A arte urbana na Invicta viu uma luz ao fundo do túnel com a presidência de Rui Moreira na Câmara do Porto, mas os artistas dizem que é preciso fazer mais. O JPN foi ouvir as várias vozes envolvidas no programa.

O programa de arte urbana que prometia dar um futuro ao movimento street art na Invicta ficou aquém do espectado. Os artistas lamentam as poucas coisas feitas nos três anos de projeto e, entre a abundância de latas, queixam-se de falta de paredes legalizadas e incoerência nos critérios de limpeza. O JPN foi ouvir quatro writers da cidade e a Porto Lazer, responsável pela condução do projeto de arte urbana.

A promoção da cultura tem sido um dos pontos altos do mandato de Rui Moreira na Câmara Municipal do Porto, o que se refletiu também numa mudança “de água para o vinho”, segundo os artistas ouvidos pelo JPN, na abordagem da arte urbana face ao anterior autarca, Rui Rio. O regime de “quase opressão” de que se queixavam os artistas deu lugar a um discurso e uma atitude de recetividade para intervenções artísticas no espaço público.

O cessar da “caça ao graffiti” fez proliferar cantos e recantos da Invicta pincelados de cor, anunciando a chegada de uma nova era para a arte urbana na cidade do Porto.

Godmess é um dos artistas que espalha cor pela Invicta.

Godmess é um dos artistas que espalha cor pela Invicta.

“A realidade é que o programa morreu logo no início”

Em 2014 nasceu o programa de arte urbana da Invicta. Conduzido pela Porto Lazer, o programa começou em grande com a exposição “Street Art AXA”. “Foi a primeira vez que conseguimos congregar todos os artistas do Porto e fazer com que trabalhassem conjuntamente”, admite Cláudia Melo, da direção artística da Porto Lazer.

A exposição teve uma adesão significativa, o que demonstrou a onda de consenso existente entre o município e o público relativamente ao desenvolvimento da arte urbana na cidade.

“Começaram bem, começaram com força depois da mudança da presidência, e ficaram-se um bocadinho por ali, deram uns biscoitinhos digamos, houve umas intervenções mas não foi nada do que poderia ser”, acredita Mesk, um dos nomes que preenche as paredes da Invicta.

Entre os artistas, a opinião é de que o programa que se pareceu bastante promissor no início, ficou depois pela linha de partida.

Mural da Trindade, de Mr. Dheo.

Mural da Trindade, por Mr. Dheo. Foto: Mr Dheo/Facebook

“Logo de seguida [ao Street Art AXA] fizemos um mural, eu e o Mr. Dheo, que seria o início de qualquer coisa nova e aparentemente essa seria a linha que eles [a Porto Lazer] iam seguir nos anos seguintes e, portanto, parecia de facto que tinham um programa. A realidade é que isso morreu logo”, declara Hazul, um dos artistas com maior presença na cidade. “Foram feitos mais um ou dois murais e pequenos eventos, que não são propriamente significativos, ou que se possa dizer que aquilo se chama um programa, portanto são coisas que são irrisórias do ponto de vista de uma cidade com a dimensão do Porto”, acrescenta o writer portuense.

Em entrevista ao JPN, a Porto Lazer diz ter consciência de que os artistas acham que o programa “está a andar muito devagar”, mas lembra que muitas vezes há uma falta de perceção por parte da comunidade artística em relação aos prazos e logística associados à organização dos projetos.

“Os trâmites normais do pedido de um licenciamento é de 30 dias e eu não posso dar uma resposta positiva a um artista que me diga ‘tenho esta proposta, gostava de iniciar o trabalho na próxima semana’, é impossível, é burocraticamente ou metodologicamente impossível”, explica Cláudia Melo. E adianta: “Estamos a andar com passos seguros, a fazer as coisas bem consolidadas e de acordo com estratégias de intervenção urbanística”.

“Continuamos a misturar alhos com bugalhos” 

A dissonância entre a comunidade artística e a Porto Lazer começa na ambiguidade do próprio conceito de arte urbana.

“O termo arte urbana aqui entendido pela Porto Lazer é mais lato do que a pintura mural, estou a falar de performance, estou a falar de instalação, uma interdisciplinaridade que queremos também trazer e que contemporaneamente é impossível fugir”, explica Cláudia Melo.

Já o artista Godmess acredita que apesar de arte urbana ser hoje em dia algo mais amplo, não se pode “misturar alhos com bugalhos” e acredita que “é um erro continuar a tratar a arte urbana como um divertimento, como uma questão de lazer”, e não ser a autarquia a deter a condução do programa.

“As peças de arte urbana têm o seu tempo”

Não menos controversas são as opiniões em relação à efemeridade, apontada em discurso oficial da autarquia como uma característica inata da arte urbana.

