Depois de uma primeira tentativa frustrada, a Universidade Católica Portuguesa (UCP) viu, esta terça-feira, a sua proposta para a criação de um novo Mestrado Integrado em Medicina ser aprovada pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES). A decisão dita o fim da exclusividade do setor público no ensino médico: a UCP acolherá o primeiro curso de Medicina privado do país.

O anúncio foi feito pela reitora da instituição, Isabel Capeloa Gil, na noite de terça-feira (1), na rede social Twitter. Já esta manhã, em comunicado, a instituição detalhou que este “será o primeiro curso de medicina em Portugal lecionado em Inglês e aberto a estudantes de todo o mundo”.

A formação, de seis anos, vai ser feita em parceria com a Universidade de Maastricht e o Grupo Luz Saúde e, segundo a UCP, “distingue-se dos currículos tradicionais por ter uma abordagem mais prática e integrada desde os primeiros anos.”

As instalações onde vai ser lecionado o curso estão localizadas em Sintra, e serão “especificamente concebidas/adaptadas” a este curso.

Ao “Expresso”, a responsável máxima da UCP adiantou que o curso vai arrancar “na melhor das hipóteses”, no ano letivo de 2021/22.

À segunda, foi de vez

A primeira proposta da Universidade Católica, apresentada no ano passado, foi chumbada pela A3ES, com base nos pareceres negativos dados quer pela comissão de peritos nomeada para avaliar a candidatura, quer pela Ordem dos Médicos.

O número insuficiente de horas de contacto com a prática clínica, a existência de duas escolas médicas em Lisboa e a utilização de docentes oriundos destas instituições – colocando potencialmente em risco a formação nessas escolas – foram alguns dos argumentos apresentados.

A Universidade Católica criticou a decisão, recorreu e apresentou uma segunda proposta, a qual recebeu agora “luz verde” da A3ES. Segundo avança o “Jornal de Notícias”, desta feita, o curso teria merecido o parecer positivo da Ordem dos Médicos, de acordo com a informação transmitida ao jornal pelo presidente da A3ES, Alberto Amaral.

Mas a OM veio posteriormente a público contestar a ideia, dizendo que ela não é “fiel” ao conteúdo do parecer enviado à agência, o qual decidiu tornar público no seu site oficial.

Nesse documento, a ordem reconhece “a maior maturação” da proposta da Católica face à primeira versão, mas continua a manifestar reservas e preocupações. A principal está relacionada com o Hospital Beatriz Ângelo (HBA), em Loures, integrada no conjunto de unidades de saúde onde os futuros alunos de Medicina da Católica vão receber formação.

O hospital é atualmente gerido pelo Grupo Luz Saúde (GLS) ao abrigo de uma parceria público-privada (PPP), cujo contrato termina em janeiro de 2022, sendo sabido desde janeiro deste ano que esse contrato não será renovado “e que será lançado pelo Ministério da Saúde novo concurso público, que poderá resultar em nova entidade gestora (que não o GLS)”, diz a OM, para concluir: “O HBA constitui uma pedra basilar na proposta da UCP, sem a qual se levantam dúvidas sobre a sua viabilidade, dado que não existem garantias que este ciclo de estudos não perca a sua melhor e mais sólida instituição de saúde no próprio ano de abertura do curso.”

A A3ES estará ainda a avaliar outras duas propostas que recebeu: uma da CESPU (Cooperativa do Ensino Superior Politécnico e Universitário); e outra da Universidade Fernando Pessoa (UFP), duas instituições que tentam sem sucesso, há mais de uma década e meia, a aprovação de um curso na área – a UFP construiu até um hospital-escola para o efeito.

Governo e escolas médicas em desacordo

O “chumbo” de dezembro da proposta da UCP acabou por voltar a trazer para o espaço público a discussão sobre a necessidade de formar mais médicos em Portugal e sobre a manutenção desse exclusivo na esfera pública – houve até uma audição parlamentar sobre o tema.

Discussão que foi reacendida, em maio, quando o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, adiantou em entrevista ao “Expresso” que este ano, pela primeira vez numa década, as escolas médicas iam poder alargar o número de vagas.

Apesar disso, as sete escolas médicas do país que têm mestrados integrados na área recusaram a oferta e mantiveram os 1.441 lugares dos últimos anos, alegando que não há condições para mais entradas. O diretor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Altamiro Costa-Pereira, questionou a propósito, e em declarações ao “Jornal de Notícias”, que razões motivariam o ministro Manuel Heitor na intenção, classificando o anúncio governativo de “populista e oportunista”.

A OM, as escolas médicas e a Associação Nacional de Estudantes de Medicina defendem que não há necessidade de aumentar a capacidade formativa do país, colocando a tónica na necessidade de aumentar as vagas de especialidade – o número de médicos indiferenciados está a aumentar – e de criar condições para uma distribuição mais equilibrada dos clínicos pelo território.

É uma discussão antiga e com posições claras a favor e contra, a da abertura de mais cursos na área. Manuel Heitor é que não duvida que “existe uma necessidade de mais médicos no país”, como declarou ao “Público” depois de se saber que as escolas médicas mantiveram o número de vagas dos últimos anos. O ministro avançou mesmo estar a desenvolver contactos com as universidades de Aveiro e Évora e com a Universidade Católica – que não é, como se disse, a única privada com pretensões na área – para as estimular a avançar, ainda que gradualmente, com formações na área.

Declarações que levaram a OM a falar em “condicionamento político prévio” à decisão de autorizar a abertura do curso de Medicina da Católica, considerando agora que a decisão da A3ES “foi ao encontro do que era esperado, com a esfera política a prevalecer sobre a esfera técnica.”

Posição contrariada pela reitora da Universidade Católica, Isabel Capeloa Gil, que em declarações à Rádio Observador, na manhã desta quinta-feira, considerou que o que mudou na avaliação das duas propostas é a que a segunda se cingiu “a aspetos académicos, curriculares, científicos e clínicos”.

A reitora disse ainda “compreender” a posição do Conselho Nacional de Escolas Médicas “que é protetora de um determinado status quo“. “Há uma questão de protecionismo da profissão e do modelo de formação, isso é claro. A posição da Universidade [Católica] é a de contribuir para uma renovação do ensino médico em Portugal, apresentar uma nova oferta. Devia ser irrelevante o modelo de financiamento do curso. O que conta para o público é que haja qualidade”, declarou.

Artigo atualizado às 11h23 de 3 de setembro com o parecer da Ordem dos Médicos e as declarações da reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil.