Qual é o processo sensorial desencadeado por um beijo? E se beijar não for algo assim tão generalizado para o mundo inteiro? Será que o distanciamento social imposto pela pandemia de COVID-19 vai mudar a forma como encaramos esta demonstração de afeto? O JPN esteve à conversa com Margarida Figueiredo Braga, do Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e com William Jankowiak, um antropólogo norte-americano e co-autor de um estudo sobre o beijo romântico e sexual

O que acontece quando se dá um beijo?

Borboletas no fundo da barriga, um calor que aquece a alma ou a sensação de flutuar na imensidão do universo são alguns dos sintomas informais de quando dois lábios se tocam e um beijo acontece. Margarida Figueiredo Braga vê este fenómeno com um filtro mais científico: através dos estímulos sensoriais que despoleta e do que representa.

A especialista em Medicina Psicológica começa por explicar ao JPN que “há áreas do córtex somatossensorial [zona do cérebro onde as sensações são representadas] que estão envolvidas no processamento e na aquisição de estímulos sensoriais”, e que “a extensão dessas áreas é diferente para diversas áreas corporais”. Ou seja, o tamanho da respetiva área do córtex somatossensorial não é proporcional ao tamanho da área no corpo, mas sim à sua capacidade sensorial. 

Margarida Figueiredo Braga reflete sobre as comparações que podem ser feitas sobre o tamanho das projeções corticais. “Aquela que corresponde à face – ao nariz, aos lábios, à língua e ao interior da boca – é particularmente extensa e muitíssimo relevante quando a comparamos com as de outras áreas do nosso corpo maiores”. Assim, a zona dos lábios, que têm uma grande representação no córtex somatossensorial, é “particularmente rica, o que significa que a quantidade de estímulos que consegue receber e processar é muito maior, em termos quantitativos e qualitativos”.

Como explica a especialista, a estimulação forte desta zona do corpo produz “alterações biológicas e bioquímicas”. A região é “particularmente rica em receptores do neurotransmissor dopamina, que está ligada ao processamento do prazer, das emoções positivas e da recompensa”. Já ao nível hormonal, dá-se um aumento da produção da oxitocina – “que é a hormona da relação e do vínculo afetivo” – e de “hormonas ligadas à reprodução e à sexualidade”. Por outro lado, também “o cortisol – que está associado ao stress, à ansiedade, ao medo – baixa quando beijamos”. Neste sentido, Margarida Figueiredo Braga conclui que “há todo um impacto em termos de comportamento, em termos de emoções, e de capacidade de comunicação, que o beijo permite”.

Reconhece que o beijo pode ter nascido da “relação mãe e filho”, e que, “embora especulando”, possa estar ligado “à sobrevivência e à alimentação”. No entanto, admite que “obviamente foi criando um impacto e uma relevância muitíssimo grande na criação de laços, na relação e também na comunicação não verbal”. Independentemente de como surgiu, a especialista destaca a importância da informação táctil muito presente nos lábios: “é muito relevante para a criação de interpretações a nível cognitivo, a nível afetivo e a nível emocional entre humanos. Portanto, este papel do beijo é aqui particularmente importante – o de vínculo”. 

Há, contudo, outras funções biológicas associadas ao beijo, menos inteligíveis, relacionadas com a escolha de parceiro sexual. Este comportamento “permite interpretar também o ambiente hormonal do parceiro – em particular, por exemplo, a fase do ciclo ou a capacidade reprodutiva do parceiro e obviamente também o grau de excitação em termos sexuais”. A produção de saliva, transmissível pelo beijo, é também uma ferramenta de leitura: “está ligada à área da imunidade e ao desenvolvimento de anticorpos e de mecanismos para lidar com os desafios imunológicos – é também muito importante”.

Um beijo não é só um beijo: é um grande estímulo sensorial que envolve “temperatura, odor, sabor e pressão – que estão associados ao beijo em zonas extremamente ricas [como os lábios]”, remata Margarida Figueiredo Braga.

E se alguém disser que, afinal, não é assim tão comum beijar?

O investigador norte-americano desenvolveu um interesse particular pelo estudo de “universais humanas”. Uma destas verdades tomadas como universais é a de que todas as comunidades trocam beijos românticos. Em 2015, William Jankowiak, em conjunto com mais dois investigadores, publicou o artigo “Is the Romantic–Sexual Kiss a Near Human Universal?” – um estudo sobre a presença do beijo em várias culturas sociais. “As pessoas pensam que isto é uma verdade universal – o que pode ser mais natural do que beijar alguém? – e afinal não é”, reflete. 

Concluiu-se, então, que o beijo romântico não é uma universal humana, nem está lá perto. Apesar de terem encontrado demonstrações de beijos em várias comunidades, o beijo romântico e sexual foi documentado em apenas 46% das 168 culturas estudadas em vários pontos do mundo.

O papel da roupa na troca de afetos

Para provar ou refutar “verdades universais”, o antropólogo aponta que é preciso “olhar para os caçadores-recoletores”, ou seja, a humanidade na sua organização mais pura e primordial. “Eles sim são as pessoas menos influenciadas no mundo”, esclarece.

Durante a investigação, estudou várias comunidades de caçadores-recoletores, onde se comprovou a existência de amor romântico: “ouvi muitos relatos de pessoas a matarem-se por amores perdidos”. Conta que “as pessoas eram muito abertas em relação à sexualidade, faziam tudo, mas nunca se beijavam”. Isso levantou uma questão: se havia amor, e se havia sexo, porque não havia beijo? A resposta pode estar nas condições climatéricas, avança o antropólogo.

