No dia em que foi declarado estado de emergência, Portugal parou para salvaguardar a saúde pública. O atual estado de calamidade veio permitir um desconfinamento gradual. Agora, a mobilidade terá de se reinventar. Em conversa com o JPN, especialistas da área apostam no teletrabalho como forma de criar uma mobilidade mais livre e segura. Na indústria do turismo, a confiança dos viajantes depende da adaptação das companhias aéreas e hotelaria a esta nova realidade.

Iniciado o estado de calamidade, a ânsia de regressar à vida normal aumenta. Hugo Silveira Pereira, investigador na Universidade Nova de Lisboa e estudioso da história dos caminhos de ferro e dos transportes, acredita que “a mobilidade vai mudar substancialmente”. “Ninguém pode estar à espera que depois da pandemia voltemos à vida que tínhamos antes. Enquanto não se encontrar uma vacina que proteja o ser humano contra este vírus, a nossa vida vai estar em suspenso”, refere.

Com a procura por esta nova normalidade, há um problema imediato que se adivinha: o espaço. O professor Álvaro Costa, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), especialista em Mobilidade e Transportes Urbanos, aponta “o facto de as pessoas precisarem de mais espaço para se sentirem seguras”.

É nesse sentido que surgem as medidas aplicadas pelo Governo nesta primeira fase de desconfinamento. Nos transportes públicos, a lotação não deve superar a dois terços da lotação máxima, e é obrigatório o uso de máscara e a higienização e limpeza do veículo.

Esta redução na densidade fez com que os portugueses começassem a repensar os seus meios de deslocação no pós-pandemia. O especialista em Mobilidade e Transportes Urbanos e antigo professor catedrático do Instituto Superior Técnico, José Manuel Viegas, está convencido de que “a mobilidade tornar-se-á mais individualizada“. “Primeiro, por causa das regras [de distanciamento] do governo [relativamente aos transportes coletivos] e depois, pelo medo que demora mais tempo a evaporar-se do que o regulamento”, justifica.

“É possível que não se consiga levar no transporte coletivo, com a baixa densidade, todas as pessoas que precisavam e, há, portanto um risco elevado de que optem por ir de carro”, admite. Além disso, acredita que, a favor do carro, há um “argumento bom que é o facto de o crude estar muito barato lá fora”, o que faz baixar o preço do combustível e aumentar o uso do carro. Contudo, refuta, “o espaço público para andar de carro não vai aumentar e o estacionamento não vai aumentar”, o que pode levar ao congestionamento do espaço público, nos meses que se adivinham.

Já Hugo Silveira Pereira prevê o uso do carro como “a reação mais imediata”, uma vez que “o transporte público é tudo menos um sistema de distanciamento social”. Porém, acredita que cabe “também às autoridades, ao governo e até às autoridades científicas mostrar que outras formas são possíveis, que é possível continuar a manter a segurança, o distanciamento social e a nossa vida no pós-pandemia”.

2020 como o ano da imobilidade

O ser humano do paleolítico caracterizava-se por ser nómada e por se deslocar constantemente na procura por alimento. Com o investimento na agropecuária, tornou-se mais sedentário, o que permitiu a formação de comunidades, aldeias, vilas e, posteriormente, cidades como as conhecemos hoje. Contudo, a mobilidade sempre foi algo inerente ao ser humano e tem vindo a crescer nos últimos tempos. O ano de 2019 foi aquele em que os portugueses mais viajaram na última década. Agora, pede-se aos cidadãos que rejeitem a mobilidade pela segurança de todos.

“A imobilidade sempre foi algo visto como negativo, uma situação pejorativa, que não regulava progresso nem desenvolvimento. Mas, de facto, essa é uma das questões que teremos de revisitar. Tornar a nossa vida não tão móvel”, começa por propôr Hugo Silveira Pereira. Na base desta filosofia, o investigador crê que o teletrabalho será o futuro da geração do pós-pandemia. 

O professor José Manuel Viegas partilha da mesma opinião, explicando que dessa forma se diminui “o número de pessoas que precisam de se movimentar, pelo menos, no [percurso] casa-trabalho”. Para tal, propõe que metade dos funcionários das empresas fiquem em teletrabalho, alternando cada semana – “umas semanas são uns, noutras semanas são outros”. 

O teletrabalho é, segundo os especialistas, a forma mais eficiente de evitar um grande número de pessoas a deslocar-se para o local de trabalho.

O teletrabalho é, segundo os especialistas, a forma mais eficiente de evitar um grande número de pessoas a deslocar-se para o local de trabalho. Foto: Wikimedia

Carpooling, bicicleta ou comboio?

O especialista acredita que o futuro da mobilidade passa, ainda, por outras alternativas. Entre elas, destaca o carpooling – ou boleia partilhada – que consiste no uso alternado do automóvel particular para transportar, neste caso, duas pessoas (o dono do automóvel e outra) para o trabalho.

