“Eu tinha de ter deixado uma marca”, afirma Ângelo Coelho, conhecido por Lito. “O bairro desapareceu, mas não desapareceu a alma, não desapareceu a vida de um povo que viveu ali. Tem de ficar registado”.

Lito é o terceiro de quatro irmãos e viveu os seus tempos de miúdo num bairro pobre de Campanhã. Em 2007, as obras de demolição de São Vicente de Paulo começaram e foi aí que Ângelo soube que tinha de escrever as memórias do bairro social. “A minha mãe tinha-se mudado para um bairro ao lado e sempre que ia à janela, via as máquinas a triturarem as casas e a desfazerem-se delas”, conta, “Eu olhava para a minha mãe, via-a a chorar e disse: ‘Tenho de fazer qualquer coisa pelas pessoas do bairro'”. E o livro começou a formar-se, com o objetivo de gravar as memórias daquele lugar: as brincadeiras de criança, as dificuldades, as doenças.

Ainda que a sua família fosse considerada, para a altura, “remediada”, grande parte do bairro vivia numa situação de pobreza preocupante. Mas não é apenas o lado mau que “Memórias do meu Bairro”, o livro que Lito agora lança, quer mostrar.

A solidariedade e a união entre as pessoas eram notórias e foi isso que deu vontade a Lito para escrever. “Havia uma proximidade muito grande, as pessoas como eram muito pobres estavam sempre disponíveis a ajudar: era uma pitadinha de sal, um bocadinho de azeite que se ia buscar ao vizinho… e se a vizinha estava doente ia-se logo levar uma sopinha e um pão”, explica o escritor.

“No meio de toda a dificuldade havia uma grande solidariedade entre as pessoas”

“Memórias do meu bairro” é um livro que retrata, sobretudo, a realidade. As dificuldades que se viviam eram imensas: a fome, a miséria, as doenças. A tuberculose, que vitimou muita gente no séc. XX, é assunto no livro, bem como os maus-tratos e a violência doméstica, numa altura em que “era comum o homem bater na mulher”.

No entanto, as dificuldades eram quase que esquecidas quando as crianças se juntavam para brincar. “No meio de toda a dificuldade havia de facto uma grande solidariedade entre as pessoas. As crianças, quando passavam na rua, faziam uma bola de trapos e tudo isso era esquecido momentaneamente”, lembra Ângelo. “As crianças eram pobres, mas ao mesmo tempo felizes e sonhavam. Esses sonhos, essa liberdade de sonhar e de pensar ninguém nos arrancava”.

Para além das vivências da altura – não esquecendo os boatos e barulhos da altura – o livro ainda contempla, de acordo com o autor, as “mezinhas e ladainhas, as lendas, as figuras típicas e mais conhecidas”.

“Um espelho e um reflexo dos bairros sociais”

O bairro foi para Ângelo Coelho uma lição de vida muito grande e por isso decidiu perpetuar as memórias num livro que funciona também como um “documento social importante para as novas gerações”. Ainda que o livro seja dedicado essencialmente a todos os que por lá passaram é também “um espelho e um reflexo dos bairros sociais”.

Em relação à atualidade dos bairros sociais e à atitude da Câmara Municipal do Porto, Ângelo é da opinião que falta sobretudo o restauro das habitações e a proximidade com a cidade. “Falta alguém que estivesse ligado aos bairros sociais para poder dinamizar. Criar sistemas de apoio aos jovens para o desporto, para o lado cultural e para o social. O problema é que só pegam nos bairros quando o problema já está descontrolado”, argumenta.

“Memórias do meu bairro” já está disponível para aquisição. Foi apresentado no final de junho, no Auditório de Campanhã, onde funcionou em tempos a Escola da Corujeira, onde Lito aprendeu a ler e a escrever.