Por estarem expostas na rua, as peças de arte urbana estão sujeitas à inevitável evolução da cidade e consequente degradação, facto do qual os artistas não discordam. Mas a efemeridade premeditada, associada a projetos como o mural da Restauração — convocatória aberta da Porto Lazer que dá oportunidade aos artistas de fazerem intervenções na parede, com duração de um ano — em que se apagam trabalhos para que outros possam pintar por cima, é o que causa mais indignação.

Hazul, o artista sem rosto que embeleza os recantos da cidade com formas ondulantes lembra: “Quando fizemos o mural da Trindade, no dia anterior levantou-se a questão de o mural possivelmente ir ser temporário e automaticamente, eu e o Dheo dissemos que não íamos pintar aquilo, não ia haver mural para ninguém. Não havia um único mural na cidade e o primeiro que iam fazer ia ser temporário porquê?”.

“Em termos de estratégia e em termos de metodologia aquilo que está assente é que a Porto Lazer promove o programa de arte urbana e o pelouro da Cultura promove o programa de arte pública. A diferença aqui baseia-se em duas ações, que é na efemeridade ou na permanência das peças. Arte pública são peças que ficam permanentemente na cidade, as peças de arte urbana têm o seu tempo, têm a constância dos projetos também nos quais estão integradas, umas mais permanentes que outras”, explica Cláudia Melo.

“Não há espaço para experimentação”

A principal falha que os artistas apontam é a falta de paredes legalizadas, paredes que sejam permanentes, ou até paredes de experimentação, que não condicionem a criatividade.

Ana Castro, fundadora da Circus, uma organização sediada no Porto que tem o objetivo de promover a arte portuguesa, diz que “está a faltar na cidade paredes abertas onde os artistas possam experimentar e crescer e desenvolver o seu próprio estilo”, necessidade à qual o mural da Restauração — por estar sujeito a uma convocatória aberta e os trabalhos serem selecionados por um júri — não responde. “Há sempre alguém a filtrar as propostas de trabalho, o que condiciona a criatividade dos artistas”, esclarece.

“O mural da Restauração surgiu precisamente para os artistas pintarem, ainda que tenham de submeter um esboço e uma pequena memória descritiva, penso que isso garante também alguma qualidade  e que quem efetivamente intervenciona sejam artistas e não que chegue  uma pessoa qualquer”, explica Cláudia Melo. “Talvez haja tempo para isso: paredes livres na cidade para quem quiser poder intervencionar nelas, mas não as temos, temos para já esta parede”, declara ainda a representante da Porto Lazer.

A Circus, que em 2014 organizou o festival Push, no qual contou com o apoio da câmara municipal, nomeadamente no licenciamento de paredes para os cerca de cinco murais que foram pintados pela cidade, também acha que depois do boom inicial do programa, o projeto ficou aquém do esperado e admite que: “Após isso, já tentámos pintar alguns murais, dos quais pedimos autorização à câmara. mas que entretanto não aconteceram por falta de autorização”.

A organização não descarta a importância de iniciativas como o mural da Restauração, que abrem portas a novos artistas, mas acredita é que é preciso fazer mais.

Também Hazul partilha desta opinião, e acrescenta que é preciso também haver iniciativas para os artistas que “já têm nome”, carreira e que “querem viver disto”. “Os concursos públicos devem existir dentro de um contexto mais alargado, em que haja paredes legais e trabalhos contratados a um artista específicos”, propõe o writer portuense.

Mural da Trindade, por Hazul. Foto: Hazul/Facebook

“Eu não tenho que ir lá fora 50 vezes para ter reconhecimento cá, é ridículo”

São já vários os artistas que deixam o seu imprint além mar. São convidados para pintar nos quatro cantos do mundo, mas não acham que o reconhecimento que arrecadaram internacionalmente se reflete na cidade que os viu dar os primeiros passos no street art.

Num meio pequeno e de poucas oportunidades, muitas vezes acabam por se sujeitar às condicionantes, para poderem ter obra na sua cidade, ou continuam a pintar ilegalmente. Outra fonte de indignação entre a comunidade de street art é a inexistência de valores adaptados, não só ao tipo de trabalhos, como à experiência do writer.

“Um artista já com vários anos não vai querer receber pouco para pintar uma coisinha, quer dizer é normal que um artista que já pinte há alguns anos e está habituado a ser pago de uma forma regular, não se vá sujeitar a concursos organizados pela câmara com valores muito pequenos”, defende Hazul.

Mas a Porto Lazer lembra que: “Os artistas queriam parede e nós ‘ok, vamos dar parede, mas vamos ajudar de alguma forma e contribuir com uma pequena verba para fazerem as pinturas’ e isso está expresso no regulamento [das convocatórias abertas]. Quem quer concorre, quem não quer não concorre, as regras são claríssimas. Fazemos convites diretos, em que há orçamentação do trabalho diretamente com o artista e vemos a exequibilidade”.

