Nelida Brito nasceu em Angola e tem nacionalidade Cabo-verdiana, é professora, tem 3 filhos e está a terminar o Mestrado em História Contemporânea na Faculdade de Letras da UP.
João Sousa é de São Tomé e Príncipe, concluiu há 6 meses o curso de medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, onde foi presidente da Associação de Estudantes. Tem mais 6 anos de estudo pela frente, para se especializar em Cirurgia.
São dois percursos distintos de alunos africanos que passaram pela Universidade do Porto. Falaram ao JornalismoPortoNet da sua vivência e do futuro que os aguarda. Em Portugal e no país de origem.

Um horizonte maior

“Sempre estive ligada a Portugal.” Assim respondeu Nelida Brito à pergunta inicial que procurava descortinar o momento de integração num país estrangeiro. A relação com Portugal começou quando Nelida frequentava o ensino secundário, depois de, por altura da guerra em Angola, ter ido para Cabo Verde e desse arquipélago africano para o nosso país. A integração nessa altura foi fácil, em casa falava apenas português e por isso a língua não foi um entrave. Nelida conta que “fez muito boas amigas em Portugal”. Uns anos depois regressou a Cabo Verde onde fez bacharelato em História. Deu aulas em escolas na Cidade da Praia e na ilha do Sal, tendo sido convidada para ser directora do Liceu Olavo Moniz. Aceitou apenas o cargo de subdirectora pedagógica. Passou pela coordenação da escola, foi representante do liceu na UNESCO e, uns anos depois, veio a Portugal concretizar “o sonho” de concluir a licenciatura.

“As condições de estudo são outras, a formação é outra, temos um horizonte muito maior em termos de investigação”, são os argumentos que apresenta para a escolha de ingressar no ensino superior português. Inicialmente pretendia regressar um ano depois, com a licenciatura terminada, mas surgiu uma vaga para Mestrado na Faculdade de Letras. “Esta oportunidade”, como lhe chama, “tinha de ser aproveitada” e por isso ficou até ao corrente ano lectivo, no final do qual prevê voltar para Cabo Verde. “Para ajudar o desenvolvimento do Ensino Superior. O Ministério sabe que estou cá, estão a contar comigo”.

“O Campo de Concentração do Tarrafal” é o título provisório que adianta para a tese de Mestrado, em que se debruça sobre as memórias dos presos políticos e o período histórico que vai de 1936 a 1954. “Faz parte da história de Portugal e de Cabo Verde”, lembra, encontrando mais uma relação com o país onde casou. “De resto, sinto-me bem cá. Sempre aparecem situações… mas é normal”.

Diferenças

Naturalmente, a conversa com Nelida Brito encaminhou-se para o terreno perigoso da “diferença racial”. Do percurso no país lembra com uma certa tristeza um momento recente, em que uma criança num autocarro apontou nela a tal “diferença racial”. “Julgava que só existia a partir de certa fase etária. Mas enganei-me. Em algum sítio, alguém já mostrou a essa criança a diferença entre raças”. Nelida vai mais longe e afirma com convicção que a haver diferença entre seres humanos, está “nas oportunidades”.

A oportunidade de conseguir uma bolsa de estudo do Governo de Cabo Verde esteve perto mas acabou por não a conseguir agarrar. De todo o percurso na Universidade do Porto, Nelida diz que “a única coisa que tive foi o pequeno subsídio e a assistência médica que me dava a Reitoria. Não tenho razão de queixa”. Os professores são referidos com um sorriso que faz entrever gratidão. “O que devo à Universidade jamais poderei pagar. Um casal de professores chegou a levar-me a casa deles, o que é difícil fazer cá. Em Cabo Verde, facilmente convidamos alguém para ir a nossa casa, mas é a nossa cultura.” Nelida fala ainda de fotocópias “cedidas” pela reprografia da faculdade e assegura que, apesar da dificuldade que implica ser “chefe de família” e estudante, simultaneamente, nunca lhe faltaram bens essenciais. “É impagável”, afiança a professora.

À deriva

Com o apoio da mãe que vive em Lisboa e dos próprios filhos, Nelida reconhece que não teve o mesmo percurso difícil da maioria dos jovens africanos. Foi professora de alguns deles e sabe que “quem vem sozinho fica à deriva. Ás vezes a embaixada demora 2 ou 3 meses a pagar as bolsas. Os próprios jovens nunca tiveram dinheiro nas mãos e de repente têm de se governar a si próprios.” Nelida Brito fala também de uma separação entre alunos e sociedade. “Quando as coisas correm mal ou sentimos a diferença racial, há tendência em isolarmo-nos, juntando um grupo de pessoas com quem nos aparentamos.”

