Nasceu António Joaquim Rodrigues Ribeiro, na freguesia de Fiscal, em Amares, no distrito de Braga, mas ficou conhecido do grande público como António Variações. Variações porque a palavra sugeria “elasticidade e liberdade”; e António era mesmo tão livre quanto a viagem em busca dos seus “sonhos perdidos“. Foi a 13 de junho de 1984 que perdeu a derradeira batalha contra um vírus ainda pouco conhecido: a SIDA. Tinha apenas 39 anos quando foi vencido pela doença. Mas venceu o tempo.

O artista que tentou mudar o mundo

António Variações foi dos nomes mais proeminentes da música portuguesa. Surgiu no início da década de 80, com um som situado “entre Braga e Nova Iorque”, e tocou tantos estilos que acabou por não pertencer a nenhum. Cantou o fado, dançou o blues e viveu o rock. Estreou-se com o álbum “Anjo da Guarda”, em 1983, e, no ano seguinte, lançou “Dar e Receber”. Morreria nesse ano de 1984. Três décadas depois, a música continua viva.

amigas do cantor, descreve-o, artisticamente, como “uma revolução na música popular portuguesa. Um inovador”. Estávamos no meio do afamado “boom” do rock português e emergiam bandas como UHF, Xutos e Pontapés, GNR, ou Heróis do Mar. À irreverência dos jovens do rock nacional juntou-se-lhes a irreverência de um barbeiro que extravasou os limites do género. “O António fez parte do ‘boom’ do rock português, mas não era um músico de rock, a não ser na atitude irreverente em palco”, afirma.

António Manuel Ribeiro, dos UHF, também conheceu bem o trabalho de António Variações. Ainda antes do lançamento de “Anjo da Guarda”, ouviu a eternamente inédita “Toma o Comprimido“. E achou-a uma “coisa fantástica”. Considerava-o o protótipo de um artista. “Ele era, na essência, um artista. E o que é um artista? É aquele sujeito que agarra num conjunto de palavras, numa letra, num poema, e tenta mudar o mundo. Agarra num conjunto de palavras e revela-se. Revela o seu lado interior. Ele era um artista”, diz.

No lugar de Reininho e Pregal

Para os seus dois álbuns de estúdio, António Variações contou com nomes de luxo. No primeiro álbum, “Anjo da Guarda”, participaram elementos ligados aos GNR; no segundo, “Dar e Receber”, foram os Heróis do Mar a colaborar nas gravações. António Variações, circunstancialmente, assumiu o lugar de Rui Reininho e de Rui Pregal da Cunha.

E Variações foi artista em todos os campos. Na música, na imagem e até na barbearia. Gostava de espetáculo e de ser o espetáculo. Prometia sê-lo até a “varrer as ruas da cidade”. A empatia com o público foi instantânea, como recorda Rui Pregal da Cunha, vocalista dos Heróis do Mar: “Acima de tudo, ele era um artista muito único. Houve uma vez em que foi ter connosco a um concerto, perto de Sintra, e, basicamente, o António estava na sala e as pessoas estavam mais interessadas em falar com ele. Ele era muito acarinhado pelo público”.

Rui Reininho também conheceu bem António Variações. Pertenciam ambos à editora Valentim de Carvalho e dois membros dos GNR – Toli e Vítor Rua – trabalharam no primeiro álbum do músico. Viajaram juntos várias vezes, rumo ao estúdio em Paço d’Arcos, e, por lá, passaram várias horas. Destaca-lhe a singularidade: “Ouvi umas coisas, porque ele tinha gosto em mostrar, vi-o a fazer ensaios, assistia às gravações. Ele chegava a ensaiar com bateria e improvisava na voz umas melodias. Era engraçado, era uma nova forma de fazer música”.

Um pavão que desfilava timidamente

A imagem foi sempre um ex-líbris da carreira de António Variações. As roupas e as barbas tornaram-no único no contexto social de outrora. Nas ruas lisboetas foi um pavão a desfilar por entre gaivotas. Nunca passou indiferente. “Ele tinha uma maneira de vestir muito particular: verde alface, cor-de-rosa, laranja, tudo misturado. Também tinha a barba descolorida, tipo Raúl Meireles, e usava aquelas roupas de licra. As pessoas metiam-se muito com ele na rua, mas no bom sentido. Ele era muito risonho e falava com toda a gente”, revela Rui Reininho.