“Em vez de virmos de transporte coletivo que é muito apertado, vamos no meu carro esta semana, no teu para a semana, um à frente e outro atrás”, começa por explicar. “Se todas as pessoas que hoje andam de carro, fizessem isso (o que é uma utopia), o número de carros era só metade”, constata o professor. Pondo isto em prática, o uso do carro em detrimento do autocarro já seria sustentável, “o sistema já aguentava”.

Além desta alternativa, o especialista em Mobilidade sugere o lançamento de programas públicos maciços de bicicletas partilhadas. Este é, segundo José Manuel Viegas, o meio de transporte mais eficiente “do ponto de vista de ocupação do espaço público”. Para tal, seria necessária a criação de ciclovias e a produção, distribuição e gestão das bicicletas. Contudo, José Manuel Viegas admite que a rapidez da resposta poderá não ser a desejada, da parte “quer da legislação dos concursos públicos quer das fábricas de bicicletas”. 

De acordo com o professor, em circunstâncias normais, o comboio seria o meio mais eficiente. No entanto, neste momento, devido à baixa densidade regulada pelas medidas de desconfinamento, seria necessário aumentar a frequência do serviço, como defende, por sua vez, o investigador Hugo Silveira Pereira.

“Ainda há muitas pessoas que usam o caminho de ferro para ir para o seus trabalhos. Se diminuem a frequência, as pessoas têm de se aglomerar mais nas carruagens”, sustenta o investigador. Assim, apela ao reforço do serviço ferroviário no país, “pelo menos nas horas de ponta, nem que para isso fosse necessário suprimir alguns serviços noutras horas que não são tão críticas”.

Para Hugo Silveira Pereira, o Governo deve dar continuidade às negociações iniciadas com a CP – Comboios de Portugal, agora suspensas devido à pandemia. “A CP, como presta um serviço público a preços mais reduzidos, necessita de uma forte cobertura financeira do Governo”, defende.

Reforço dos serviços férreos poderá não ser a solução imediata que se pretende. Foto: Catarina Moscoso

Reforço dos serviços férreos poderá não ser a solução imediata que se pretende. Foto: Catarina Moscoso

Não obstante, José Manuel Viegas está convicto de que a solução não pode passar por algo que implique grandes aquisições de capital: “não é só por não haver dinheiro, é porque não há capacidade de responder rapidamente”. 

Teletrabalho como mobilidade do futuro

Numa coisa, a opinião é unânime: o teletrabalho é a resposta mais eficiente

“A solução do teletrabalho tem uma enorme vantagem que é não implicar aumentos de capital” e, portanto, é “uma medida acionável rapidamente”, como evidencia José Manuel Viegas.

Álvaro Costa acredita, ainda, que o atual e novo regime de trabalho possa constituir uma alteração estrutural à mobilidade. “Eu acho que este período serviu para se conseguir ver isso. As entidades patronais e os funcionários começaram a perceber que há tarefas em que a deslocação era evitável”, finaliza o professor da FEUP.

E a longo prazo?

José Manuel Viegas defende que é preciso que os cidadãos façam “vida de bairro”. Ou seja, é necessário caminharmos para um futuro onde haja “menos bairros suburbanos que não têm emprego, não têm lojas, cabeleireiros e outros serviços, o que obriga a que as pessoas tenham de vir aos centros comerciais”. Dessa forma, evitam-se deslocações que implicam a uso de transportes motorizados que ocupam a via pública e os habitantes poderão andar a pé ou de bicicleta.

Por sua vez, Álvaro Costa acredita que há uma lição a retirar da crise pandémica que o país e o mundo atravessam: “as pessoas perceberem o que é um sistema congestionado”. “Nós estamos em casa para evitar que os hospitais entrem em rutura. Ora, um hospital em rutura é um hospital congestionado. É o que acontece com as estradas: as estradas foram feitas para as pessoas circularem. Se estiverem congestionadas, as pessoas não circulam“, conclui o professor da FEUP. 

O vírus e o medo que paralisam aeroportos

Na deslocação casa-trabalho, parecem não faltar alternativas que permitam o cumprimento das medidas de segurança. Contudo, uma indústria particularmente afetada pela pandemia foi a das viagens e do turismo

Os aeroportos estão vazios, fruto da atual epidemia que assola o país e o mundo.

Os aeroportos estão vazios, fruto da atual epidemia que assola o país e o mundo. Foto: Multitempo

Quanto às viagens de trabalho internacionais, as recomendações não fogem àquilo que é sugerido para as restantes deslocações: o teletrabalho é a solução mais eficaz. “Há muitas reuniões que escusam de ser feitas presencialmente”, justifica Álvaro Costa. 

Já no que diz respeito às viagens turísticas, o caso muda de figura. O professor da FEUP refere que “esta pandemia teve um efeito económico profundo” que terá um “impacto forte na indústria” das viagens. Assim acontece pois, como em qualquer período de crise, o habitual consumidor poderá deixar de ter poder de compra para pagar viagens.

Todavia, José Manuel Viegas acredita que, além da questão financeira, há ainda outra agravante. “O medo não existe só na deslocação casa-trabalho”, afirma. Para o especialista em Mobilidade, se tenciona atrair turistas, “a indústria do lazer tem de ter grande cuidado”. Nos hóteis, além da desinfeção diária dos quartos e áreas comuns, propõe, ainda, que se alargue o horário do pequeno almoço, para controlar a densidade de pessoas na sala de refeições.