“Já me deixaram ficar o boneco e limparam a assinatura”

A limpeza de graffitis mantidos pela autarquia e os critérios de seleção dos mesmos, são vistos pelos artistas como algo pouco, ou nada, coeso.

Sentem falta de credibilidade e coerência na política de seleção dos trabalhos, que são apagados ou mantidos nas ruas.  “Não sei qual é o processo de seleção, já me deixaram ficar o boneco e limparam a assinatura, já aconteceu mais do que duas vezes, é um bocadinho desrespeito pelo trabalho. Quero passar um bocadinho a minha marca, o meu nome, a minha assinatura é a minha marca, é o meu nome. Eu tenho um estilo próprio, mas convém estar assinado”, explica Mesk.

Para Godmess, a memória coletiva de determinados espaços não tem sido respeitada, e afirma que a limpeza e a escolha “não tem sido feita de forma consciente”.

“Basta olhar para o lado”

Onde há discussão, há espaço para sugestões, e para Godmess, o mais fácil e lógico a fazer é “só olhar para o lado”, para o que se faz lá fora e até cá dentro, em Lisboa.

“A Câmara de Lisboa — que faz logo aqui uma diferença descomunal para o Porto — tem um próprio departamento, que é a GAU, a galeria de arte urbana, que trata de todos estes assuntos dedicados à arte urbana. Aqui tem de haver um departamento capaz de tomar decisões e que tenha um planeamento mais ritmado, com mais coisas, que se faça um planeamento a longo prazo e que eu acho que é uma coisa fácil. É só olhar para o lado”, defende o artista portuense.

Mr. Dheo acredita que a solução está no diálogo, entre os artistas e o munícipio, já Hazul diz que diálogo não falta e que o problema não está na comunicação, mas sim na falta de ação e resposta às propostas e sugestões dos artistas.

“O problema é esse é que a câmara tem um programa, tem uma posição em relação ao assunto, tem um discurso, que na pratica não se concretiza. Só falta essa parte, falta pouco, só um bocadinho”, acredita o writer. E propõe: “É fazer coisas. Não é nada complicado, é comprar material, pagar ao artista e alugar uma grua. Consoante o dinheiro que [a Porto Lazer] tiver disponível, gere ao longo do ano, se quer fazer separado, tudo junto, muitos, poucos, mas pelo menos que faça qualquer coisa”.

“Um debate é quando há duas partes”

Para a Câmara Municipal do Porto não é só o município que tem a responsabilidade na promoção da arte pública e urbana. Cabe também a instituições privadas a organização de iniciativas. “Não tem de ser só o município a promover concursos ou convocatórias abertas, nós começamos a abrir um caminho, agora também as outras pessoas da cidade podem promover coisas do género”, defende Cláudia Melo.

“É salutar que as entidades privadas promovam também elas próprias este tipo de situações”, afirma a representante da Porto Lazer, a propósito do colóquio de apresentação da 3ª edição do VIArtes, — concurso promovido pela  Sonae Sierra para intervenção artística na fachada do ViaCatarina Shopping — que tinha como objetivo debater a dimensão política, institucional e criativa da arte em espaço público.

A sessão de 14 de março contou com a presença do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, o Secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado e o Secretário de Estado da Juventude e da Cultura, João Paulo Rebelo, num painel que representou a visão política sobre a arte. O painel artístico que se seguiu, do qual fazia parte o artista urbano Mr. Dheo, não teve todavia a presença das mesmas figuras institucionais.

“Fui porque achava justamente que iria acontecer aquilo que não aconteceu, que iria ser uma oportunidade para o debate. ‘Pode ser que façam as perguntas certas, que eu tenha oportunidade de dizer o que penso e que do outro lado me ouçam’, o que não aconteceu”, explica o artista para justificar a sua presença no painel. “Um debate acontece quando há duas partes. O público presenciou a primeira parte deles, depois a nossa segunda, mas esse debate entre primeiro e segundo painel não existiu”.

A Porto Lazer também esteve presente no evento, mas ausentou-se antes da intervenção do painel artístico.

Mr. Dheo acredita que enquanto o debate for “adiado” não vão ser feitos avanços no panorama da arte urbana na Invicta: “Nós temos o conhecimento de rua, nós somos a parte ativa do movimento street art e a parte que não está ativa, que é o outro lado, nem sempre tem o conhecimento de como as coisas se fazem realmente, de como os artistas se comportam, do que os artistas precisam e sem esse diálogo direto dificilmente se vão fazer as coisas como deveriam ser feitas”.

Artigo editado por Rita Neves Costa