“O resto do país é que vivia na idade da pedra”

Rui Pregal da Cunha, que, nos Heróis do Mar, deu voz a sucessos como “Só Gosto de Ti” ou “Paixão”, também usava uma indumentária que afrontava os padrões da época. Contudo, rejeita um conceito extravagante. A ideia de extravagância partia, por ora, dos outros. “Eu não diria que nós e o António tivéssemos um ar extravagante. Nós éramos artistas e tratávamos da nossa imagem como artistas e como pessoas. O resto do país é que vivia na idade da pedra”. E reforça: “Quando o conheci achei que era um homem bem vestido – uma coisa rara em Lisboa”.

Quem via caras não via Variações

Apesar da excentricidade que lhe era publicamente reconhecida, a descida do pano trazia um novo António Variações ao palco quotidiano. A efusividade dava lugar ao recato. Variações era simples. E espelhava, no sorriso, a simpatia dos que hoje o recordam. “Era um tipo muito bem disposto, uma jóia de pessoa. Claro que, para os oportunistas, quando alguém morre passa a ser um tipo porreiro. Mas, naquele caso, era mesmo. Era a sensação que tínhamos ao conviver com ele. Era um tipo fantástico, irradiava simpatia à sua volta”, afirma Rui Reininho.

António Ribeiro também privou diversas vezes com o Variações artista – que apresentou na Feira Popular lisboeta – e com o Variações pessoa. Eram dois Variações, mas nenhum variava. De um lado a personagem, do outro um observador do mundo, mergulhado nos seus recantos.

“Havia o António Variações que subia para cima do palco, que encarnava uma personagem; depois havia o outro António Variações, com o qual eu convivi, nomeadamente no Frágil, no Bairro Alto. Ele era completamente discreto. Podia ter uma indumentária mais trabalhada, porque ele dominava isso e podia criar a sua ’embalagem’, mas era um tipo extremamente discreto, tímido até. O Variações que eu conheci era um Variações tímido…”, relembra.

As “covers”

A influência de Variações espelhou-se em músicos de várias gerações. De Lena D’Água aos Delfins, vários foram os artistas que regravaram as suas músicas. Em 2004, os Humanos – banda formada por Camané, Manuela Azevedo e David Fonseca -, gravaram músicas inéditas e conferiram-lhes nova roupagem. A música mais escolhida como cover, no geral, será a Canção do Engate.

Também Rui Pregal da Cunha realça a simplicidade como ponto de partida da personalidade de António Variações. Mas ele era mais que isso. Tal como em Estou Além, um dos seus maiores êxitos, Variações era feito de contrastes. Bons contrastes. “Eu conhecia o António há bastantes anos e aquilo que mais me lembrava dele era a sua simplicidade enquanto pessoa. Contrariava muito aquele ar talvez um pouco extravagante para a época e quem o conhecia achava que ele era contrastantemente simples. Também era uma pessoa boa. Eu penso sempre no António e penso numa pessoa boa”.

Ao longo da vida pessoal, poucos terão sido os verdadeiros amigos do cantor. Lena D’Água recorda que esse grupo era “mais ou menos restrito”. Recorda-o como uma pessoa “amável, simples”, mas também como “um solitário”. Assim mesmo se descrevia o próprio Variações, nas vezes em que se punha a “falar sozinho” e os seus verbos escorriam da caneta para o papel. Poucos o terão alcançado.

O aparecimento do HIV

Decorria o ano de 1984 e a SIDA começava a figurar no vernáculo da sociedade. Contudo, uma névoa ainda encobria a magnitude do que estaria por vir, pois as informações eram tão ineficazes quanto os tratamentos. A nível internacional, o alarme soou com a morte de artistas como Rock Hudson ou Freddie Mercury – que morreram de complicações relacionadas com a doença. Em Portugal, ainda antes destes, o vírus vitimou António Variações.

Rui Pregal da Cunha terá sido das últimas pessoas a ver o músico. Com Carlos Maria e Pedro Ayres – companheiros dos Heróis do Mar – visitou-o “na noite anterior a morrer”. Sabia da gravidade do problema, mas a noticia da morte foi uma surpresa. “Sentia-se muito debilitado, respirava com dificuldades, mas pareceu-me bastante feliz por nos ver. A irmã dele telefonou-me nessa noite a dizer que ele tinha ficado muito contente com a nossa visita e que parecia em melhor estado, mais desperto. Parecia-lhe que estava outro, que estava melhor. Foi a última vez que o vi…”.

