O Cineclube do Porto completa 75 anos esta segunda-feira. Aproveitando a data, lançamos a primeira de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades". Dentro desta, é o cinema quem mais ordena.

A 13 de abril de 1945, em plena ditadura, nasceu no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, o Clube Português de Cinematografia. Fundaram-no um grupo de amigos entusiasmados pela arte do cinema com vontade de ver e fazer filmes. A ideia era simples: um grupo que se junta com o cinema como pretexto. Desenvolveu-se com esta ideia uma comunidade, que resiste até hoje.

Em 2020, o Clube Português de Cinematografia, ou Cineclube do Porto como ficou conhecido depois de ser constituído como associação, completa esta segunda-feira os seus 75 anos de história, depois de muitos anos de marcantes eventos que moldaram a cinematografia portuguesa.

O Cineclube do Porto, o mais antigo do país em funcionamento, foi essencial para que o cineclubismo se espalhasse pelo país e ganhasse a presença que foi tão importante para o desenvolvimento do cinema português. O grupo que na década de 50 chegou a ter entre 2.500 e 3.000 sócios, agora tem apenas 200. Os que já o frequentam há vários anos têm memórias especiais dos momentos que mais os marcaram e que moldaram as características do clube.

“São tempos muito diferentes, aqueles que nos levaram ao Cineclube há mais de 40 anos. Na altura, a ideia de associativismo e de estar com outras pessoas a trabalhar por coisas comuns era algo que não era nada de particular”, relembra Fernando Pereira, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e sócio do cineclube há mais de 40 anos. Para o cineclubista e sua mulher, Isabel Almeida, o propósito do grupo era mais do que ver cinema, mais do que apenas entretenimento.

“A nossa ida ao Cineclube tem a ver com uma espécie de predileção por um cinema mais autoral, menos comercial, um cinema que se preocupa mais com o que quer dizer do que com o entretenimento que a indústria cinematgrafica está sempre a impor”, explica o professor da FBAUP.

O grupo de cinema passou por várias mudanças desde a sua criação: da necessidade de se adaptar às novas tecnologias ao controlo do imediatismo das mensagens e redes sociais. No entanto, em nenhum momento a sua essência foi perdida. O Cineclube do Porto é um ambiente de partilha, seja de comentários, críticas e opiniões ou de gostos, tempo e espaço.

Quando está em pleno funcionamento – o que agora não acontece por força das medidas de combate à COVID-19, que levou ao encerramento de todos os espaços culturais do país – as sessões regulares do clube acontecem na Casa das Artes duas vezes por semana, às quintas e aos sábados, sempre com um intuito: ver cinema de qualidade.

De acordo com a arquiteta e atual diretora do Cineclube do Porto, Joana Canas Marques, o grupo equilibra a vontade de dois públicos: os cinéfilos que gostam de cinema e partilhar experiências de filmes, e os que procuram lazer. “É uma gestão que foi feita ao longo do tempo. Procuramos dar um cinema que é difícil de encontrar nos outros espaços da cidade, mas criar um equilíbrio com o que é o dito ‘cinema comercial’”, explica ao JPN.

Para muitos, sobretudo os que vivem na zona do Campo Alegre, onde está localizada a Casa das Artes, o cineclube é o seu cinema de bairro, onde podem assistir aos filmes que são difíceis de encontrar noutros lugares. Ao mesmo tempo, é um espaço que promove o cinema nacional. “Nunca houve tantos cinemas no mundo e nunca se passaram tão poucos filmes”, lamenta Fernando Pereira. Para o professor, os cineclubes têm a responsabilidade de fugir ao cinema de massas, uma vez que são um local de partilha de cinema como arte. Ir todas as semanas às sessões é “um ato de resiliência contra essa dominação do entretenimento”, diz.

Fernando e Isabel começaram a sua jornada no cineclube logo na adolescência, com 14 e 17 anos, respetivamente. Foi pelo grupo e as suas atividades que o casal se conheceu e, pelo gosto mútuo em cinema, que acabaram juntos. Os dois dizem ter tido experiências incríveis nas projeções do cineclube ao longo dos anos. No início dos anos 80, ambos tiveram a oportunidade de assistir a um filme alemão de oito horas, chamado “Hitler: Um Filme da Alemanha”, prova da comunidade que podia ser formada naquele local.

Para Joana Marques, que ingressou no clube mais recentemente em 2014, o que a trouxe ao grupo foi o “imaginário” de uma comunidade. “São um grupo de pessoas que gostam muito de cinema e gostam de proporcionar aos outros verem bom cinema. Vê-se muito cinema em casa e o que o cineclube pede é que não se veja sozinho”, explica a presidente.

A comunidade não é fechada e convida de várias formas à entrada e participação. Os cartazes dos filmes do mês, por exemplo, são sempre realizados por alunos das Belas Artes da Universidade do Porto. Estes ganham um ano gratuito de subscrição como sócios, e podem ir ver os seus trabalhos expostos na sala da Casa das Artes, onde ocorrem as projeções.

José Vaz, designer da Vicio Design e ilustrador voluntário do cineclube do Porto, explica que para as gerações anteriores às novas tecnologias o cinema tinha uma outra importância, que pode não ser percebida pelos jovens. “Eu via cinema na televisão e no cinema propriamente dito. Hoje vê-se muito filme pelo ecrã pequeno e online. Para eles o cinema não teve tanto impacto quanto comigo quando eu era miúdo”, explica o designer.

Para além do sentimento de união que o Cineclube do Porto encerra, houve, por um tempo, uma união por resistência da cultura. Na época da ditadura e após o 25 de Abril, o cineclube teve um papel fundamental a criar uma difusão do cinema que era censurado na época. Com esses esforços era possível a comunicação entre pessoas e a partilha de opiniões e pensamentos. “O cineclube em tudo era uma resistência, porque mostrava uma arte nova. O cinema foi muito usado no século XX para a manipulação de massas, mas também com o reverso, como forma de consciencializar as pessoas, de as fazerem pensar, de questionar uma série de coisas”, detalha Joana Marques.

Em 2014, com a perda da antiga sede do grupo, o espólio foi divido por três locais: a Casa do Infante (biblioteca e acervo fotográfico), a cinemateca portuguesa (espólio fílmico) e o Museu da Imagem e Movimento de Leiria (equipamentos).

Agora, 75 anos depois de sua criação, o Cineclube do Porto está a festejar o seu aniversário com uma programação e eventos especiais que tiveram de ser adiados para o segundo semestre devido ao encerramento da Casa das Artes, no contexto das medidas de combate à pandemia de COVID-19.

O programa comemorativo ficou, assim, sem datas, mas já tem eventos previstos. Além da abertura da biblioteca ao público, na Casa do Infante, está prevista a exibição de uma cópia restaurada (será lançada também em em DVD) do filme “Auto da Floripes”, projeto realizado em conjunto com os sócios do clube, pela secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, em 1959.

Das comemorações fará parte ainda o lançamento de um livro bilíngue com a história dos 75 anos do Cineclube e haverá lugar a um cine-concerto de “O Gabinete do Dr. Caligari”, com banda sonora especialmente criada para o filme mudo do alemão Robert Wiene, um dos mais rodados na história do Cineclube do Porto.

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote “comunidades”, entre fevereiro e março de 2020.