Entre construções e desconstruções, a cidade vai mudando. Tanto na Sé como em Miragaia, a vida em comunidade marcou uma geração. As pessoas vão e vêm dos sítios mas os sítios não saem delas. Lançamos a terceira de uma série de reportagens desenvolvidas pela redação do JPN sob o mote "comunidades".

A hora do almoço já está quase a acabar, mas na cozinha de Fernanda Helena ainda impera o cheiro a fritos. Na ardósia à porta lê-se o prato do dia: febras e pataniscas com arroz de tomate. De cabelo preso, avental à cinta e rosto veterano, passa o serviço da “Casa Mara” à filha por uns minutos para vir à porta mostrar a rua onde nasceu, há 59 anos.

Nascida e criada aqui”, diz enquanto aponta para uma pequena viela à esquerda, a Rua dos Armazéns, em Miragaia, no Centro Histórico do Porto. A casa onde vive com o marido é mais acima, mas da Rua de Miragaia, onde tem o pequeno restaurante de diárias, só se vê a da mãe. Sem qualquer som ou persianas abertas, o único sinal de movimento é o de um grupo de gatos que ali procuram um lugar para dormir. “Se olhar para a rua é só casas vazias”, afirma.

Nesta rua à beira-Douro, num frente a frente com a Alfândega e de costas voltadas para o Monte dos Judeus, a azáfama que outrora se fazia sentir é uma memória. Os vizinhos de Fernanda Helena são agora outros: os que vão e vêm

“O turismo é bom para nós, sim senhora, mas não era com tantos hostels”, admite, entoando o estrangeirismo com o sotaque típico que a distingue dos novos inquilinos. Só na Rua de Miragaia há seis edifícios registados sob o tipo de Alojamento Local, segundo o Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL). Ao JPN, Fernanda Helena confessa que o boom turístico “melhorou” o negócio, mas aponta uma dificuldade. “O turismo para que a gente trabalha não é o que vem para os hostels. São os que andam a pé, a visitar. Os turistas dos hostels saem de manhã e vêm à noite, não dão nada para aqui”, lamenta.

Em 2014, o RNAL dava conta de 630 registos de AL no concelho do Porto, 519 dos quais nas freguesias do Centro Histórico do Porto (Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória). Ao último dia de 2019 eram já 6.191 só naquela freguesia e desde o início deste ano até ao momento já houve quase 100 novos registos.

O mapa interativo permite ver a evolução do número de AL no Centro Histórico do Porto por anos, bem como consultar a informação por alojamento. Fonte: RNAL

Pedidos de ajuda “quase” diários pedem regulamentação nos AL

Anabela Santos é assistente social na União de Freguesias do Centro Histórico do Porto. Os dedos das mãos não lhe chegam para contar há quantos anos acompanha os casos das famílias de Miragaia. A experiência de 22 anos faz com que consiga confirmar a emergência da situação. Embora considere importante que se distingam as situações de “despejo” (que implicam sempre uma ordem do tribunal) e de “não renovação de contrato” (que só resultam em despejo quando a pessoa se recusa a sair – a grande maioria dos casos),  afirma que é a “pressão imobiliária” que leva a que receba pedidos de ajuda “quase todos os dias”.

A maior falha, diz, é o facto de não haver “uma regulamentação que limite o número de alojamentos locais na área geográfica”. O aumento das rendas e a conversão de apartamentos para arrendamento de curta-duração levam à saída da população originária do centro histórico. Segundo a autarquia, as diferentes freguesias têm particularidades distintas, mas também problemas comuns no que toca à habitação. Se os dados do período entre 1991 e 2011 demonstravam uma “perda progressiva de moradores” de cerca de 50%, a situação atual é de um progresso ainda mais rápido com destino à desocupação.

É num caderno cheio de rabiscos daqueles que já custa fechar e cartões de imobiliárias que marcam as muitas páginas que Anabela Santos dá conta da história de cada família. “Por acaso agora até vou ter de ir comprar outro!”. Afirma que cada caso é um caso, mas o tom de voz torna-se mais sério quando a conversa vai parar aos primeiros, e mais idosos, moradores: “para os mais velhos, isto é uma violência muito grande. Para muitos deles, a vida acabou”.

A corrida por desocupar os imóveis resulta, muitas vezes, em ameaças e constrangimentos – roubos de caixas de correio e de contadores da luz e da água são prática habitual – mas a tensão entre inquilinos e senhorios aumenta conforme o processo se arrasta. Nos casos mais extremos, já mais recorrentes do que excecionais, as situações agravam-se: “há muitas formas de agressão para forçar as pessoas a tomar decisões”, conclui.

O número de placas indicativas de espaços de Alojamento Local, como esta, multiplicaram-se em dez vezes no Centro Histórico do Porto, entre o início de 2014 e o final de 2019.

A rua de Miragaia que se desocupou para dar lugar ao vazio

Foi um constrangimento com o senhorio, em tempos também seu vizinho, que levou a mãe de Fernanda Helena a abandonar a casa onde vivia. Depois da compra do prédio, as relações complicaram-se. “A minha mãe, desde que saiu daquela casa, nunca mais foi a mesma”, refere. Hoje diagnosticada com Alzheimer e fortemente debilitada, mora numa casa na rua ao lado onde paga 230 euros por um T1 – “um favor” de uma vizinha.

Uma semana antes de a visitarmos, o andar de cima da nova casa da mãe, também um T1, foi alugado por mais de 400 euros. A irmã de Fernanda toma conta da mãe, que não pode estar sozinha. No entanto, apesar de ter saído de casa, a família continua a pôr uma nota azul de parte para pagar os 20 euros da renda da antiga casa da mãe. Pese embora a “revolta” que este assunto lhe traz, Fernanda e a família não estão dispostos a desistir: “enquanto a minha mãe tiver os olhos abertos, a casa é dela”.

Apesar de as famílias terem saído, pressupondo que o seu lugar fosse ocupado por novos arrendatários, o movimento não foi, em todos os casos, substituído. Diz Fernanda Helena que muitos são os casos dos imóveis que são comprados e ficam depois vazios, sem projetos para futuro. O marido, Júlio, junta-se à conversa para contar o caso da irmã, que também ali morava: “foi realojada para a casa ser vendida e desde então está vazia, não mexeram nela”. 

Fernanda Helena não sabe onde estão as pessoas que durante tantos anos chamou de vizinhas. Diz que, de vez em quando, “vêm visitar as casas”, muito raramente. “Moram muito poucas famílias aqui, eles vendem os prédios e tornam a vender, mas estão todos parados. A menina chega aqui às cinco horas da tarde e já não vê vivalma”.

Rotinas de convívio numa Sé que já não é deles: “é isto que me mantém vivo”

Uns largos passos pela marginal e um caminho longo de subidas e descidas levam-nos ao coração da cidade: a Sé. O barulho de conversas que se faz sentir desde o início da Rua da Bainharia vem do Centro Cívico de Idosos e Reformados – importa referir que esta reportagem teve lugar antes de ser declarada a pandemia por COVID-19. À porta, de cabelo grisalho e bigode farto, está José Andrade. Reza a sua história que foi na Ribeira que nasceu mas a vida – e a esposa – trocaram-lhe as voltas e acabou por ir morar para o bairro da Sé, quando casou. Aí viveu com a mulher e três filhos, até a sua casa ruir, há 37 anos atrás. Durante dois anos chamou casa à Pensão Aviz, até a Câmara do Porto lhe atribuir um apartamento em Ramalde, onde nasceu a sua quarta e última filha. É onde ainda vive com a esposa.

Todos os dias, depois do almoço, vem de Ramalde para o Centro Cívico de Idosos e Reformados da Sé. “A maioria mora aqui na Sé, mas outros moram fora e vêm todos os dias”, explica. Na verdade, o Centro está cheio: na sala (que, embora não o seja, já parece pequena) são muitos os senhores – só senhores – que ocupam as mesas a jogar cartas ou a ver televisão.

Ao balcão do bar improvisado está o maestro daquele grupo de amigos, de rosto enrugado e olhos que, apesar de claros, carregam tanto mistério quanto o que paira pelas ruas do Centro Histórico que ali vão dar. Foi o “senhor Monteiro”, como é respeitosamente chamado, que criou o Centro em 1986 com o apoio da Segurança Social. Como muitos dos colegas que, entre cartadas, lhe pedem água e outras bebidas do bar, o senhor Monteiro nasceu, cresceu e casou nas ruas da Sé. “Se me tirarem daqui, matam-me”, diz com honestidade gélida. “É isto”, o Centro e os convívios que organiza na sua Sé, “que me mantém vivo”

No coração do Porto vivem agora mais estrangeiros que portuenses. Os sítios podem não combater a erosão do tempo, mas as gentes perduram.

As “saudades” dos sítios que não combatem a erosão do tempo

O espírito de comunidade que ali se tenta encapsular demonstra que o sentimento está vivo, embora não da mesma maneira. As recordações de um tempo diferente quebram-lhe o ar imponente, de quem, do alto dos seus 83 anos, não se esquece do que viveu. “Quem quer sardinhas? Quem quer isto? Quem quer aquilo? Isto antes era assim, era uma comunidade. Tenho saudades. Palavra de honra, tenho muitas saudades”.

A história do bairro não é a mais famosa – desde há longos anos que a Sé é recordada por ser um antro de drogas e prostituição. Nada disso é ignorado por quem ali está mas, diz o “senhor Monteiro”, a base de qualquer relação tem de ser feita através “do respeito”. Observar hoje o espírito da rua que durante tantos anos ajudou a erguer deixa-o triste. “Isto não está a ser melhorado para a gente daqui. Isto deixa de ser a Bainharia, deixa de ser o que foi. Dava gosto passar por aqui”, diz-nos, em tom confidente. Tal como na rua de Miragaia, os edifícios que não estão devolutos estão renovados de cores apelativas e com um sinal com as letras “AL”, em azul, à porta. Um sinal dos tempos.

Nem sempre as uniões se perdem, como a Miragaia que Fernanda Helena em tempos conheceu. Algumas uniões mantêm-se, mas de forma diferente. Na Sé, dão-se “lanches” e “cabazes de Natal muito razoáveis” aos membros do Centro, como conta o “senhor Monteiro”, num tom já mais recomposto e esperançoso. “Eu fico babado. Isto é um orgulho uma pessoa construir”.

E entre construções e desconstruções (das simbólicas e das literais), a cidade vai mudando. Tanto na Sé como em Miragaia, a vida em comunidade marcou uma geração. Os sítios podem não combater a erosão do tempo, mas as gentes perduram. De memórias de um passado que não querem largar a convívios que fazem por se repetir dia após dia, as pessoas vão e vêm dos sítios mas os sítios não saem delas. Nem no dia em que já não restar mais ninguém.

Artigo editado por Filipa Silva.