Da exibição técnica à estrutura do programa, muitas são as diferenças assinaladas no Festival da Canção português ao longo dos seus 53 anos de existência. Depois de três anos sem emissão em 2002, 2013 e 2016, o programa televisivo renova-se e modifica-se com alterações — nem sempre consensuais.

Com início em 1964, o festival de apuramento da canção que iria representar Portugal no Festival da Eurovisão encheu, durante anos, as primeiras páginas dos jornais portugueses. Várias eram as casas pelo país em que os sofás eram o ponto de encontro de muitas famílias que interrompiam a sua rotina para acompanhar o evento. “Todo o país parava”, diz Simone de Oliveira, cantora e atriz portuguesa, que marcou presença no festival em seis edições. O evento funcionava como símbolo de identidade nacional.

Em 2017, assinala-se a 50ª emissão do Festival da Canção com o aparecimento de uma nova geração de compositores e intérpretes — alguns conhecidos do público, sobretudo de outros programas televisivos, outros já são artistas consagrados. Simone sublinha que “é um grande espetáculo, mas deixou de ser o que era”. “Rapazes e raparigas novas sabem muito pouco daquilo que era a nossa altura, o nosso Festival”, conta ao JPN.

A arte da mudança nas primeiras emissões

Os primeiros festivais foram marcados por decorações ostentosas. No decorrer do tempo, de 1975 até aos dias de hoje, transformaram-se em vitrinas cada vez mais minimalistas. A música teria que falar por si só.

Ainda que assinaladas por cenários extravagantes, as primeiras emissões tiveram problemas técnicos no som e na imagem.

José Dias trabalhou mais de 30 anos na RTP. Em 1994, ano em que o festival decorreu na zona norte, José integrou a equipa de operadores de câmara do festival. “Ser técnico no Festival da Canção era trabalhar com uma autêntica montra tecnológica. As maiores tecnologias da altura estavam lá. Era tudo canalizado para o festival. Era uma grande oportunidade”, conta. Do preto e branco às cores, estar atrás da imagem que eternizava o festival foi sempre um desafio artístico.

Se para os técnicos, a imagem e o som eram os aspetos mais importantes, para os músicos e compositores que passavam pelo palco, um festival requeria apenas música com qualidade. E, para muitos, música portuguesa.

Em 2000, as questões em redor dos idiomas a entrar no festival traziam, pela primeira vez, polémica. Nesse mesmo ano, Tozé Brito, compositor português e atual jurado do Festival da Canção de 2017, dizia que “em tempos de globalização, é através das particularidades estéticas e linguísticas que os países podem diferenciar-se, sobretudo em eventos como o Festival da Eurovisão”.

Nuno Santos, antigo diretor de programas da RTP, tinha uma opinião diferente. Nuno dizia, em 2000, ao Jornal de Notícias, considerar a globalização a desculpa ideal para introduzir o inglês.

17 anos depois da polémica surgir, Portugal decide abrir portas à língua inglesa no festival.

Em entrevista ao JPN, Simone de Oliveira critica a ausência de uma orquestra ao vivo e a validação de música estrangeira. “Eu tenho um país, uma pátria, e a minha língua é o português. Estamos a pôr todos os outros valores à frente. Querem cantar em inglês e eu não percebo. Jamais concordarei”, confessa.

A saudade do que foi, a expectativa do que é

Rui Drummond concorreu ao festival pela segunda vez — esteve presente na primeira semifinal de 2017, mas não foi escolhido para a final de 5 de março. Para o intérprete, contabilizam-se uma série de mudanças ao longo dos anos.

“Houve uma série de evoluções em quem participa. Cada vez temos mais compositores novos, atuais. Deixou de haver um pouco de preconceito do Festival”, conta Rui. No entanto, confessa que também há características que nunca mudam.

“Querem manter o registo de há 20 anos? Então, estão a conseguir”, diz, em resposta ao descrédito que considera que o Festival da Canção tem ganho nos últimos anos. Na opinião de Rui, a mesa de júri, constituída por personalidades antigas ligadas ao festival faz com que o mesmo não evolua. “O critério de escolha do júri não é a melhor canção, mas a música que serve mais o festival, na opinião deles. O que é um erro. Assim se perdem grandes músicas”, diz.

A cantora e atriz Simone de Oliveira confessa não ser “saudosista”. Apesar de discordar com algumas das mudanças realizadas ao longo dos anos, considera que é a “gente mais velha” que deve adaptar-se à “gente mais nova” e não o oposto. “Nós é que temos que seguir o rasto deles. O mundo mudou”, conta Simone.

Quando a música rompia costumes

Antes de 1975, o regime instalado em Portugal limitava os versos das canções e das conversas de café. A música que chegava ao Festival da Canção era tanto mais célebre e memorável, quanto mais rompesse com a linha ideológica do país.

Simone recorda o ano em que, enquanto intérprete da canção “Desfolhada”, levou a palco um “marco histórico” na vida da artista e dos festivais. A “Desfolhada” tornou-se intemporal para várias gerações. Foi interpretada numa altura complicada da primavera marcelista e, por isso, rompeu desde logo com algumas convenções. “Não houve, depois da “Desfolhada”, nenhuma receção assim. Aos 19 anos, cantei uma música que ninguém estava à espera, era contra tudo o que este país era, falsamente católico”, conta Simone.

Os anos que se seguiram à Revolução dos Cravos deram, na opinião da artista, espaço para versos musicais mais vazios. As letras redigidas pelas novas gerações já não carregam a mesma responsabilidade socio-política. Simone deixa o conselho: “O festival está entregue às gerações mais novas. Mas não podem ficar sem perceber o que é poesia, o que é música”.

Quando questionada acerca do estilo musical que melhor representaria Portugal no Festival Eurovisão da Canção, a artista evoca o fado. Mas confessa que não seria bem recebido, por ser “uma coisa estranha para os outros, algo diferente”.

O futuro do Festival da Canção

As audiências já não são as mesmas das de há 20 anos e a variedade de concursos televisivos sobre música parecem ter alterado a essência do Festival. As opiniões sobre a popularidade do programa são unânimes. “Se as audiências continuarem assim, não penso que o Festival continue”, conta Rui Drummond.

Simone de Oliveira já não vê o programa em que participou com os mesmos olhos. “As tendências são outras. Eu acho que já está tudo inventado, mas de vez em quando ainda surge alguma coisa”, justifica a também atriz.

O tipo de concorrentes é uma das transformações mais visíveis nos formatos recentes: mais novos e oriundos de outro género de concursos que envolvem o canto. Simone afirma que o Festival da Canção de “hoje são aquela gente mais nova que aprendeu música de outra maneira”.

Ainda que afirme que o Festival da Canção já não representa o que era antigamente, a artista espera que “este ano as coisas sejam diferentes, melhores”. Rui Drummond não partilha a mesma opinião: “Não vejo grande futuro”, acrescenta.

O Festival da Canção 2017 conta com duas semifinais, a primeira foi emitida no passado domingo e a próxima é este domingo (26 de fevereiro) . Viva la Diva, Fernando Daniel, Salvador Sobral e Deolinda Kinzimba foram os primeiros nomes a passar à final que será transmitida no dia 5 de março. A edição conta com 16 compositores convidados, com a responsabilidade de selecionar os intérpretes das suas composições musicais.

Sobre o desfecho desta edição, Simone diz ser necessário “um bocadinho de sorte”. “Tem que haver uma bela produção e uma bela mostragem ao mundo daquilo que melhor fazemos. Uma boa canção com um mau intérprete e vice-versa pode matar a nossa sorte”, explica.

Artigo editado por Rita Neves Costa