Olhares cruzados sobre a vida e a obra do escritor portuense, numa entrevista com Fátima Marinho, professora catedrática de Literatura Portuguesa.

JPN: Garrett é tido, por muitos especialistas, como o pai do português moderno. O que existe de novo na escrita garrettiana?

Fátima Marinho: As inovações de Garrett não são tanto a nível dos vocábulos, mas sobretudo no que diz respeito à expressão. O que há de novo na literatura garrettiana é a coloquialidade da escrita e uma nova forma de contar a estória, o que faz de Garrett um marco da literatura portuguesa.
Se pensarmos em Viagens na Minha Terra reparamos que Garrett não só introduz no romance digressões pessoais e considerações sobre o Portugal de então, como também conversa constantemente com o leitor. Esta postura traduz uma nova forma de pensar o país e a própria literatura, que já não se dirige apenas a uma elite cultural – como acontecia no século XVIII –, mas a uma classe mais ampla – a burguesia. E é precisamente esta classe emergente, com crescente poder de compra e formação cultural, que procura uma nova literatura, mais ligada aos seus interesses, à sua forma de expressão e ao seu quotidiano.

JPN: A Garrett se deve a introdução do movimento romântico em Portugal. Que influências bebe o escritor dos grandes nomes do romantismo europeu?

Fátima Marinho: Garrett esteve várias vezes exilado por motivos políticos, primeiro em Inglaterra e depois em França. Aí contactou com os românticos europeus, ao quais foi buscar influências que marcaram toda a sua obra: o gosto pelos valores nacionais, a evocação da religião cristã em vez do paganismo, a preferência por uma atmosfera típica de um locus horrendus, a criação de momentos dramáticos e a colocação de sentimentos exacerbados em cena.
Porém, quando o romantismo desperta em Portugal, já a Europa caminhava para o realismo, nomeadamente com Zola.

JPN: De que forma Garrett estabelece a ruptura com o neoclassicismo português do século XVIII?

F.M.: Em 1807, a família de Garrett parte para os Açores por causa das invasões francesas. Aí, ainda criança, recebe uma sólida formação clássica por parte do seu tio paterno, o bispo D.Frei Alexandre. E, na verdade, apesar de ser considerado o introdutor do romantismo em Portugal, Garrett nunca consegue libertar-se completamente dessa formação. No prefácio de Camões, é o próprio a dizer: “Não sou clássico, nem romântico”. Aliás, uma ideia que o escritor repete em vários lugares.
Mesmo nas Viagens, Garrett hesita muitas vezes entre os tópicos românticos e os clássicos.

JPN: Essa poderá ser, então, uma das particularidades que distinguem Garrett dos seus contemporâneos?

F.M.: Sim, se quisermos. Por exemplo, se compararmos Garrett e Herculano, constatamos que o último é um romântico mais puro, pois teve uma formação romântica de raiz. Nas obras de Alexandre Herculano quase não existem vestígios clássicos. Isso não acontece com Garrett, que nunca conseguiu separar completamente o romântico do clássico.

JPN: Como é que Almeida Garrett se enquadra no Portugal da primeira metade do século XIX?

F.M.: Como disse, Garrett nunca conseguiu abandonar por completo alguns traços da sua formação, ainda que politicamente fosse um liberal convicto. A nível literário, Garrett situa-se, portanto, na charneira entre duas épocas e esta divisão reflecte, de certa forma, o Portugal oitocentista – um país dividido, que quer romper com o passado, mas cuja ruptura nem sempre acontece de forma fácil e imediata.

JPN: Outro ponto, de certa forma inovador, na obra de Garrett é o interesse que mostra pelo Povo. De que forma a sua obra revela esse gosto pelo popular?

F.M.: O gosto pelo popular é um gosto da época, típico dos românticos. Uma espécie de reacção intelectual à política hegemónica de Napoleão. Se, por um lado, os intelectuais europeus apreciavam os ideais franceses de liberdade, por outro lado pretenderam conservar a nacionalidade das suas pátrias. Daí o gosto pelo popular e por tudo o que é genuinamente nacional, como por exemplo as tradições do Povo e a história medieval.
Garrett não escapa à regra dos românticos e cultiva também esse gosto pelo popular, que se reflecte sobretudo na recolha que faz de lendas e contos populares, reunidos no Romanceiro.

JPN: Garrett foi um homem das letras, mas também de acção política. É possível dissociar o Garrett-escritor do Garrett-político?

F.M: As obras de Garrett reflectem, sem dúvida, o seu pensamento político e social. Algumas das suas obras contêm claramente momentos relacionados com a sua actividade política. O exemplo mais flagrante é o das Viagens na Minha Terra e do contraste ideológico que existe entre as suas personagens centrais da trama – o Carlos, romântico e liberal, e o Frei Dinis, absolutista e corrupto.

JPN: A lírica garrettiana está carregada de sentimento e sensualidade, nomeadamente em Folhas Caídas. Que tipo de reacção despertou a sua forma despojada de expressão entre os sectores intelectuais mais conservadores

F.M.: Toda a poesia romântica é repleta de sensibilidade. Enquanto que a poesia clássica impõe esquemas rígidos e normativos, os românticos, em contrapartida, procuram o verso livre e a expressão natural do sentimento do autor. Embora inicialmente a poesia de Garrett tenha causado algum impacto – pelas novidades que introduz -, quando acontece a publicação de Folhas Caídas, que são uma obra tardia, o romantismo já estava instalado como corrente literária e outras obras importantes do mesmo género tinham, entretanto, sido publicadas.

JPN: Como é que Garrett via, então, a mulher?

F.M: Socialmente, Garrett era apologista da alfabetização e da formação escolar e cultural da mulher, mas não expressa ousadias quanto à possibilidade de uma intervenção feminina mais activa na vida político-social do país, o que reflecte a época em que viveu.
Esta concepção está bem patente nas cartas que escreve à sua filha Maria Adelaide, nas quais lhe diz que uma mulher deve aculturar-se para se tornar uma verdadeira senhora.
Já nas suas obras, Garrett recria o estereótipo feminino do romantismo, retratando a dualidade da mulher, que tanto é anjo, como demónio.
Na prosa, a Joaninha de Viagens na Minha Terra, por exemplo, é claramente uma mulher-anjo. Já na lírica, a oscilação entre as duas facetas da mulher está bem representada no poema “Anjo és”, no qual diz: “Mas que anjo és tu/ Em nome de quem vieste/ De Jeová ou Belzebu?”. Claro que esta concepção não pode ser dissociada da experiência amorosa de Garrett, que viveu, na altura, amores socialmente condenáveis, como o relacionamento adúltero que manteve nos últimos anos de vida com a Viscondessa da Luz.

Andreia Fonseca