O Mercado do Bolhão desperta cedo. São sete em ponto e o senhor Armando já segura as chaves para abrir o velho edifício. É sempre o primeiro a chegar. Além da função de porteiro, trata de manter o espaço limpo. “Pego às seis e meia e saio às duas da tarde. Depois vêm outros para as limpezas”.

No piso superior, duas comerciantes esperam para entrar. Aguardam de mãos nos bolsos para abafar o frio que se faz sentir nas ruas, ainda desertas. Chegam as primeiras carrinhas. Trazem alimentos para reabastecer o mercado e têm de vir a tempo da abertura. Nelson começa a carregar caixas de legumes, frutas e batatas. “Isto não é nada meigo para começar o dia”, diz. As comerciantes ajudam no que podem.

“Estamos há anos debaixo destes ferros”

Dentro do mercado, preparam-se as bancas e contam-se as novidades do dia anterior. Os minutos passam e o sol começa a espreitar, ainda tímido, no meio do céu limpo. A luz do dia mostra uma paisagem de degradação. Paredes rachadas e andaimes enferrujados marcam a imagem do mercado centenário.

“Estamos há anos debaixo destes ferros. Dou graças a Deus por ainda virem aqui clientes meus”, afirma Zaida. Trabalha como peixeira no piso térreo do mercado, mais movimentado. As estruturas metálicas suportam o edifício desde 2005, devido ao risco de ruína. Luís Gonçalves vem ao mercado “desde que se conhece” e confessa que o cenário “é assustador”. No exterior, a situação não é melhor.

As ruas adjacentes encontram-se em obras. Escavadoras e outras máquinas entram em ação em estradas intransitáveis. A empreitada decorre desde o dia 1 de agosto e constitui a primeira fase das obras de reabilitação do mercado. Têm, contudo, afastado muita gente, até em vésperas de natal. “É óbvio que, por força da época, há mais procura, mas não é o que era”, de acordo com Miguel Mendonça. Para o presidente da Associação do Comércio Tradicional “Bolha de Água”, “os cortes no trânsito são lesivos”.

“A sua ceia de Natal começa no Mercado do Bolhão”

Enquanto comerciante, Emília sente os efeitos das obras. “As pessoas dizem que nem passam aqui. Têm de voltar e fazem as compras noutros locais”, explica. Muitos chegam a pensar que o próprio interior do mercado também se encontra fechado para obras, como confirma Moisés, talhante no espaço. “Vem menos gente. Foi por isso que fizeram a campanha. Era para informar as pessoas de que ainda estávamos abertos.”

Moisés refere-se à iniciativa “A sua ceia de Natal começa no Mercado do Bolhão”. O projeto da Câmara Municipal do Porto passou pela colocação de 250 mupis espalhados pela cidade e por publicidade de página inteira na imprensa. Visou chamar a atenção para o facto de os comerciantes ainda se encontrarem em funções no velho edifício. Moisés é o único rosto masculino dos cinco vendedores convidados a participar na campanha.

Outra das pessoas a dar a cara ao manifesto foi a Marília dos frangos. Considera ter ficado favorecida, mas diz que campanha não deu frutos. “Isto foi bom para alertar as pessoas de que ainda estamos cá. Mas o resultado é nenhum. Nem no Natal. Eu nem sei como é possível. Isto daria um parque para moscas”, desabafa a vendedora.

“A gente governa-se é com os turistas”

A época natalícia é de tristeza para os comerciantes de um mercado cada vez mais marcado pela presença de turistas. “A gente governa-se é com os turistas, não com as pessoas de cá”, refere Fernando Pereira, da secção dos vinhos. Percorre-se o mercado de banca em banca e os disparos de máquinas fotográficas fundem-se com uma multiplicidade de idiomas, comparável à variedade de produtos disponíveis. “Deus me livre. Nunca vieram tantos turistas”, remata Laura, que trabalha há 50 anos rodeada de legumes, cereais e ovos.

As pessoas da cidade, essas, preferem as grandes superfícies comerciais, segundo a dona Arminda, vendedora de atoalhados. Perante o reduzido número de clientes, muitos comerciantes saem mais cedo do mercado. Logo ao início da tarde as bancas tapadas enganam quem não vem ao espaço com frequência. Pode pensar-se que estão a almoçar. Mas não. Já foram embora e não voltam mais durante o dia. Não vale a pena.

