O temporal gelado não é estranho aos clubes nortenhos. Só que os pontos, ainda que explorados de maneiras tão antagónicas, têm colocado sorrisos no semblante dos históricos Rio Ave e Boavista. Previa-se, por isso, um combate aliciante nos Arcos. Ora bem, metade do plano saiu furado.

Se a chuva não deu tréguas, a emoção custou a aparecer. Sorriram os vila-condenses (2-0), abrindo com o pé de Hélder Guedes um triunfo que ficou certificado nos descontos. Yuri Ribeiro protagonizou uma cavalgada improvável e candidatou-se a ter o nome gravado nos compêndios da época. Três deslocações depois, o Boavista voltou a derrapar fora de portas. Sem capitalizar a vitória sobre o Portimonense, os portuenses viram ainda o Vitória acionar a manobra de ultrapassagem na tabela.

Desvio à monotonia

Poucas surpresas no lançamento dos dados. Por opção técnica, Miguel Cardoso trocou Marcão por Nélson Monte no eixo da defesa rioavista. Por dever, Nuno Henrique substituiu o castigado Rapahel Rossi, assumindo pela primeira vez a titularidade na era de Jorge Simão.

O clássico nortenho começou a definir-se no primeiro quarto de hora. De início, João Novais tentou diversificar o seu rol de finalizações, cabeceando contra Vagner um cruzamento tirado por Lionn. Pouco depois, aos 14 minutos, o médio português apareceu pela meia-esquerda e serviu Guedes pelo ar. O dono da camisola sete desviou de primeira para o segundo poste. A bola terá transposto por completo a linha de golo, mas nem as imagens televisivas são concludentes. O árbitro assistente deu golo. Hélder Malheiro aguardou uns segundos e socorreu-se do vídeoárbitro para validar o sétimo remate certeiro do avançado na Liga. Benefício da dúvida para a equipa de arbitragem.

Contudo, os homens da casa acabaram ofuscados no meio da neblina. Sem o fulgor de outras jornadas, o Rio Ave protagonizou uma tarde-noite desinspirada. Vários passes disparatados, pouca mobilidade e até dificuldades para impor a construção à flor do relvado, pé ante pé. Cortesia de uma pantera lutadora a toda a largura do terreno. De facto, a pressão axadrezada chegava para criar impaciência na bancada verde e branca. Faltava era complementá-la com algum poder de fogo nas transições ofensivas.

Cavalgar até ao céu

Até porque não faltaram jogadas prometedoras para o Boavista na etapa complementar. À propensão ofensiva de Talocha aglutinou-se a sagacidade de Mateus, talvez a peça mais consistente do ataque axadrezado. Na cauda dos juízos valorativos aparecem Leonardo Ruiz e Kuca, vários passos atrás do angolano. Querem demonstrações? O falhanço à boca da baliza ao minuto 70 é a prova cabal do desacerto.

No quarto de hora final, Jorge Simão foi ao banco resgatar os jovens Yusupha Njie e Rui Pedro. O dianteiro emprestado pelo FC Porto quase igualou o marcador aos 80’. Rui Vieira esteve imperial, garantindo baliza virgem ao fim de onze encontros. Antes, espaço para polémica. Aos 66 minutos, Fábio Espinho isolou-se. Rui Vieira saiu da área para cortar a jogada. Chegou atrasado e tocou levemente no gémeo do adversário. Hélder Malheiro deu amarelo ao médio português por suposta simulação.

A chuva, essa realidade tão agarrada aos meses de inverno, afugentou alguns adeptos. Os resistentes tiveram recompensa à medida. Nos descontos, Yuri Ribeiro arrancou do meio-campo e só parou na área contrária. Vagner ficou vergado com um misto de lucidez e colocação. O melhor estava guardado para o fim, num gesto tão idêntico aos slaloms celebrizados por Maradona.

O Rio Ave termina a jornada com motivos suplementares para sorrir. Não só consolidou o quinto posto, como aumenta o fosso para Marítimo, Chaves e Boavista. Os três pontos reforçam a candidatura europeia, mesmo se a caravela continua atordoada pela saída de Rúben Ribeiro. A pantera continua a abrandar fora do Bessa e trocou novamente de lugar com o Vitória SC. Duas vitórias fora de portas é pobre, para quem alimenta o regresso às noites de gala.

“Ganhámos supremacia na luta dos estilos”

Apesar de ter somado a nona derrota no campeonato, Jorge Simão deixou elogios à exibição do Boavista. “Para aqueles que defendem um estilo de jogo, uma identidade, hoje contra um adversário que tem manifestado essa identidade conseguimos contrariá-lo e ganhámos supremacia na luta dos estilos. Mas o que fica são zero pontos para nós”, referiu o técnico axadrezado, prosseguindo com uma análise global ao encontro.

“O jogo passa por diferentes fases, diferentes domínios. Temos de saber passar por elas. Se sentimos o golo sofrido? Não. No decurso do jogo fomos criando perigo real para fazer golo. Na segunda parte há um lance do Rui Pedro, por exemplo. Depois, não é muito comum vermos lances daqueles, como o Yuri fez. Merecíamos mais”, assumiu em conferência de imprensa.

Jorge Simão aproveitou ainda para deixar reparos ao árbitro Hélder Malheiro. “Nem quero falar do primeiro golo. Nenhuma imagem me garante que a bola passou totalmente a linha de golo. Mas o lance capital aparece na segunda parte. O Fábio está isolado, o guarda-redes derruba o jogador. Um lance que seria de vermelho para o guarda-redes é transformado no quinto amarelo para o Fábio. Na próxima semana não pode jogar”, lamentou.

“Ganhámos ao melhor Boavista da época”

No final do encontro, Miguel Cardoso desmentiu que o Rio Ave tenha estado uns furos abaixo do habitual. “É preciso perceber contra quem jogamos. Queríamos contrariar o jogo do Boavista, em que o tempo de construção não é alargado. Isso leva a problemas, claro. Mas quisemos sempre jogar e uma ter intenção clara. Ajustámo-nos ao contexto que tivemos. Ganhámos 2-0 ao melhor Boavista da época”, analisou em conferência de imprensa, sublinhando que os vila-condenses fizeram “o que tinha de ser feito”.

“Há muitas formas de atingir objetivos. Tivemos 57 por cento de posse de bola. É considerável. Quando havia uma pressão excessiva do Boavista, explorámos as costas do Boavista. Mas saímos a jogar muitas vezes. Querer sair a jogar curto obriga o adversário a estar mais subido e a ser obrigado a proteger as costas. Há um modelo e havia um plano. Nem sempre fomos capazes de o seguir, mas ganhámos de forma justa”, descreveu.

Questionado sobre a influência que a saída de Rúben Ribeiro pode ter tido no modelo rioavista, Miguel Cardoso concentrou forças no coletivo. “Não há jogadores insubstituíveis, mas há ideias a que temos de ser fiéis. É assim que temos funcionado. Quando os jogadores valorizam o processo coletivo, estamos no bom caminho. É assim que queremos encarar esta competição”, concluiu.

Artigo editado por Filipa Silva