Quatro médicos e um especialista em Saúde Pública refletem, no JPN, sobre a necessidade de desfragmentar o SNS, aproveitar o potencial da tecnologia, aumentar a literacia em saúde e até de promover um sucessor do 'homo sapiens'. Chegaremos ao 'homo salus'?

Quando, em 2015, Bill Gates subiu ao palco da conferência TED, levou com ele um barril de provisões de sobrevivência, como os que tinha guardados na cave da casa onde cresceu, para o caso, contou então, de os Estados Unidos da América (EUA) sucumbirem à pressão nuclear com a Rússia durante a Guerra Fria.

Mas o fundador de um dos maiores impérios tecnológicos – bem como da maior fundação de beneficência – do mundo não subiu ao palco para falar de guerras nucleares. A seu ver, há um perigo “muito mais provável de matar dez milhões de pessoas nas próximas décadas que uma guerra. Não mísseis, mas micróbios, e não estamos preparados para a próxima pandemia”, dizia Bill Gates em 2015.

África enfrentava um surto do vírus Ébola que se alastrou por seis países da região oeste e mais tarde para os EUA, Itália, Reino Unido e Espanha. A Organização Mundial da Saúde (OMS) só viria a levantar o estado de emergência de saúde pública dois anos depois, em 2016, contabilizados 28.652 infetados e mais de 11 mil mortes.

Enquanto Bill Gates discursava sobre a importância do investimento na epidemiologia – usando o exemplo da Ébola para confirmar que “não foi uma questão de o sistema ter sido fraco a responder, não havia sistema” -, um outro vírus, Zika, era levado à boleia por insectos e começava a contaminar a América abaixo da linha do Equador. Desde então passou por mais 86 países, dizem os últimos relatos da OMS.

Na mesma década, dois vírus da família corona, SARS e MERS, infetaram em conjunto mais de dez mil pessoas em todo o mundo, com taxas de fatalidade assustadoras – morreram mais de duas mil pessoas. A gripe sazonal de 2009 foi novidade para a comunidade científica e para os sistemas imunitários de 24% da população global. A gripe A ceifou mais de 280 mil vidas, 122 das quais em Portugal.

Em 2015 foi divulgada uma lista dos vírus mais perigosos para a humanidade pela OMS, atualizada anualmente e que guarda sempre um lugar para a “Doença X”, “que representa a constatação de que uma epidemia internacional grave pode ser provocada por um agente patogénico hoje desconhecido”.

“A falta de preparação pode permitir uma epidemia muito mais devastadora que a Ébola”, disse Bill Gates no seu discurso na TED. Quatro anos depois, um sétimo tipo de coronavírus surgia em Wuhan, na China, infetando mais de 3,5 milhões de pessoas em todo o mundo e causando a morte a mais de 250 mil. A COVID-19 consta agora na lista da OMS.

Se a COVID-19 é a nossa Doença X, é preciso aprender

Mais de um século depois da gripe espanhola, a COVID-19 protagoniza a maior pandemia que o mundo já viu e todas as anteriores experiências com novos vírus deram um novo passo frente a um plano global de combate. Em 1918 não havia sequer antibióticos; em 2004, uma vacina para a SARS foi criada já no final do surto; já no caso da gripe A, a medicação foi determinante e uma vacina foi criada em apenas oito meses – o que equivale a minutos em tempo científico.

O tempo e a experiência demonstram-se ingredientes vitais ao progresso da ciência, mas também os vírus beneficiam desses fatores. À medida que se conhecem e controlam vírus, novos vírus aprendem a resistir e desenvolvem-se.

“O vírus é inteligente, mas o ser humano tem todo o potencial para ser mais”, lê-se no estudo de 2006 “Flu city – Smart city”, assinado pelo professor e investigador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) Constantino Sakellarides e pela investigadora alemã Ilona Kickbusch. Os especialistas apontam um fator de segurança face à grande probabilidade assumida de se vir a sofrer uma nova pandemia: “podemos preparar-nos”.

O estudo propunha ainda “aproveitar o potencial positivo de um mundo interdependente, como a alta participação social” para a criação de uma resposta imediata que, embora não possa não prever a chegada de um vírus, poderá combatê-lo mais eficazmente.

Ao JPN, Constantino Sakellarides confessa que prever o que está depois da guerra contra a COVID-19 ainda é uma “pergunta para bola de cristal”, mas para o ex-diretor-geral da Saúde há uma certeza que se afigura: há que “regressar ao futuro e não ao passado”.