Aluno Palop

João Sousa também “esteve à deriva”. “Infelizmente”, adianta logo no início da conversa. “Perdi a bolsa da Calouste Gulbenkian porque reprovei no primeiro ano”. As dificuldades surgiram com cadeiras específicas de Química, Matemática e Física, para as quais não tinha suficiente preparação de base. “Em S. Tomé não tínhamos livros para estudar”, recorda o agora médico, que em pequeno sonhava ser piloto aviador “num país onde é difícil concretizar anseios” e onde ouvia dos professores que “tinha queda para as letras”. Em S. Tomé e Príncipe a escolaridade obrigatória termina com o 11º ano e, com a mudança de governo em 1991, João foi um dos seleccionados, pelo programa de bolsas para o Ensino, para terminar o secundário em Portugal. Coube-lhe em sorte uma escola de Viana do Castelo e depois, também por sorteio entre alunos são-tomenses, a licenciatura em Medicina.

“Em 10 anos vi uma vez a minha mãe”

Nos primeiros anos passados na cidade do Porto, João fala de “muitas infelicidades”. “O estudante africano vem cheio de expectativas e nesse período não lhe é dada a atenção necessária. Isso só acontece quando o insucesso é visível.” Sem o apoio da bolsa de estudo e sem a família por perto, o médico chegou a trabalhar na Biblioteca e na sala de Informática do ICBAS, e passou também pela construção civil em Braga e por uma fábrica de cablagens em Cerzedo. “É claro que nessa altura não ia às aulas porque tinha de trabalhar para me sustentar”. Refere o apoio prestado pelo conselho directivo da faculdade e pela direcção do Hospital Geral de Santo António, que muitas vezes permitiu que o aluno tomasse refeições gratuitas na cantina. João Sousa assegura que a sua vida mudou radicalmente. “Em S. Tomé estava habituado a ter tudo, entretanto o meu pai faleceu e tive de trabalhar. Cá em Portugal passei muitas dificuldades, só vi a minha mãe uma vez, em 1999”, recorda.

“Não vote em Branco”

Apesar dos problemas iniciais, o recém-licenciado acabou por prosseguir com mais sucesso os estudos, concluindo o ciclo clínico do curso com uma média de 16 valores. Durante esse período participou activamente em manifestações de associativismo estudantil e diz com alegria que, ao que sabe, foi o único presidente africano de uma Associação de Estudantes universitária, em Portugal. João Sousa conta divertido que escolheu o lema “Não vote em Branco” para a lista que encabeçou e achou curioso que um fornecedor que procurava o presidente da associação na faculdade, não tivesse acreditado que ele era a pessoa que procurava. Acrescenta que ouviu dizer que alguns professores pensavam, na hora de atribuir as classificações, que “ele não precisa de boas notas em África”. Apesar de tudo, o João acredita que “grande parte dos portugueses não são racistas, ou pelo menos não o mostra ostensivamente”.

Durante os 10 anos em que frequentou o ICBAS, foi um aluno popular e não teve dificuldades em fazer amigos. Apesar de “tímido”, como diz ser, descobriu um “lado político” que se manifestou também na passagem pelo cargo de tesoureiro da Associação de Estudantes de S. Tomé e Príncipe, que em 1995, congregava cerca 50 estudantes da cidade do Porto. “Actualmente há muitos mais”, acredita. Mas sem apoio da Embaixada ou do governo são-tomense. “Custa-me que os nossos dirigentes não façam a mínima ideia como nós estamos. Temos uma bolsa de estudo, vimos para cá e ficamos definitivamente por nossa conta”. João Sousa acrescenta ainda que “os políticos têm sempre o discurso de que os estudantes não regressam. Provavelmente não será só pelas dificuldades do país. É um pouco de sentimento de revolta. Não custa saber se as pessoas estão vivas ou como vai o desempenho escolar, porque supostamente vimos para Portugal desenvolver os quadros do nosso país”

“Ninguém abandona o seu país definitivamente”

O recém-licenciado espera regressar a São Tomé depois de uma especialização em Cirurgia. Acredita que todos os alunos africanos têm a mesma intenção e sente-se incomodado quando lhe perguntam se espera regressar. “Porquê? Porque, na minha maneira de ver, ninguém abandona o seu país definitivamente.” Acrescenta ainda que “por muito que as condições sejam difíceis, as pessoas lá conseguem sobreviver e ser felizes na mesma. Se abandonamos o país, o abandono é sempre transitório.”

Percurso de Futuro

João Sousa prossegue o seu trabalho no Hospital Padre Américo em Penafiel, onde já conquistou os pacientes, no exercício do “sacerdócio” que é a medicina. Pretende regressar a São Tomé para ver a mãe e acredita que pode contribuir para o desenvolvimento do país onde a máxima é “leve-leve”. O mesmo é dizer como Armindo Vaz, sociólogo de S. Tomé e Príncipe: «Se a água já me dá pelas barbas: leve-leve… Se é o fogo que já ronda o telhado: leve-leve… Se o mar já se está a meter pela terra dentro: leve-leve…E assim por diante, leve-leve, leve-leve, leve-leve…»

Nelida Brito é optimista e sente-se feliz na fase dos “finalmentes”, como costuma dizer. Espera pelo regresso a Cabo Verde onde terá melhores condições de vida. E termina a conversa com uma mensagem de apoio. “Dou força a toda a gente que queira estudar. Se desanimarmos que será de nós? Temos que batalhar!”

Maria João Cunha