Calendário das obras

No exterior

As obras em decurso no exterior do mercado iniciaram-se a 1 de agosto. Os trabalhos servem para desviar algumas infraestruturas e, sobretudo, uma linha de água, “tornando assim possível o posterior avanço das obras que estabilizarão o edifício e que permitirão a construção da cave técnica de que necessita para se modernizar”, de acordo com a CMP. Orçada em cerca de 800 mil euros, a empreitada tem uma duração prevista de oito meses e não implica a saída dos comerciantes, mas está a condicionar o trânsito nos arruamentos adjacentes ao mercado.

No interior

O interior do edifício também vai ser restaurado. As obras devem arrancar em meados de 2017, com uma duração prevista de 720 dias, quase dois anos. A Câmara do Porto garante vai manter a traça do espaço enquanto “mercado de frescos tradicional, onde os atuais comerciantes serão convidados a continuar, sendo considerados como a alma do mercado”. A intervenção visa equipar o mercado de infraestruturas adequadas aos tempos modernos.

Concurso Público lançado

Na segunda feira passada, a empresa municipal Gestão de Obras Públicas (GOP) lançou o Concurso Público para o Restauro e Modernização do Mercado do Bolhão, com um preço máximo de 25 milhões de euros. A primeira fase do concurso consiste na qualificação prévia dos candidatos e deverá estar concluída até ao final de janeiro de 2017. O vencedor do concurso fica obrigado a concluir, no prazo de 480 dias, “os trabalhos referentes às lojas exteriores e aos espaços de restauração”. Deverá também concluir, no prazo de 600 dias, “os trabalhos referentes ao telhado de modo a permitir a instalação de todo o equipamento no edifício”.

“Eu gosto de mercados, não de shoppings”

A falta de clientela não é a única preocupação. Os vendedores confessam também os anseios e receios de um futuro incerto, muito devido às obras que vão decorrer no espaço. Tal como o exterior, o edifício também vai receber um tratamento de beleza. A segunda fase de reabilitação está agendada para arrancar no interior do mercado em meados do próximo ano, altura em que os comerciantes vão ser transferidos para o centro comercial La Vie, na Rua Fernandes Tomás. Se tudo correr dentro do calendário definido, as obras devem terminar em 2019.

A solução não é bem acolhida pela maioria dos comerciantes. Emília prefere nem falar no La Vie. Limita-se a dizer que gosta “de mercados, não de shoppings”. Mais crítico mostra-se Fernando. Para o vendedor de vinhos, “é um buraco. Morreu ao nascer”. As escadas rolantes e os elevadores – o mercado deve ficar instalado no espaço subterrâneo onde se situava uma loja da Media Markt – são vistos como um obstáculo para os mais idosos.

Sobre as obras, Emília está receosa. “Só acredito nas obras quando estiver cá dentro a trabalhar outra vez. Isto é a minha primeira casa. Trabalho aqui desde que estou na barriga da minha mãe. O meu Bolhão vai-me deixar muitas saudades”, diz de lágrimas nos olhos. A demonstrar o desânimo está também a dona Laura. Lamenta que a “beleza destas bancas vá abaixo”.

“Isto não pode parar nem morrer”

Dentro do mercado estarão entre 60 a 80 trabalhadores, segundo Alcino Sousa, presidente da Associação de Comerciantes do Bolhão. “Já fomos quase 400”, refere a Marília dos frangos. O número atual pode vir a baixar, devido à empreitada. Marília, de 74 anos, é das vendedoras que não tenciona regressar depois da intervenção. “Já não está em mim recomeçar uma atividade com esta idade. Tenho de ser realista”.

Mais determinada está Sara Araújo, outra das vendedoras de peixe. Afirma, convicta, que vai voltar e deixa claro que os frescos se vão manter frescos. “Cá em baixo vai ser um mercado de frescos. Sem discussões. Lá em cima vai ter restaurantes”, acrescenta.

Comum a todos os vendedores está a incerteza em relação ao futuro, mas reina a esperança dos que pretendem continuar o negócio e fazer do mercado um espaço de eleição. “Isto não pode parar nem morrer. É o coração da cidade”, garante Inês, florista.

Depois de um dia calmo, chegam mais carrinhas e recomeça o abastecimento do mercado. Deixam-se as bancas cheias para o dia seguinte. De manhã, o processo repete-se. São cinco da tarde e resta fechar o edifício. O senhor Joaquim está cá para isso. Quer trancar as portas a horas, mas há quem continue a sair e a entrar. “Eu fico sempre mais uma horinha. Só depois é que aviso. Ó meninos! Vou fechar à chave”.

Artigo editado por Filipa Silva