Os efeitos colaterais da pandemia vão fazer-se sentir em várias atividades, entre elas está a oncologia. O diagnóstico do IPO – Instituto Português de Oncologia – do Porto é claro: não vai haver um “regresso normal”, o impacto será “negativo” com um serviço “mais demorado e oneroso”. Já Vítor Veloso, da Liga Portuguesa Contra o Cancro, aponta o caminho: “é preciso reposicionar a atenção na oncologia em Portugal”.

Primeiro veio o medo, que levou ao confinamento de doentes. Depois a preocupação, dos profissionais de saúde com o seu bem-estar e o dos doentes nos serviços de saúde. A pandemia de COVID-19 levou também a uma saturação dos estabelecimentos de saúde, e à subsequente afetação de recursos humanos e financeiros nos hospitais, que provocaram o cancelamento de consultas, adiamento de tratamentos e à diminuição das cirurgias, que se viram reduzidas às intervenções urgentes.

Ao JPN, Vítor Veloso, ex-presidente e atual vogal da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), considera que o principal fator para a diminuição dos atendimentos a doentes oncológicos acontece porque“os hospitais ficaram surpreendidos, não estavam preparados” para esta situação e que “carrilaram todos os meios que existiam do SNS [Serviço Nacional de Saúde] para o combate a esta pandemia”, afirma.

Avanços no tratamento de doentes oncológicos podem regredir

Já havia dificuldades na acessibilidade do doente oncológico na primeira consulta, ao diagnóstico, aos tratamentos. Era uma situação aceitável, embora não ideal, mas nós conseguíamos diminuir a mortalidade e melhorar a sobrevivência do doente oncológico”, considera o médico de cirurgia geral e oncológica.

Esta realidade parece estar, agora, em causa, tendo em conta que a resposta à COVID-19 levou à concentração de esforços nesse sentido e diminuiu a atividade noutras áreas da saúde. O resultado? “O doente que seria eventualmente curável já não é, porque passou demasiado tempo desde o diagnóstico inicial”, alerta Vítor Veloso.

O especialista em oncologia acredita que a afetação de recursos nos atendimentos, contribui para o adiamento de “praticamente todas as cirurgias”. “Os hospitais gerais que faziam oncologia praticamente não o fazem, salvo raras exceções. As listas de espera vão aumentar e a acessibilidade vai diminuir. É isso para que eu chamo à atenção, quero que as autoridades estejam atentas e não descurem mais o problema do cancro” apela.

Rastreios já diminuíram no primeiro trimestre do ano

A própria atividade da LPCC sofreu um revés desde que a pandemia se propagou no país. O antigo presidente da Liga admite que os rastreios feitos por aquela instituição estão parados. “É um aspeto preocupante na medida em que nós detetávamos pequenos cancros onde eram casos perfeitamente curáveis”, confessa Vítor Veloso.

Protocolado com as Administrações Regionais De Saúde (ARS), o rastreio do cancro da mama realizado pela Liga Portuguesa contra o Cancro é o “único que de facto corre bem”, explica Vítor Veloso. “No Norte temos toda a população rastreada. Temos uma adesão de mais de 60% das mulheres referente ao cancro da mama. No cancro do colo do útero e colo e reto (que não é feito pela Liga) a afluência não corresponde àquilo que é minimamente exigido de um bom rastreio quando falamos em padrões de qualidade da União Europeia. O nosso não corresponde”, assegura.

Em entrevista ao JPN, o presidente do Conselho de Administração do IPO Porto, Rui Henrique, estima que naquela instituição de saúde os atos médicos no 1.º trimestre deste ano tenham “sofrido uma redução de cerca de 6%”. O maior impacto foi sentido na área de cirurgia, estimando-se uma “redução de cerca de 10%”, refere.

No mesmo período, os internamentos também baixaram em cerca de 5%, o que, para o responsável do IPO Porto, se deve “à necessidade de realocar recursos face a situações de quarentena que atingiram um elevado número de enfermeiros e de assistentes operacionais”, situação que, diz, “teve um impacto negativo na atividade cirúrgica”.

Quimioterapia não parou

Num comunicado enviado à imprensa, o IPO Porto revela que essa redução aconteceu porque “30 profissionais do Bloco Operatório Central e muitos outros em serviço nos pisos de internamento terem entrado em quarentena”. No entanto, o IPO garante que tem, no momento, “sete salas cirúrgicas a funcionar, num total de oito”, contando retomar a atividade normal no final deste mês.

A atividade nos tratamentos realizados no hospital de dia “foi adequada”, com a “vasta maioria dos tratamentos a ser realizada”, numa média de “mais de 200 sessões de quimioterapia” diárias, conforme se lê no documento.

O IPO Porto revela que foram realizados 100 mil atos médicos no primeiro trimestre deste ano. As primeiras consultas aumentaram 3,3% e as consultas de seguimento registaram um decréscimo de apenas 0,7% face ao mesmo período de 2019.

Para responder à crise pandémica o diretor do IPO Porto refere que “foi necessário criar mecanismos de triagem dos doentes à entrada do IPO Porto”, estabelecendo “áreas de avaliação clínica e de internamento, dedicadas aos doentes suspeitos e aos doentes COVID-19”, assim como para a realização de testes para aferir a presença de vírus quer para doentes, quer para profissionais”, indica Rui Henrique.

É necessário “retomar o bom ritmo” dos rastreios

A situação dos rastreios não deixa de preocupar o IPO. Com dois programas de rastreio oncológico, do cancro do colo do útero e do cancro colorretal, a instituição admite “uma redução marcada” da atividade desses programas, atendendo aos riscos que os procedimentos inerentes acarretavam e à necessidade de alterar as rotinas de trabalho, quer nos cuidados primários, quer a nível hospitalar”.

De forma a minimizar o impacto da pandemia no acompanhamento regular de atuais e novos doentes oncológicos, o Conselho de Administração do IPO Porto diz estar a “trabalhar prioritariamente num plano de recuperação da atividade assistencial, a médio/longo prazo”, que permita “retomar o bom ritmo” que tinha em ambos os programas de rastreio.

No entanto a instituição diz que “não vai haver um “regresso à normalidade”, mas sim uma “evolução para uma nova normalidade”. Enquanto a pandemia durar, vai ser necessário manter as “estruturas para gerir os casos suspeitos”, o que se traduz num “impacto negativo na dinâmica de internamento e de realização de atos médicos”. Como consequência, a “nova normalidade” no atendimento e acompanhamento dos doentes “serão [processos] mais demorados e mais onerosos, em materiais, equipamentos e recursos humanos”, diz o IPO Porto no comunicado referido.

Com o maior instituto oncológico do Norte a assumir uma transição para “novos” tempos no acesso aos tratamentos daquela especialidade, a pergunta impõe-se: o que deverá ser feito nos próximos tempos para mitigar esta situação?

Para Vítor Veloso, “há muito que fazer para além da pandemia”. “A pandemia vai matar muito menos pessoas que o cancro, que o AVC e os enfartes. Concordo que de facto tenha sido dada prioridade à COVID-19, mas é tempo de repensar a situação e reposicionar a atenção neste tipo de doenças, nomeadamente as oncológicas”, reflete.

“Chegou a altura de começarmos a pensar que temos de ter regra nisto, porque senão todos os progressos que fizemos, todas as pequenas batalhas do cancro, vão por água abaixo. E é uma pena porque Portugal estava muito bem situado”, remata o especialista.

Artigo editado por Filipa Silva.