Há rostos que o público esquece. Embriagados com o filme e refastelados nas cadeiras da sala, poucos espectadores já conheceram uma cabina de projecção. “Cinema Paraíso”, realizado em 1988, por Giuseppe Tornatore, conta a história de Alfredo, projeccionista desde os dez anos que incute a paixão pelo cinema a uma criança – Salvatore. A dada altura, Salvatore diz-lhe que quer fazer projecções quando “for grande”. Mas Alfredo alerta-o para não o fazer pois ninguém se lembrará dele, a não ser que haja problemas.

Valdemar Silveira é projeccionista do Fantasporto desde a primeira hora do festival. Os tempos mudaram e com a passagem do festival para o Rivoli, Valdemar deixou de projectar os filmes. Agora limita-se a fazer a revisão das fitas, mas não esconde a vontade de ter uma participação mais activa no “Fantas”.

Diz que a maior homenagem que podem fazer a quem tem este ofício é ver o filme “Cinema Paraíso”. “As pessoas que vão ver o filme nem se lembram que está uma pessoa a tratar da fita, a não ser que haja uma avaria”, conta Valdemar, uma figura acarinhada por todos os que fazem o festival há 25 anos.

A sua história aproxima-se muito desta película, sobretudo quando se recorda dos tempos em que o Fantasporto decorria no Teatro Carlos Alberto. “Tal como no filme, estava a passar uma fita e a resistência ardeu. A projecção foi abaixo e todos foram lá acima – a Beatriz, o Mário, e mais gente. Tentei acalmar as pessoas e decidi mudar a resistência. Mas ao tirá-la, estourou! Saíram todos a correr assustados da cabina! Então arranjei o interruptor para fazer a ligação directa. Só que com a atrapalhação, casa cheia e nervos, pus a máquina a trabalhar ao contrário”, relembra Valdemar.

As sessões no Carlos Alberto

Já lá vão 25 anos desde que exibiu o primeiro filme no festival. “Para mim o Fantasporto é como um santuário. Sou projeccionista desde a sua primeira hora. Gosto muito disto, embora agora seja um bocado diferente. Não há tantas sessões como no Carlos Alberto, agora há seis ou cinco. Eu acabava às sete da manhã, agora acabam às três e meia, quatro horas”. Na cabina de projecção sentia-se em casa. “Eu até assava chouriços e fêveras na cabina, tinha máquina de café, era um convívio. Tenho muitas saudades desse tempo porque era sempre casa cheia e o público aderia até às cinco da manhã. Às vezes, eu adormecia na sala com a fita a correr. Era bonito”, conta Valdemar.

As histórias que viveu ao longo do festival davam um argumento para um filme de homenagem ao cinema. É com muita saudade que recorda os tempos das maratonas de cinema no Carlos Alberto. “Cheguei a levar uma cama para dormir na sala de projecção. Começava a trabalhar à uma e um quarto da tarde e até dava a última sessão às seis da manhã. Tomava banho nos camarins e vinha comer a casa ao meio-dia. Quando começava o Fantasporto a minha mulher dizia logo ‘Lá vais tu!’”.

A paixão pelo cinema ficou tão entranhada que até as dificuldades são vistas com saudade. “No meu tempo era pior porque tinha uma máquina alemã Herman 4 de 1937, cheia de problemas – vertia óleo, era a carvão, o motor era velho e não puxava a fita como devia ser. Era avaria sobre avaria”, descreve. Com o tempo ganhou agilidade e desembaraçava-se facilmente dos problemas. “Uma vez avariou-me a máquina na sessão das dez, que era a de competição. Tive de trocar as fitas de vinte em vinte minutos só com uma máquina. Parava a sessão e os espectadores não davam por nada. O Mário até contabilizou os oito segundos que eu demorava a meter a fita na máquina.”

A passagem para o Teatro Rivoli

A expressão de Valdemar muda quando fala do festival no Rivoli. Porquê? É o próprio que afirma: “Agora, o festival está numa casa que merecia porque ficou maior. Só que está menos familiar”. Porém, são ainda muitas as pessoas que passam e fazem questão de cumprimentar o projeccionista.

Admite que hoje o festival está melhor organizado e só teme que no futuro se perca. “O Rivoli é melhor que o Carlos Alberto. Quanto ao ambiente, as pessoas são as mesmas. Só me pergunto se essas pessoas acabarem, quem é que vai continuar o Fantasporto.” E conclui: “Eu queria morrer com 70 ou 80 anos mas ver o festival de pé”.

Carina Branco
João Pedro Barros