A temporada das salas geridas pelo Teatro Nacional São João (TNSJ) arranca esta quinta-feira (6) com o mais recente trabalho do Teatro da Palmilha Dentada (TPD): uma adaptação de “O Burguês Fidalgo”, de Molière.

Trata-se do primeiro texto escrito fora do grupo que o TPD leva a palco, em quase 20 anos de existência.

Mais do que levar a cena Molière trata-se, nas palavras de Ricardo Alves, dramaturgo e encenador do grupo, de realizar um processo de “apropriação” de um dos grandes mestres do teatro europeu do século XVII. “Molière é o único escritor que me perdoaria destruir-lhe o texto, porque acho que tinha sentido de humor”, confessa, à margem do ensaio de imprensa a que o JPN assistiu.

A obra conta a história de Jordão, burguês rico de Paris que sonha ser nobre, caindo no ridículo e sendo enganado na sua busca desenfreada pela ascensão social.

Ricardo Alves transformou profundamente o texto de forma a adaptá-lo ao tempo atual, até porque a tradução portuguesa que lhe serve de base remonta ao século XVIII e está escrita em português arcaico.

Deste modo, o exercício proposto com este espetáculo é o de utilizar o texto de Molière para falar dos temas do presente.

O novo-riquismo, a frivolidade das aparências, o apego ao dinheiro, as ambições desmedidas, em suma, as “nossas fealdades”. Um “assunto”, nota o TPD, “que tem séculos e séculos de atualidade e futuro”.

Ensaio de “O Burguês Fidalgo”. Foto: João Tuna

Contudo, não é intenção do grupo, esclarece Ricardo Alves, tornar-se uma companhia de reportório. A TPD continuará a ser o que sempre foi: um projeto cujas raízes residem no universo do café-teatro e na construção dos seus próprios textos como “pretexto [e não fim] do espetáculo”.

Os atores não dão voz a quem fez a dramaturgia desta peça. Antes habitam (e portanto necessariamente transformam) o texto, mediante técnicas que Ricardo Alves designa de “improviso controlado”.

“Estamos a isto do entretenimento“, sintetiza o dramaturgo enquanto aproxima os dedos para representar algo minúsculo. Mas é precisamente essa diferença que permite à Palmilha Dentada reivindicar-se de uma prática teatral capaz de por o público a pensar e a colocar questões sobre a época em que vive.

Molière adaptado aos tempos modernos

Molière ficou famoso por obras como “O Misantropo” e “Tartufo” e por “O Burguês Fidalgo”, escrito a meias com Jean-Baptiste Lully, compositor barroco da corte francesa da época.

A obra foi estreada em 1670. Tinha uma duração aproximada de três horas distribuídas por cinco atos, misturando canções, representação e dança, dentro do que na altura se designava de formato comédia-balé.

Ensaio de “O Burguês Fidalgo”. Foto: João Tuna

A versão que irá estrear já amanhã foi bastante trabalhada pelo TPD. Ao nível do texto, o quarto ato foi suprimido e o quinto desdobrado em três conclusões diferentes, três caminhos possíveis para a história de Jordão, o burguês que, ludibriado, pensa casar a filha com um nobre turco para adquirir ele próprio estatuto nobiliárquico.

Na verdade, está a permitir que ela se case com um jovem por quem se apaixonou, um pretendente enjeitado pelo pai, sem qualquer título de nobreza.

Em termos de cenografia, um número mínimo de elementos em palco procura ser visualmente eficaz. Uma estrutura de meia esfera, construída em formato de poliedro, e iluminada com barras de leds, confina de alguma forma a representação a um espaço específico, funcionando como cenário transversal a toda a peça.

Telas circulares semiopacas suspensas sobre o palco e por detrás das quais os atores se posicionam em certos momentos criam um efeito interessante em que diversas camadas de representação parecem emergir em palco.

O guarda-roupa evoca o estilo de época, lembrando-nos que, apesar da abordagem atualizada das falas e da cenografia, estamos perante um texto clássico.

A temporada atípica que arranca amanhã

Salas com lotação condicionada, espectadores e assistentes de sala com máscaras, adaptação dos próprios textos para que os atores mantenham o distanciamento social. Espera-se um dos anos mais atípicos de sempre no teatro nacional devido à pandemia.

Vai ser uma experiência do teatro diferente da habitual nos próximos meses, até porque, como sublinha Ricardo Alves, não é possível “ignorar que o público está a pensar na pandemia”.

Embora o espetáculo esteja a ser preparado desde o outono do ano passado, o encenador e dramaturgo do TPD admite que, a partir de março, teve que repensar aquilo que tinha previsto.

Desde logo, a encenação e o processo de trabalho foram modificados de forma a minimizar os riscos de contágio entre os atores.

Ensaio de “O Burguês Fidalgo”. Foto: João Tuna

Também houve alterações no texto. O grupo não evita falar desse ‘elefante na sala’ que é a pandemia. Pelo contrário, integra-o na peça, ainda que esse não seja o tema central.

O objetivo da Palmilha Dentada é que o espetáculo seja “do seu tempo” ao invés de nascer de “uma tábua rasa para ser preenchido ao longo dos atos”.

Há gente do teatro a passar “muito mal

A pandemia está a ter um enorme impacto na cultura e na comunidade artística. Ricardo Alves admite que “é difícil fazer humor” com esta realidade em fundo, até porque há muitos colegas “que não estão muito bem ou estão mesmo muito mal”.

Contudo, o humor é a forma acertada de falar dos problemas, mesmo os mais graves. Ele permite “baixar a guarda, o público ri, fica relaxado, mas depois fica a pensar nas coisas”, reflete.

Essa é a grande “vantagem do humor“, a de nos restituir à vida quotidiana com um pensamento renovado e com mais capacidade para lidar com os problemas.

Com interpretação de Ivo Bastos, Mafalda Canhola, Maria Teresa Barbosa, Patrícia Queirós, Rui Oliveira e Tiago Araújo, “O Burguês Fidalgo”, uma co-produção do Teatro da Palmilha Dentada e do Teatro Nacional São João, sobe ao palco do Teatro Carlos Alberto as quartas e sábados às 19h00, às quintas e sextas às 21h00 e aos domingos às 16h00. Os bilhetes têm um custo de 10 euros.

Artigo editado por Filipa Silva