A visita à Sinagoga kadoorie Mekor Haim no Porto, foi o ponto de partida para uma conversa com Hugo Vaz, curador do Museu Judaico do Porto, que nos ajudou a conhecer melhor a religião judaica.

Do livro sagrado que não pode ser tocado e que está sempre virado para a Terra Santa, às chaves das portas que nunca mais foram abertas, muitos são os factos e as curiosidades próprias da prática religiosa judaica e do judaísmo em geral. Hugo Vaz, diretor da Cultura e Investigação Histórica da Comunidade Israelita do Porto, responde a algumas questões.

JPN: Dê-nos exemplos de usos e costumes judaicos?

Hugo Vaz: Existem várias restrições e imposições alimentares. Estamos a falar da comida Koscher (pura). Durante o período da Páscoa judaica (Pessach), os judeus não podem consumir nenhum alimento com fermento. É costume comerem um pão muito típico (matzah), o pão ázimo, para recordar a saída à pressa do Egipto e o tempo que não houve para cozer o pão. Os judeus são muito associados ao pão ázimo, muito à custa dessa celebração que dura oito dias e que, em regra, coincide com a igreja católica e ortodoxa.

Um judeu deve rezar três vezes ao dia: de manhã, à tarde e à noite. Pode fazê-lo sozinho ou em grupo. Sempre que o faz coletivamente aqui, na sinagoga, é obrigatório ter um Minian (contagem em hebraico), um quórum de dez ou mais homens judeus de maior idade, para ter um serviço religioso completo. A entrada no Shabat (descanso), o sábado, é feita em todas as sinagogas do Mundo, por todos os judeus.

Os judeus só dão importância ao Antigo Testamento. Há ligeiras diferenças entre o Antigo Testamento cristão católico e a Bíblia Judaica. A Torá, o livro sagrado para os judeus, esse, corresponde aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, o Pentateuco. Existe um outro corpo de textos, de que o Talmude faz parte e outras publicações. A religião do livro, que é o judaísmo, gira em torno da Torá, onde estão as 613 obrigações, ensinamentos, que os Judeus devem seguir.

Sendo os judeus mais velhos, o antigo testamento foi beber à Bíblia Judaica. Depois o cristianismo é acrescentado ao novo testamento, que entende que Jesus é o Messias cristão, sendo que os judeus não o entendem como tal.

Como funciona a celebração religiosa dos judeus?

O Tefilah, o serviço religioso, é composto por um conjunto de leituras, de orações que são proferidas. Segunda, quinta e sábado lê-se uma paracha (parcela) da Torá especifica, no final do ano retoma-se as leituras desde o início. Não há pão e vinho numa cerimónia judaica. Pontualmente, e dependendo da sinagoga, costuma haver um sermão dado pelo rabino que interpreta à luz dos nossos dias o que se lê. Em muitas sinagogas ortodoxas é a única parte que é proferida na língua do país. Todas as outras orações são feitas em hebraico, a língua sagrada para os judeus. Esta sinagoga (do Porto) é de rito ortodoxo.

As sinagogas não ortodoxas, que diferenças apresentam face às outras?

Em muitas sinagogas mais liberais [as cerimónias] já são feitas na línguas do próprio país. Existe uma reinterpretação do que é o judaísmo original nas sinagogas liberais. Mas na base, os judeus acreditam no mesmo. O judaísmo ortodoxo não permite rabinos senhoras, ao contrário de algumas sinagogas liberais onde isso é possivel. Mas não tem nada a ver com discriminação. Um judeu é filho de mãe Judia, o que significa que se um homem judeu tiver um filho de uma mulher que não seja judia, esse filho não é judeu. Existem obrigações para homens e para mulheres. A obrigação de participar numa cerimónia religiosa é essencialmente masculina. Essa é a posição do judaísmo ortodoxo. As mulheres têm o direito de participar, não têm o dever de participar.

Bar Mitzvah corresponde a quê?

Corresponde à idade adulta no judaísmo. O início das responsabilidades religiosas. Nos rapazes, é aos 13 anos, nas raparigas, aos 12 e cumprem o Bar Mitzvah (filho do mandamento). É a primeira vez que o rapaz ou rapariga sobe à Bimah (plataforma – púlpito) e lê uma parte da Torá perante toda a comunidade.

Que orações fazem os Judeus?

A oração Kadish é proferida quando alguém morre e nos aniversários de falecimento. É uma oração pesadíssima, mas ao mesmo tempo muito bela, porque em nenhuma vez se fala de morte. Uma oração importante é a Amidá, uma oração feita em silencio, de pé. Há várias orações estruturadas, que têm por base não só a Torá, mas toda a Tanakh (Bíblia Judaica).