Nos trópicos “as pessoas não usam muita roupa. Se não estiverem vestidas vão tocar mais no cabelo, nas mãos, nas orelhas. Eles não o fazem com os lábios”, explica. Jankowiak oferece um exemplo antagónico, o das áreas polares. “Porque é que na Sibéria os esquimós dão beijos? Eles estão tão vestidos que a única forma de terem contacto táctil é através da face. Pelo contrário, nos trópicos, há múltiplas maneiras de o fazer”, compara.

O prazer está no saborear dos momentos que perduram

O estudo desvendou que há uma forte correlação entre a frequência do beijo romântico e sexual e a complexidade social da sociedade em questão. Isto é, quanto mais socialmente complexa a sociedade, maior a frequência com que se dão beijos.

Jankowiak associa a alta complexidade social às sociedades em que há uma maior desigualdade e diferenciação de papéis. “Nos caçadores-recoletores é muito simples: os homens caçam e as mulheres colhem – têm funções equivalentes. São sociedades pouco complexas, há maior igualdade. No entanto, quando há uma concentração demográfica maior, começa a haver uma maior estratificação e, portanto, maior complexidade social”

O doutorado em antropologia defende que esta relação com o poder socioeconómico se deve aos prazeres prolongados (“delayed delights”) – que estão na origem do beijo. Explica que, para o beijo surgir, “era necessário haver uma sociedade muito estratificada onde a elite se dedicasse à descoberta do prazer”. 

Jankowiak reflete sobre uma distinção entre satisfação e prazer, olhando para o antigo Egito e para os banquetes romanos que duravam três dias. Tempos, estes, que provam que as civilizações humanas antigas já associavam o prazer à lentidão. “Todos os hábitos destas elites eram feitos lentamente: saboreava-se a comida lentamente, as danças eram lentas. Nesse ambiente, essa classe social é que descobre o beijo”, prossegue. 

Da mesma forma, também o erotismo “é uma sensação lenta de provocação sexual”, e não apenas a “satisfação do desejo sexual”. “A prostituição prova que essa satisfação pode acontecer em dez minutos mas não há erotismo. Por outro lado, se estivermos a falar de um dia passado na cama a conversar, a provocação contribui para um maior erotismo. Acho que, quando isso acontece, surge o verdadeiro beijo romântico”, exemplifica.

A globalização dos comportamentos

Mas como é que tudo começou? Os antropólogos não sabem dizer, mas garantem ser algo relativamente recente na História da humanidade. “Em sociedades complexas, o beijo está lá. Mas será que esteve sempre lá? Não devíamos esperar até há três mil anos para descobrir o beijo”, reflete William Jankowiak. Para o antropólogo, o verdadeiro enigma por resolver é: “porque é que algo tão prazeroso chegou tão tarde à civilização humana?”.

Não há registos do inventor do beijo, ou da sociedade que dele desfrutou primeiro, mas a propagação deste comportamento entre culturas pode dever-se à assimilação. “As pessoas gostam de olhar para quem está no cimo da sociedade e copiá-los. Se a elite está a beijar-se, por que não tentamos?”, interpreta.

A era de globalização determina que as referências de grupo criam a moralidade de cada um. “É muito natural pensarmos que o que nós fazemos é o que toda a gente faz”, afirma o especialista. Se assim é, é fácil que a humanidade moderna também questione: afinal, por que é que nem toda a gente descobriu este tipo de beijo?

“Se calhar todos somos universais agora, acho que em todas as sociedades complexas as pessoas beijam-se. Há áreas onde não se beijavam no século XVIII, hoje beijam-se”, reflete sobre a evolução deste comportamento. No entanto, esta assimilação advém de uma escolha: “as pessoas vêem muitas coisas, mas copiam umas e rejeitam outras”. O beijo não foi rejeitado e William Jankowiak questiona porquê. “Porque é que, agora, toda a gente se beija? Obviamente, é por prazer”, conclui.

Agora não se sente um toque; não se trocam beijos 

É esse mesmo prazer que leva William Jankowiak a afirmar a sua crença no poder do beijo, para lá dos efeitos desta pandemia. Se o distanciamento social pode trazer novas perspetivas em relação a muitas áreas da vida social, tal não acontecerá com o beijo. “O distanciamento não vai afastar as pessoas. As pessoas preferem morrer juntas”, conclui.

Por seu lado, Margarida Figueiredo Braga recorda o papel dos estímulos sensoriais enquanto influenciadores das atitudes, do humor e da memória: “este tipo de capacidade de apreender estímulos que têm de ser reais, como a temperatura, o odor e um sabor de um beijo, vai-nos fazer atribuir um significado particularmente relevante à convivência e à troca de estímulos sociais e físicos”, explica. 

Acrescenta ainda que “pagaremos um preço por esta privação de contacto”. No entanto, apresenta uma previsão positiva para aquilo que virá a ser o futuro e para a forma como olharemos para o beijo no dia de amanhã: “as nossas boas memórias e o capital de beijos anteriores podem ser salvadores neste momento de privação sensorial tátil, embora também cause algum sofrimento por não o podermos fazer agora como gostaríamos”. 

Artigo editado por Filipa Silva.