Foi no dia 5 de fevereiro que o voto polémico teve lugar: a CDU (União Democrata Cristã) de Angela Merkel vai ter de escolher uma nova liderança, depois da saída de Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK), que estava à frente do partido desde 2018.

Em causa está a eleição de Thomas Kemmerich, do Partido Democrático Liberal (FDP), para primeiro-ministro da Turíngia (estado no centro-leste da Alemanha), tendo a CDU votado com o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Esta decisão levou à quebra do “pacto sanitário” dos partidos alemães relativamente à extrema-direita e causou tanto a demissão de Kemmerich como de Kramp-Karrenbauer.

Thomas Kemmerich [Foto: Wikimedia Commons]

A crise dentro do partido chegou depois de, em outubro de 2018, Merkel ter anunciado que não se ia recandidatar à liderança da CDU e à chefia do governo. Angela Merkel, que é chanceler desde 2005 e esteve 18 anos à frente do partido, viu em AKK uma sucessora à altura e capaz de unir as várias fações dentro da CDU. A sua demissão levanta agora questões sobre qual o rumo que a Alemanha vai tomar quando Merkel abandonar o poder no próximo ano.

Para o diretor do Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Thomas Husgen, esta aliança no voto não se deve repetir “por causa das consequências negativas que teve a nível interno, tanto com a CDU como a FDP”. “Neste momento quem faz uma coligação tem mais a perder do que a ganhar, julgo que essa foi uma das lições a tirar”, acrescenta.

Mas Manuel Loff tem uma opinião diferente. O historiador relembra que não há um “pacto sanitário” na maioria dos países europeus e dá o exemplo da vizinha Áustria, que sempre foi um “laboratório político” para direita e onde os “democratas-cristãos governaram muitos anos com a extrema-direita”.

A dificuldade para a CDU de obter uma maioria absoluta apenas com FDP também pode ser um fator na legitimação da AfD. “Creio que aquilo que está a acontecer no interior da CDU é tentar-se acabar com o pacto sanitário para que não haja problema em integrar-se a extrema-direita no bloco do poder. Assim não estão dependentes dos liberais para as maiorias absolutas, o que é muito difícil, porque o partido da esquerda, Die Linke, juntamente com os verdes, a AfD e os sociais-democratas, podem constituir uma maioria negativa contra a CDU e o FDP”, explica.

Para o historiador, o que pode estar a inibir a direita tradicional alemã é o peso histórico. Sendo o “berço do nazismo”, a Alemanha tem “uma responsabilidade história e política que inibiu a direita moderada de dar este passo até agora”.

O crescimento da extrema-direita

Seja na América de Trump ou no Brasil de Bolsonaro, a retórica anti-imigração e de extrema-direita tem vindo a crescer um pouco por todo o mundo nos últimos anos e a Alemanha não é imune a esta tendência.

Depois de em 2013 ter ficado perto da entrada para o Bundestag (parlamento federal alemão), em 2017 a AfD ficou em terceiro lugar nas eleições, tendo conquistado 97 mandatos. O partido de extrema-direita também cresceu nas europeias de 2019, tendo elegido 11 deputados (mais 4 do que em 2014), enquanto que a CDU venceu as eleições com 28% dos votos, perdendo 7,5% dos votos em comparação com o sufrágio anterior.

Thomas Husgen realça que a AfD está a reunir “votos de protesto” que se encontram maioritariamente “na parte leste” do país. “Este partido, que atingiu 20% na Turíngia, atingiu 5% em Hamburgo, ou seja, há um contraste regional bastante forte. Na República Democrática Alemã (RDA, parte leste) pode ainda haver uma cultura política diferente porque houve a continuação de uma certa tradição autoritária, enquanto que na parte ocidental rapidamente se passou para um regime democrático”, afirma.

A atenção mediática também favorece o crescimento da extrema-direita pois “estamos em sociedades em que um número reduzido daqueles que exprimem muito abertamente um sentimento de ódio” tem “uma visibilidade muito forte”, o que dá a ideia de que “têm peso” quando não são “nem de perto nem de longe representativos da comunidade”.

A extrema-direita não morreu com a derrota de Hitler”, elucida Manuel Loff, visto que há elementos que ainda se denotam na cultura ocidental, como “o racismo, a xenofobia, a descrição das migrações como uma invasão, a obsessão com formas muito arcaicas de racismo, e o antifeminismo”.