Livro de Orações | Foto: Paulo Sá Ferreira

É possivel assistir a uma cerimónia religiosa judaica?

Um não judeu pode assistir a um serviço religioso, mas depende das regras e restrições impostas por cada comunidade e sinagoga. É preciso uma autorização, é preciso avisar que que se quer assistir até por questões associadas à segurança.

Mas tem de usar a Kipá?

É uma obrigação Judaica cobrir a cabeça. Os judeus ortodoxos cobrem a cabeça o dia todo, os judeus não tão ortodoxos cobrem a cabeça quando rezam, quando entram numa sinagoga. Um não judeu quando entra numa sinagoga, por uma questão de respeito, pode fazê-lo, mas não é obrigatório.

Esta tradição de cobrir a cabeça vem de onde?

Está descrita na Torá. Não tem que ser necessariamente com a Kipá, que é relativamente moderna. Pode ser com um chapéu de abas, pode ser um boné com gorro, o que interessa é cobrir a cabeça em sinal de respeito a Deus, que está acima de nós.

O livro da Torá não é tocado, certo?

Sim, é verdade. O livro original é em formato de pergaminho, escrito à mão, escrito em Hebraico, demora largos meses a ser escrita, porque não pode conter erros ou imperfeições. Isso demonstra a importância que se dá à palavra de Deus. Quando a Torá é lida em contexto religioso evita-se tocar. Os Judeus não tocam diretamente no texto da Torá e costumamos usar uma espécie de ponteiro que nos ajuda a ler. Na Torá que está sempre virada para Jerusalém não se pode tocar com as mãos. Esta comunidade tem mais que uma Torá.

O que é preciso fazer para alguém se converter ao judaísmo?

Uma pessoa converte-se por causa da fé, porque acredita. Do ponto de vista judaico, uma pessoa que se converte tem de ter consciência que o judaísmo é uma religião regrada e tem de cumprir de uma maneira geral as regras que a religião impõe. Um candidato a uma conversão tem de ter estas duas questões em mente.

Qualquer pessoa pode converter-se ao judaísmo, desde que a comunidade tenha as ferramentas necessárias para uma conversão, que não é o caso da maior parte das comunidades. É preciso uma vivência em ambiente judaico religioso, é preciso um período de anos de estudo, e no final a pessoa tem de ser aprovada ou não por um tribunal rabínico, que tem de ser composto no mínimo por três rabinos. Só aí é que se formaliza a conversão. Mas nem todas as sinagogas e países têm tribunal rabínico. A Comunidade do Porto não tem, meramente por uma questão de dimensão. A nossa Comunidade não promove a ideia de conversões. Tem de partir de cada pessoa.

Que razões levam os judeus a não reconhecerem Jesus Cristo como o seu Messias?

Os judeus acreditam que quando o Messias vier haverá paz em todo o Mundo, ou citando, “as nações serão governadas por príncipes de paz”, que não foi isso exatamente o que aconteceu. Acreditam também que todos os judeus poderão regressar finalmente à sua Terra Santa, onde o Reino de Israel será restabelecido, sendo que esse Messias será o Rei, descendente da casa do Rei David, que também não aconteceu.

A ideia do Messias judaico é diferente da do Messias cristão, sobretudo do católico. Os judeus são monoteístas, acreditam num Deus único. Não acreditam de todo em tripartir Deus como no cristianismo. O Messias que virá nunca será Deus, nem será mais filho de Deus que qualquer um dos outros. Esse é o grande conflito relativamente ao Messias. Jesus era judeu. Os primeiros Cristãos foram no fundo, judeus ou não, os que acreditaram que Jesus era o Messias. E é isso dá, se quiser, esta divisão.

Foto: Paulo Sá Ferreira

As chaves, para os judeus, significam o quê?

Os judeus quando foram expulsos [édito de D. Manuel I, que determinou a expulsão de “judeus e mouros” do país data de 1496] acabaram por se converter ao cristianismo, os chamados cristãos-novos. Muitos saíram com as chaves das suas casas, fecharam as suas casas, vão para fora do país levando as suas chaves, na esperança de um dia regressar e voltar a ter as suas casas. Ainda hoje algumas famílias guardam chaves centenárias com essa esperança. Temos um conjunto dessas chaves no nosso museu, porque algumas famílias da Turquia, por exemplo, guardaram essas chaves, não fazendo a mínima ideia de onde a família veio, de que terra de Portugal, de que casa, se a casa ainda existe, etc… É um sentimento de pertença ao país de onde vieram. A nova Lei da Nacionalidade permite a muitos destes Judeus que mantenham um sentimento de pertença a Portugal, podendo por isso requerer a cidadania Portuguesa.

Artigo editado por Filipa Silva