“Voltar ao passado com os mesmos defeitos, mas mais pobres, com menos recursos, mais doentes e mais preocupados é o mau cenário. O melhor cenário, que ainda assim não é ótimo a curto prazo, é voltarmos com essas preocupações mas encontrarmos um sistema que beneficiou da experiência”, explica Constantino Sakellarides.

“O nosso SNS é um Sistema Nacional de Doença”, diz ao JPN Luís Saboga Nunes, da Escola Nacional de Saúde Pública. “Ao concentrar os recursos na doença acaba por descurar aquilo que é fundamental para evitar a doença, que é cuidar da saúde“. O especialista em Saúde Pública defende que o próximo passo depois do combate à COVID-19 seja “promover, criar” a saúde para futuros combates.

Já para Constantino Sakellarides, “o Sistema Nacional de Saúde (SNS) tem que aproveitar esta aprendizagem para se transformar”, sugerindo como primeiro grande passo a desfragmentação do sistema de saúde.

Para Constantino Sakellarides, os hospitais portugueses ainda funcionam em esquema de “comando central e cumprimento periférico”, modelo que não resultará na fase em que o país se prepara para entrar, diz o médico. Foto: Guimarães Saúde

“Aproximar para transformar”: um objetivo de décadas

Em 1993, três anos depois de ser promulgada a primeira Lei de Bases da Saúde, foi aprovado um novo estatuto do SNS que, ao reconhecer os critérios da “indivisibilidade da saúde” e da “criteriosa gestão de recursos” médicos, inaugurou as unidades de saúde – redes de hospitais e centros de saúde com poder decisório ao nível regional, ainda que sob a alçada do SNS.

Constantino Sakellarides foi diretor-geral da Saúde entre 1997 e 1999, ano em que se criam os Centros de Responsabilidade Integrados e os Sistemas Locais de Saúde nos hospitais do SNS. Estes sistemas permitiriam a “desconcentração da tomada de decisão” do centro para as periferias e o “controlo de recursos” ao nível local, para um sistema de saúde descentrado na sua gestão e centrado no percurso de saúde de cada utente.

Para o médico, os hospitais portugueses ainda funcionam em esquema de “comando central e cumprimento periférico”, o que Constantino Sakellarides admite ter sido uma boa estratégia para a “fase aguda” da pandemia, mas que considera que não resultará na fase em que o país se prepara para entrar. “É mais fácil aproximar para transformar”, diz.

Depois do período mais negro do vírus, “as pessoas querem compreender, ter opinião, saber por que não há alternativa, e portanto aquela unanimidade própria da fase aguda deixa de ser fácil e viável”, considera o médico, que defende que “em vez de ordens” centrais, é preciso o “enquadramento” para se tomarem decisões ao nível local.

Planos para o futuro que (quase) não passaram do papel

Constantino Sakellarides foi consultor do Ministério da Saúde até abril de 2018, data em que se demitiu. Coordenava até então o SNS + Proximidade, um programa de aposta na “centralidade das pessoas no SNS do futuro”. O professor jubilado considerou que não estavam reunidos os requisitos para essa transformação do SNS e que uma integração como a pretendida estava bloqueada por uma pirâmide de governação datada. É a sua renovação a prioridade para o sistema pós-pandemia, diz o médico.

No mesmo mês, o ministério então liderado por Adalberto Campos Fernandes tinha reunido uma comissão que Sakellarides integraria para elaborar um Livro Branco para o futuro do SNS. O médico afirma que o documento não avançou “por razões atribuídas ao poder”, mas admite que “se tivesse sido feito, estaríamos melhor para depois da crise”.

Novas potencialidades de uma tecnologia que não é novidade

Quem mais sai prejudicado das decisões, ou da falta delas, são os utentes. “Em termos de continuidade, o sistema não funciona”, admite Constantino Sakellarides.

“Se estou doente e vou ao meu centro de saúde e depois preciso de passar para o hospital, é o maior dos trabalhos, porque lá não tenho a informação que tenho no centro de saúde. E, se vou a uma urgência, o meu médico de família não sabe. Como é que no mundo de hoje, com os sistemas de informação que temos, o médico não sabe?”, questiona o professor.

