionalista Jorge Miranda é o mais enfático a recusar que se decrete o estado de emergência, pela “suspensão do estado de direitos, liberdades e garantias” que significaria.

Por sua parte, Luísa Neto, especialista em Direito Constitucional, é da opinião que existe “justificação constitucional para se poder estabelecer uma quarentena obrigatória”, no caso do coronavírus.

“A Constituição tem uma norma [artigo 27] que se refere exclusivamente a internamento compulsivo ou obrigatório no caso de anomalia psíquica”, começa por dizer ao JPN. “Algumas pessoas têm-se agarrado a esse artigo da constituição para dizer que, no caso do coronavírus, a quarentena não seria possivel. No entanto, parece-me uma leitura apressada e demasiado restritiva”, avalia a professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

A ministra da Saúde considerou na última audição parlamentar ter base legal para ativar o isolamento obrigatório para suspeitos de Covid-19. Marta Temido assumiu ter a “opção de ativar a base 34 da nova Lei de Bases da Saúde”, que permite à autoridade de saúde a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública. No entanto, a DGS observa que a medida “levanta questões de ordem ética e legal, nomeadamente as chamadas medidas de distanciamento social, uma vez que podem pôr em causa a liberdade individual“.

Luísa Neto indica que a Lei de Bases da Saúde e a Lei n.º 81/2009 preveem “a suscetibilidade da vigilância acrescida” nos casos de epidemia, sugerindo uma “articulação com outros artigos da Constituição, que não apenas aquele que se refere ao internamento compulsivo por anomalia psíquica”.

Para o professor Jorge Miranda, que também esteve à conversa com o JPN, a possibilidade de internamento compulsivo não decorre diretamente da evocação do Artigo 27 da Constituição, porque o mesmo se refere a “crimes, arguidos, presos”. “O Artigo 27 devia estar no artigo de saúde e não nas questões referentes à justiça criminal. Aquilo que está em causa é a saúde”, afirma Jorge Miranda.

Para o constitucionalista, a proposta do Artigo 64 também da Constituição, não revela em si “nenhuma inconstitucionalidade”, já que “o internamento obrigatório de pessoas infetadas, ou suspeitas que estejam infetadas, decorre do direito e dever dos cidadãos de defender a saúde e do dever do Estado em promover uma medicina preventiva”.

Jorge Miranda não antevê a necessidade da declaração do estado de emergência para o caso do coronavírus em Portugal. O professor diz que “declarar o estado de emergência é abrir a suspensão do estado de direitos, liberdades e garantias”. “Não, isso não, de modo algum”, enfatisa. “O estado de emergência só se fosse uma calamidade pública horrorosa, mas não estamos nessa situação”, afirma o constitucionalista.

Ouvido ainda pelo JPN, José Carlos Vieira de Andrade, é da opinião que “perante uma doença comprovadamente contagiosa, que crie uma situação de perigo grave para a saúde pública, é permitido às autoridades de saúde pública tomar as medidas necessárias para prevenir a propagação, que podem incluir o internamento compulsivo temporário”. Para o constitucionalista a base legal para a imposição desta medida será baseada a partir do artigo 18.º da Constituição, a Base 34 da Lei de Bases da Saúde, e a Lei 81/2009, artigos 14.º e 17.º

Para o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, “se a situação for de calamidade pública, o Presidente da República pode decretar, nos termos da Constituição, o estado de emergência”.

Se a situação de calamidade pública ou de emergência for decretada, o professor de direito público afirma que as medidas restritivas da liberdade “têm sempre de respeitar o princípio da proporcionalidade”, devendo estar “sujeitas a validação ou controlo judicial, quando não sejam decretadas por um juiz”, sublinha.

O primeiro caso em Portugal do novo coronavirus foi detetado no dia 2 deste mês. À data, estão confirmados pela DGS 169 casos de COVID-19 em Portugal. Vários serviços públicos têm sido fechados, eventos de ordem social, religiosa e desportiva têm sido adiados ou anulados, de forma a controlar o avanço da doença no país.

O que diz a legislação?

Constituição da República Portuguesa
Artigo 19
Suspensão do exercício de direitos
(…)
2. “O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública”.
(…)
5. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites.
6. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.
(…)
Artigo 27
Direito à liberdade e à segurança
(…)
3. “Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
(…)
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”.
Artigo 64
Direitos e deveres sociais (Saúde)
1. “Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.”

Lei n.º 81/2009
Institui um sistema de vigilância em saúde pública e refere que:
Artigo 7
(…)
4. “Para efeitos da presente lei, considera -se emergência de saúde pública qualquer ocorrência extraordinária que constitua um risco para a saúde pública em virtude da probabilidade acrescida de disseminação de sinais, sintomas ou doenças requerendo uma resposta nacional”.
Artigo 17
1. “O membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infeção ou contaminação”.
2. “O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do diretor-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação.
3. As medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei”.
Artigo 18
Em situações de calamidade pública:
“Nos casos em que a gravidade o justifique e tendo em conta os mecanismos preventivos e de reacção previstos na Lei de Bases de Protecção Civil, o Governo apresenta, após proposta do CNSP, baseada em relatório da CCE, ao Presidente da República, documento com vista à declaração do estado de emergência, por calamidade pública, nos termos da Constituição.”

Lei de Bases da Saúde
Base 34
Autoridade de saúde
1. “À autoridade de saúde compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, nas situações suscetíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou das comunidades, e na vigilância de saúde no âmbito territorial nacional que derive da circulação de pessoas e bens no tráfego internacional.
2. Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde:
a) Ordenar a suspensão de atividade ou o encerramento dos serviços, estabelecimentos e locais de utilização pública e privada, quando funcionem em condições de risco para a saúde pública;
b) Desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública;
c) Exercer a vigilância sanitária do território nacional e fiscalizar o cumprimento do Regulamento Sanitário Internacional ou de outros instrumentos internacionais correspondentes, articulando -se com entidades nacionais e internacionais no âmbito da preparação para resposta a ameaças, deteção precoce, avaliação e comunicação de risco e da coordenação da resposta a ameaças;
d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes.
3. Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado.”

Lei n.º 44/86
Regime do estado de sítio e do estado de emergência
Artigo 1
(Estados de excepção)
1 – O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo integra uma edição especial preparada sob a coordenação editorial de Pedro Rios aquando da sua passagem pela redação do JPN como Editor por um Dia.