Do ponto de vista do investigador, estas são medidas a ser aplicadas na área da hotelaria e que poderão figurar no Selo de Garantia Sanitária proposto pelo Turismo de Portugal em conjunto com a Associação de Hotelaria de Portugal (AHP).

Porém, enquanto não há viagens, o funcionamento normal da hotelaria estará também condicionado, já que este mercado subsiste à base do turismo – que depende da confiança dos clientes.

Em comunicado, o diretor-geral e CEO da Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA) afirma que essa confiança “vai sofrer um golpe duplo”. Assim é porque, segundo Alexandre de Juniac, os viajantes terão preocupações com a segurança dos voos e poderão, além disso, ter sido afetados economicamente pela pandemia.

Posto isto, “os governos e o setor devem agir rápida e coordenadamente, adotando medidas para aumentar a confiança”, explica.

Por agora, os aeroportos continuam vazios e o aviões parados. Em relação a 2019, a Eurocontrol registou menos 91% dos voos. Em conversa com o JPN, Rui Quadros, coordenador da licenciatura em Gestão Aeronáutica do Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC), mostra-se receoso quanto ao futuro da indústria aérea. 

Nunca os pilotos (nem os técnicos de manutenção nas ciências aeronáuticas) estiveram tão preocupados com o seu posto de trabalho”, assegura. Como não há passageiros, as profissões da área estão em suspenso. “Mas este tempo de espera é mortífero”, refere o especialista em Gestão Aeronáutica. “Se as companhias já estavam com alguma dificuldade face ao ataque das low cost, imagine-se agora”, alerta, com receio do que pode vir a acontecer à TAP.

A TAP luta para sobreviver ao ataque das lowcost e, agora, da pandemia.

A TAP luta para sobreviver ao ataque das lowcost e, agora, da pandemia. Foto: Wikipédia

Rui Quadros acredita que, neste momento, em companhias lowcost e provavelmente na TAP, em circunstâncias normais, o verão já estaria praticamente vendido. Contudo, não é isso que se verifica.

De facto, em 2019, o setor do turismo representava 8,7% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Agora, a IATA estima que cerca de 25 milhões de empregos na aviação e no setor do turismo estão em risco, devido à atual crise pandémica. 

E quando os viajantes começarem a preparar as malas?

Uma pesquisa conduzida pela IATA com viajantes recentes concluiu que 60% dos viajantes pretende voltar a viajar um a dois meses depois da contenção da pandemia de COVID-19. Os restantes 40% indicaram que podem esperar seis meses ou mais.

Rui Quadros acredita que, por essa altura, as medidas de segurança serão aplicadas eficazmente pelas companhias aéreas. Antes de mais, refere que, nos próprios aeroportos, terá de se evitar a todo o custo grandes aglomerados de pessoas. Posteriormente, terão de se pôr em prática, globalmente, duas medidas já implantadas, como diz, pela companhia aérea Emirates. A primeira seria “a monitorização efetiva, com testes rápidos, das pessoas que embarcam e desembarcam”. Em segundo lugar, criar o distanciamento necessário entre pessoas no avião

Quanto ao preço dos voos, José Manuel Viegas prevê duas hipóteses: “ou duplicam o preço do bilhete e não há clientes ou não podem voar”, por falta de financiamento. “Os preços que tínhamos antes só eram possíveis com taxas de ocupação nunca inferiores, em média, a 85%. Se agora me dizem que é um lugar em cada três…”, reflete.

Perante isto, presume que o medo e o preço se juntem para dizer “se calhar, ainda não é altura de ir”.

Por outro lado, Rui Quadros está confiante de que as companhias, principalmente as lowcost, vão continuar a fazer a política do preço baixo, “para chamar a atenção”. Não acredita, por isso, que alguma companhia vá “cometer a brincadeira de fazer gestão de lucro e otimizar a receita com preços altos por falta de lugares”.

O coordenador da licenciatura em Gestão Aeronáutica antecipa uma mudança no modelo de negócio: agora “as empresas vão ter de fazer mais pelos seus consumidores e o consumidor vai ser mais exigente“. Contudo, afirma, convicto que não prevê “que o hábito de voar e querer visitar outros países vá diminuir”.

Por fim, como último recurso, Hugo Silveira Pereira sugere o Slow Travelling. Esta atividade consiste em “continuar a viajar, sim, mas evitando viagens muito rápidas – de avião ou de comboios de alta velocidade”. Em vez disso, procuram-se fazer “viagens mais lentas, a velocidades mais reduzidas e com menos pessoas”. Tal possibilita que os cidadãos usufruam do seu direito ao lazer, sem descurar da responsabilidade social.

Enquanto se aguarda, ansiosamente, por uma vacina que ponha fim à pandemia da COVID-19, o mundo questiona o conceito de mobilidade num futuro onde a proximidade não é bem-vinda. Resta saber o que perdurará mais tempo: se o vírus ou o medo.

Artigo editado por Filipa Silva.