O projeto Proximidade, que coordenou, construiu o Plano Individual de Cuidados (PIC), um sistema online para pessoas com vários problemas de saúde que coordena num mesmo processo as várias especialidades médicas. Estando a iniciativa do SNS “moribunda” após a sua demissão, admitiu o médico ao “Sol“, o PIC não está a ser usado. “Nós temos o instrumento, temos as conceções, mas até agora o SNS ainda não conseguiu evoluir nesse sentido”, disse Constantino Sakellarides ao JPN.

A digitalização permite uma maior integração à distância, no entanto parece haver ainda muito território inexplorado em equipamentos com tecnologia de décadas. Foto: Flickr

Uma equipa coordenada pelo atual Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, analisou em 2018 os sistemas de gestão do acesso a cuidados de saúde no SNS. O relatório contém mais pontos negativos que positivos. A falta de uniformidade no sistema de monitorização do Ministério da Saúde é um problema que a “desmaterialização integral não resolve”, lê-se.

Ao JPN, Miguel Guimarães diz que “o SNS em si, já antes suborçamentado e com dificuldades ao nível das infraestruturas e recursos humanos, sairá desta pandemia ainda com mais dificuldades”, destacando as listas de espera e o desgaste dos profissionais.

A digitalização permite uma maior integração à distância, no entanto parece haver ainda muito território inexplorado em equipamentos com tecnologia de décadas. Potencialidades desconhecidas até à crise.

“Esta crise tem-nos obrigado a trabalhar mais uns com os outros. Há aqui uma mudança imediata que demonstra que é possível trabalharmos juntos em prol do bem-estar da população”, diz ao JPN João Rodrigues, médico de família e ex-presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF).

“Antes, um doente crónico ou outro que precise de medicamentos produzidos nos hospitais centrais tinha que se deslocar até lá para os levantar. Neste momento, o medicamento consegue chegar à farmácia ou mesmo à sua casa”, explica João Rodrigues. Há medidas adotadas na saúde em estado de emergência que só são possíveis pela tecnologia e poderão vigorar mesmo depois de ultrapassada a pandemia, sugere o médico.

“É possível não nos deslocarmos à Unidade de Saúde e haver uma resposta ao nosso problema, seja de que tipo for”, garante João Rodrigues.

“A desmarcação de consultas, cirurgias e exames pode ter impacto tanto ao nível da mortalidade como da morbilidade dos doentes, que veem as suas patologias agravar-se. Também podemos estar a ter casos de atrasos em diagnósticos de doenças em que o tempo pode fazer muita diferença, como as doenças oncológicas”, explica o bastonário da Ordem dos Médicos.

A tecnologia que “era existente, mas pouco utilizada” só num caso de necessidade extrema, como a atual pandemia, revelou o seu alargado leque de possibilidades. Consultas de carácter pouco urgente poderão realizar-se à distância e aliviar o congestionamento dos centros de saúde. Ir levantar uma baixa médica, por exemplo, pode tornar-se coisa do passado.

Tudo depende, segundo João Rodrigues, da adesão dos médicos a esse “novo velho potencial”. “Se essa aprendizagem for consensualizada, à partida devemos continuá-la. O que é bom é para continuar”, considera o médico, que admite ainda que, neste âmbito, “dá para perceber que esta crise nos trouxe algumas coisas boas”. No entanto alerta que, apesar do “grande potencial”, “não nos vamos livrar da COVID-19 tão rapidamente”.

Financiamento: uma condicionante

Transformações na gestão, melhores equipamentos e uma digitalização musculada poderão fazer parte do pós-pandemia, mas há uma condicionante a essas mudanças que não será tão acessível depois da crise de saúde: o investimento.

Para o Bastonário Miguel Guimarães, é um fator urgente já antes da COVID-19: a pandemia chegou numa altura em que gastávamos, na saúde, menos de metade da média da União Europeia per capita. Mesmo sem este surto era evidente que o investimento público em saúde precisava de ser reforçado“, diz.

Despesa em saúde per capita, em milhões, em 2016. Portugal situa-se abaixo da média da UE, sendo a Suíça o país que mais dinheiro gasta em saúde e a Roménia o país europeu que menos investe. Fonte: PORDATA

Para Constantino Sakellarides, a integração continua a ser palavra-chave quando se fala de financiamento para a saúde, tanto a nível nacional como internacional. “Se quisermos que a resposta social no contexto da Europa seja a que as pessoas precisam, precisamos de uma Europa a convergir e não de uma a divergir outra vez”, sustenta o médico.

No início de abril, e depois de muita discórdia entre o Norte e o Sul, o Eurogrupo decidiu num pacote de apoio aos países membros face à crise financeira que já se faz mostrar depois da de saúde. Foi ativada uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade que pode ir até 2% do Produto Interno Bruto (PIB) de cada país. A única condição neste “acordo de dimensões sem precedentes” é que o empréstimo tenha como único fim o fortalecimento dos sistemas de saúde.

“Se a disponibilidade para termos melhores recursos na saúde estiver associada a mais dívida, dadas as implicações na nossa economia e no futuro, então não são notícias muito boas”, confessa Constantino Sakellarides.

Já à escala nacional, João Rodrigues defende que o investimento tem que se centrar no capital humano que foi levado ao limite na luta com a COVID-19. “É preciso dar apoio aos profissionais para descansarem e recuperarem, para podermos continuar nesta resposta”, considera o médico, para quem uma nova vaga pandémica não é uma questão de se, mas de quando: “se não nos prepararmos, será pior o segundo pico que o primeiro“, diz.

Miguel Guimarães reforça que a exaustão dos profissionais “não é de agora”, embora a luta contra a pandemia tenha desenhado um novo limite. Segundo o bastonário da Ordem dos Médicos, os profissionais de saúde fazem cerca de seis milhões de horas extra por ano – número que há-de subir em 2020. “Preocupa-nos também a saúde mental tanto dos profissionais de saúde como dos portugueses em geral, tanto mais que a resposta nesta área já tinha lacunas antes”, expressa o Bastonário.

“É urgente que se recuperem as carreiras médicas, que as descongelem para que as pessoas possam progredir e que se contrate mais para reduzir a carga sobre os que todos os dias fazem o SNS acontecer. Também é importante que se modernize e ofereça um projeto de carreira a quem ali trabalha, com tempo para a investigação clínica, que melhore a qualidade dos cuidados prestados aos nossos doentes”, sugere Miguel Guimarães.

João Rodrigues defende ainda uma Nova Lei de Bases da Saúde. Embora admita que não haja “capacidade para falar sobre ela” de momento, o ex-presidente da Associação Nacional das USF acredita que “esta crise vai reforçar os pilares da própria lei” que estabelece o quadro geral do SNS.

Saúde Pública: “o terreno é inóspito. E agora faz falta”

Como a História já mostrou, uma nova e maior pandemia pode espreitar quando menos se espera. A aprendizagem com o combate à COVID-19 pode dar origem a uma nova forma de pensar a Saúde Pública, em que pandemias entram no dicionário não como uma possibilidade mas como uma inevitabilidade a que os recursos têm que poder responder.

Constantino Sakellarides assume-se como defensor desta importante mas negligenciada, a seu ver, vertente da saúde. “Nós deixámos envelhecer a Saúde Pública. Em todas as reformas que correram pela Saúde, a unidade com menos investimento, menos apoio e com menos transformação tecnológica é a da Saúde Pública”, refere o ex-diretor-geral da Saúde. “Quando não vem um vírus de fora não há medo e então não ligamos nenhuma à Saúde Pública”, acrescenta.

Uma Lei da Saúde Pública esteve em cima da mesa do XXI Governo e foi apresentada uma proposta pelo Executivo em janeiro de 2017, que caducou com o final da legislatura anterior. Uma Rede de Serviços de Saúde Pública estava prevista para o mesmo ano, sem aplicação efetiva até ao momento.

“É evidente que, com um sistema obsoleto assim, a motivação para os jovens é pequena”, constata Sakellarides, já que a adesão à especialidade pelos estudantes de medicina é baixa. E o médico afirma que os que a escolhem, “quando vão, querem ficar nas universidades, não no terreno. Porque o terreno é inóspito. E agora faz falta”, reflete.

Educar para a transformação

A falta de aposta na Saúde Pública é clara, tal como a sua importância para um mais robusto sistema de prevenção e combate a futuras pandemias. Para Constantino Sakellarides, a responsabilidade de assegurar esse sistema não é só do Governo ou dos profissionais de saúde: “a conversa de sermos agentes de saúde pública não pode aparecer e desaparecer com a crise”. A literacia para a saúde será outra das apostas no SNS do futuro, frisa.

Em 2016 foi criado o Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados pela DGS, que abriu uma Biblioteca de Literacia em Saúde disponível online e que contém documentos informativos que vão de um e-book sobre cuidados de saúde no inverno – o mais lido, com cerca de três milhões de leituras – a um guia para pessoas que tenham sido afetadas por incêndios florestais.

