Na sua página de Facebook, o Cinema Trindade já tinha feito o anúncio: a presença de Marco Martins e de Nuno Lopes fez com que a sessão de sábado esgotasse, repetindo a dose de sexta-feira.

O realizador de “São Jorge”, Marco Martins, fez apenas uma pequena apresentação e deu ao ator a responsabilidade de responder, no final da exibição do filme, a todas as perguntas do público.

Nuno Lopes fez isso mesmo. Uma hora de conversa depois, ficamos esclarecidos em grandes e pequenas dúvidas, desde a escrita do guião à pós-produção de som, passando pela receção do filme no estrangeiro. “Este trabalho da pesquisa foi um trabalho de cinco anos. Foi há cinco anos que eu me sentei com o Marco a tentar decidir sobre o que é que era o próximo filme que queríamos fazer juntos”, começa Nuno Lopes, perante uma plateia cheia de perguntas.

“São Jorge” é uma longa-metragem pesada, mas de fácil compreensão. No auge da época de austeridade imposta pela “troika” em Portugal, Jorge (Nuno Lopes), um pugilista, cobra pela força dívidas difíceis, para que possa pagar as suas próprias e impedir que a ex-companheira Susana (Mariana Nunes) emigre com o seu filho para o Brasil.

Em “São Jorge” Nuno Lopes é “Jorge”, um pugilista que cobra dívidas para pagar as suas. Fonte: Ana Marta Ferreira

“São Jorge” traz assuntos que são novidade no cinema português das últimas décadas: o boxe, as cobranças difíceis. Mas, para além do conteúdo, Nuno Lopes desenvolve como Marco Martins inova na forma como concebe os seus projetos, ao misturar na tela atores profissionais com personagens “reais”, pessoas que vivem aquela realidade e que nunca fizeram cinema. “À medida que fomos andando e pesquisando fomos percebendo que as caras destas pessoas destes bairros, destes boxeurs, contam histórias em si próprias e não queríamos que essas histórias não estivessem no filme e havia coisas que eram irrepresentáveis por um ator”, explica.

O ator diz que já gostava do desporto e sempre quis fazer um filme sobre isso, mas ir aos ginásio e estar diariamente com pugilistas “serviu para desconstruir muitos preconceitos que tinha em relação ao boxe, por exemplo, a imagem de um desporto super violento e agressivo. De repente, encontro ali uma família”. 

A situação da cobrança de dívidas por atletas de um desporto que, em Portugal, é praticado sobretudo “por pessoas pobres”, é real nos bairros da Bela Vista e da Jamaica, em Lisboa, que são também “personagens” do filme, e o realizador Marco Martins descobriu isso através da investigação da equipa do filme, o que tornou uma simples narrativa sobre boxe, “numa história que já podia ser um filme” – diz Nuno Lopes à plateia do Trindade.

Eu tenho muitas hipóteses de fazer muitos heróis no cinema e nunca tive uma hipótese de representar aqueles que para mim são os meus heróis, que são estas pessoas que sobrevivem. Eu queria falar sobre as pessoas que vivem para lá do desespero mas ainda assim conseguem viver”, declarou ainda o ator premiado pela atuação no filme.

“O dragão da austeridade”

À semelhança de “As Mil e Uma Noites” de Miguel Gomes, “São Jorge” é um filme sobre os portugueses e as suas vidas numa fase muito particular, social e economicamente. E por isso é um filme com que as pessoas se relacionam, diz Nuno Lopes: “Queríamos falar de imigração, queríamos falar de racismo. Não queríamos fazer um filme em que houvesse bons e maus, em que os pobres eram bons e os maus eram os ricos, porque isso não é verdade, não é o que acontece. Há boas pessoas e más pessoas em todo o lado.”

O ator esteve envolvido em todas as fases do projeto e venceu no Festival de Cinema de Veneza o prémio para Melhor Ator na secção “Orizzonti” do festival.  O São Jorge, santo venerado no catolicismo, é conhecido pela lenda em que mata um dragão. Nuno Lopes, no seu discurso de agradecimento em Veneza, falou do “dragão da austeridade” que os portugueses tiveram de combater e isso soou a novo para algum do público estrangeiro.

Na sala do Trindade, Nuno partilhou essa visão sobre Portugal, lá fora: “As pessoas do sul da Europa passaram por isto e conhecem mais ou menos esta realidade, as do norte não fazem ideia. Vendeu-se muito, ao contrário do que aconteceu com a Grécia, a imagem de Portugal como o país que pagou as dívidas a tempo e que fazia até mais do que era previsto pela Troika. Lá fora não imaginam que tenhamos passado dificuldades durante a austeridade, pensam que nós vivíamos um bocadinho pior, mas que estava tudo bem.”

Vai haver novo projeto sobre “a crise”

Perguntado sobre “um São Jorge 2”, Nuno Lopes respondeu de forma surpreendente para a plateia: há um novo projeto a ser preparado sobre a época da austeridade em Portugal e, mais uma vez, com pessoas reais envolvidas, não-atores. E, novamente, ninguém melhor do que o próprio ator para esclarecer: “O Marco está neste momento a caminho de Great Yarmouth, uma cidade no Norte de Inglaterra, para onde foi a maior parte da imigração que aconteceu durante a crise. Há uma fábrica gigante de desossadores de Perus, em que 80% dos trabalhadores são portugueses, e fugiram para lá durante a crise. Vamos fazer com eles uma peça de teatro, como fizemos com os estaleiros de Viana em que os protagonistas vão ser essas pessoas, onde vão falar sobre as suas vidas. Se encontrarmos uma história pelo caminho vamos fazer também o filme. Vai ser sobre o resto da crise.”

Mas nem esta revelação sossegou as perguntas do público. Nuno Lopes debateu todo o tipo de assuntos abertamente com a plateia durante mais uns minutos, como o processo de escrita do guião e as motivações para escolher os papéis que faz. O público que encheu a Sala 2 do Trindade foi preparado para discutir cinema, a lembrar as antigas sessões de teatro, em que o público discutia a peça com os atores no fim. E Nuno Lopes não saiu da sala enquanto, para cada pergunta, houvesse uma resposta.

“São Jorge” estreou em Portugal a 9 de março e continua em exibição no cinema Trindade e nas salas comerciais.

Artigo revisto por Filipa Silva