Para o historiador, depois da II Guerra Mundial, floresceu uma noção de democracia antirracista e antifascista, mas a sociedade tende a descrer nesses valores quando há crises económicas. “Começa-se a entrar numa fase de pessimismo antropológico e o chamado terrorismo islâmico reforçou o preconceito islamofóbico, havendo um discurso de procura de um inimigo exterior, que é simultaneamente um inimigo interior, que é o que os nazis fizeram aos judeus”, considera.

Com esta conjuntura, qual é a oposição que os partidos tradicionais devem fazer? “Não há nenhum consenso entre eles para isolar os sentimentos antidemocráticos e não há sequer consenso sobre se é ou não é aceitável constituir coligações ou governos com a extrema-direita”, afirma.

Um dos caminhos pode ser a “grande coligação antifascista” de sociedades liberais nas vésperas da II Guerra, que definiu o fascismo “como o primeiro inimigo da liberdade humana”. “Também é verdade que, enquanto a sociedade é caracterizada por formas tão evidentes de desigualdade na distribuição da riqueza, uma grande parte da população sente-se perdedora da evolução tecnológica, laboral e económica, e sente que o regresso do autoritarismo é uma boa opção”, revela Manuel Loff.

Já Thomas Husgen deixa um aviso para os partidos ouvirem os seus eleitores e não “fazerem de conta que isso são coisas passageiras e que não têm importância”, porque os cidadãos têm a sensação que “não têm capacidade de intervenção política”. “Seria um grande erro pensar que aquilo que aconteceu nunca mais voltará a acontecer. É da responsabilidade dos democratas não pensar que a democracia é algo adquirido”, apela.

O futuro depois de Merkel

Com a saída anunciada há mais de um ano, Angela Merkel vai deixar um vazio na política alemã. O especialista em Estudos Germanísticos acredita que “ainda muita gente vai ter saudades dela” porque “foi uma política totalmente identificada com a ideia europeia” e “um pólo estabilizador que, de alguma forma, conseguiu evitar certos extremismos”.

Depois da demissão de AKK, há já três candidatos à liderança da CDU, que vai ser escolhida a 25 de abril, em Berlim. O primeiro a anunciar foi Norbert Röttgen, que já serviu como ministro do Ambiente de Merkel, mas acabou por ser demitido depois de um mau resultado eleitoral nas regionais.

Da ala mais próxima de Merkel, destaca-se o centrista Armin Laschet, que lidera a CDU no maior estado alemão. Já Friedrich Merz é um velho rival de Merkel e representa a parte mais conservadora do partido, afirmando-se como o candidato da “ruptura e da renovação”.

“Merz marcou sempre uma oposição muito forte a Angela Merkel e quando ela ganhou as eleições, rapidamente o neutralizou dentro do partido”, começa Thomas Husgen. “Os outros candidatos seriam de continuidade e talvez isso será o ponto mais fraco deles, porque depois de 12 anos de Angela Merkel, naturalmente que há um desgaste, e quem está na linha dela terá possivelmente menos probabilidade de ganhar as eleições”, defende.

Merkel foi também central na União Europeia (UE) durante a crise, o que a tornou numa figura polarizante, principalmente nos países do sul da Europa, como Portugal.

“Algumas vezes acusava-se a Angela Merkel de ser a verdadeira responsável por essa animosidade, mas na verdade era o ministro das Finanças, o Schauble, que puxava pelas contas certas e austeridade. Ela muitas vezes até interveio de uma forma a amenizar os efeitos que essa política podia ter. De maneira nenhuma digo que era ela que representava essa política, mas naturalmente foi responsabilizada por isso, porque era ela que dava a cara”, afirma Thomas Husgen.

Manuel Loff é mais crítico do legado de Angela Merkel, considerando que teve “pesadas responsabilidades na crise das dívidas soberanas e na forma como a União Europeia a geriu”, tendo criado “uma tensão terrível nas sociedades do sul da Europa e da Irlanda”.

“Acho que a Merkel tem responsabilidades muito sérias na forma como a crise se agravou e acho que fez uma gestão particularmente egoísta para a Alemanha da política da UE. É provável que a mudança de atitude da CDU relativamente à extrema-direita ocorra ao mesmo tempo que o fim do período Merkel no poder, e isso pode ter consequências muito sérias nas relações entre os países na União Europeia”, remata.

Artigo editado por Filipa Silva.