O objetivo da iniciativa é promover a formação cívica para a saúde que, segundo um estudo levado a cabo por Constantino Sakellarides, é baixa em Portugal. “Somos cidadãos pouco informados num sistema mal integrado que não corresponde às nossas maiores necessidades”, admite.

Para Greg Martin, especialista em saúde pública e editor da revista científica “Globalization and Health“, a literacia para a saúde é um novo fator irremediável pós-pandemia: “vai haver maior iniciativa por parte de quem tem sistemas imunitários mais frágeis – ou seja, quem mais sofreu com a COVID-19 – para tomar medidas mais saudáveis e ter mais consciência da sua saúde, que é algo multidimensional”, expressa.

O médico, que também conduz um canal de YouTube sobre saúde pública, acredita também na reversão de prioridades da doença para a saúde apresentada por Luís Saboga Nunes. “Vai haver maior consciencialização da importância das medidas de saúde pública tanto para prevenir a doença como para melhorar a saúde”, considera Greg Martin, em resposta ao JPN.

O homo sapiens deixou-se evoluir para um homo urbanus através de um “modelo de crescimento económico que se esgotou”, diz o especialista Luís Saboga Nunes, que defende o surgimento de uma nova espécie humana. Foto: Fickr

Da vida pós-pandemia a um novo modelo de pensar a humanidade

Com uma sugestão que vai além do financimento do SNS, do aproveitamento da tecnologia e da literacia para a saúde, Luís Saboga Nunes defende uma mudança transversal na forma como vivemos.

“Devíamos deixar que se extinga o homo sapiens, sugere o coordenador da promoção da saúde da Associação Europeia de Saúde Pública. Uma afirmação ousada, mas com uma justificação clara: “a espécie que nos define foi uma catástrofe”, explica Luís Saboga Nunes, atribuindo o cruzamento de espécies que se suspeita ter originado a contaminação humana do coronavírus na China a mais um dos “comportamentos nefastos” da condição que define o homem há cerca de 350 mil anos.

Para Luís Saboga Nunes, uma pandemia global pode ser o despertador para uma reforma do “modelo de crescimento económico assente em recursos escassos”, que, segundo o especialista em Saúde Pública, “se esgotou”.

“O homo sapiens criou condições de insustentabilidade graças à sua sapiência. E agora está preocupado em encontrar sabedoria para lidar com um minúsculo organismo que foi capaz de o fechar na sua própria jaula”, diz Luís Saboga Nunes.

O investigador aponta o homo urbanus como o tipo de indivíduo que a globalização e o êxodo rural fizeram evoluir a partir do homo sapiens, e defende que, depois da pandemia, a próxima etapa deve ser a de ascender ao homo salus: “salus é saúde; o homo salus é o homem que está empenhado na saúde individual mas também na coletiva e na do ambiente”, explica Luís Saboga Nunes.

Para o especialista em Saúde Pública, o homem tem que pensar e agir na saúde como um pilar da sua existência e portanto investir não só na prevenção da doença mas na promoção da saúde. “‘Temos que aprender a curar’ é uma aprendizagem focada no homo sapiens“, explica, garantindo que “é uma ilusão dizer que vamos vencer o vírus. O homo salus vai aprender a viver com o vírus, porque vai criar resistências internas”.

Resiliência, Exercício, Nutrição, Água, Sol, Confiança, Equilíbrio, Repouso, Empoderamento e Sentido de Coerência: são as dez palavras-chave cujas iniciais formam a palavra “Renasceres, o modelo para a construção da cidadania em saúde”, como expressa o programa elaborado por três investigadores, um deles Luís Saboga Nunes. O especialista de Saúde Pública recomenda essa receita de dez passos para o mundo pós-pandemia.

Há ainda muitas incertezas quanto ao que nos espera depois da pandemia, mas para estes médicos e especialistas, uma coisa é certa: a forma como encaramos a saúde é não só uma necessidade, como uma consequência certa – e positiva – da passagem da COVID-19.

Nas palavras de Luís Saboga Nunes, “aquilo que nos faz avançar é a saúde. Nós vivemos numa sociedade patogénica, da doença, orientada pelo medo da morte. Deveríamos evoluir para uma sociedade salutogénica, orientada para as origens da saúde” conduzida por um homo salus que passou por pandemias, aprendeu com elas e que no futuro “assenta a experiência humana na busca pela saúde”.

Artigo editado por Filipa Silva.