“Fiquei com a ideia de que os médicos não lhe diziam o que tinha”

Rui Reininho também esteve com António Variações quando a doença já fragilizava uma imagem que fora sempre cuidada de forma minuciosa. Entre brumas que não se desvaneciam, também o próprio parecia perdido. “Vi-o pouco tempo antes de morrer, numa entrega dos prémios SE7E. Ele era um tipo daqueles cheio de cabedal, com aspeto de ginásio, mas encontrei-o muito magro. Ele não sabia o que tinha, mas já devia estar com aquelas infeções. Fiquei com a ideia de que os médicos não lhe diziam, ou não sabiam, ou escondiam o que ele tinha”, recorda o vocalista dos GNR.

A “hipocrisia social” que se vivia em 1984, terá sido, para António Ribeiro, o grande obstáculo à proliferação de informações a respeito da doença. Mais em concreto, a respeito do estado de saúde de António Variações. “Na altura, inclusive, criaram-se tabus sobre a doença dele. Nunca ninguém revelou, em termos concretos, a insuficiência que é o HIV. Nunca ninguém falou nisso”, diz o líder dos UHF, admitindo que, hoje, as circunstâncias seriam diferentes. “Escondeu-se talvez por ser o primeiro, o mais famoso, sei lá. É um bocado tudo isso, um bocado de hipocrisia social. É a moral de 84. Trinta anos depois é completamente diferente”.

Júlio Isidro: “Estava tão à frente do tempo, que ainda nem chegamos lá”

Júlio Isidro foi uma espécie de padrinho, na música, para António Variações. Foi ele quem o apresentou ao país, no seu Passeio dos Alegres, e foi lá, também, que o músico se apresentou pela última vez em público. Júlio Isidro ouvi-o e achou que Variações se encontrava no perfil “revolucionário” do seu programa, palco onde também passaram os UHF ou os Heróis do Mar. Assume que teve a “sorte e visão” de descurar o talento de Variações, mas atribui-lhe todo o mérito.

A história é simples: Variações trabalhava como cabeleireiro e Júlio Isidro foi cortar o cabelo. Os laivos de timidez esfumaram-se e António, o cabeleiro, fez uma das abordagens mais importantes de toda a sua vida. “Quando fui cortar o cabelo à Isabel Queiroz do Vale, foi ele quem me cortou. E durante o corte de cabelo disse-me, ao ouvido, que cantava e escrevia umas canções. Perguntei se tinha alguma gravada e ele disse que não. Passados três dias foi ter comigo a um restaurante, não sei se me seguiu os passos, e entregou-me a cassete onde estava o ‘Toma o Comprimido'”

Um pequeno grande legado

Apesar de ter deixado apenas dois “LP’s”, António Variações deixou um legado suficientemente importante para ainda hoje ser dos artistas mais influentes em Portugal. António Ribeiro definiu-o desta forma: “Ele tem canções que são de uma síntese literária, da revelação daquilo que é uma idiossincrasia portuguesa: ‘O Corpo é Que Paga’, por exemplo, ou o ‘Toma o Comprimido’, que é uma canção fantástica que nos define. Portanto, o Variações vale por isto”.

A partir desse momento, nascia o António Variações que todos conhecemos. A indumentária já o distinguia do restante panorama musical; a música tratou do resto. “Apresentou-se no domingo seguinte com umas calças aos quadrados amarelos e pretos, com camisa preta, penso eu, e com uns comprimidos, nestes caso uns smarties, que usava enquanto cantava o refrão. Foi um sucesso imediato e, a partir daí, gravou o primeiro single, o Povo que Lavas no Rio“, continua Júlio Isidro.

Não tardou até que fosse comentado que António Variações estava à frente do seu tempo. Para o apresentador da RTP, o artista continua “absolutamente intemporal e continua a a escrever a história, 30 anos depois de ter morrido”. Júlio Isidro vai mais longe e afirma que “António Variações estava tão à frente no tempo, que ainda nem chegamos ao tempo dele”. Recorda ainda a autenticidade de alguém que foi alvo de tentativas de imitação, mas das quais “nenhuma chegou perto”.

António Variações, por ironia do destino, acabou por despedir-se do espaço mediático pela mesma porta por onde havia entrado. E foi igual a si mesmo. “Apareceu de pijama de flanela branco, com um ursinho de peluche, uma mala e umas botas. Era para ter cantado duas músicas do novo álbum, mas não estava suficientemente em forma para as estrear. Tocou duas antigas, mas ainda foi para o meio do público. Foi extraordinário”, relembra Júlio Isidro.

Imortalizado na sociedade portuguesa

Variações viria a morrer pouco tempo depois. Não se importava com o que seria e só queria viver. E viveu. Viveu segundo a sua própria consciência e ficou imortalizado como um artista ímpar. A 13 de junho de 1984, no céu de Santo António, brilhava mais uma estrela.