Junho de 2017, domingo à noite. Como em qualquer altura do ano, há mil e uma tentações na Praça José Régio. São as esplanadas vibrantes, as amizades criadas à volta da escultura do ensaísta do “Cântico Negro”. Por estes dias acresce a simples brisa que precipita os tempos de verão. Mas não é tudo. Para alguma parte do povo vila-condense, valores mais altos se levantam nesta altura. Nem a praceta fica indiferente.

Ao fundo, por baixo da Galeria de Arte Cinemática, escondem-se duas salas envidraçadas e esbranquiçadas pela luz artificial. À vista desarmada poderia parecer uma mera sala experimental adjacente ao Solar de São Roque. Os passos na direção de um dos cubículos vão desvendando mistérios, pessoas e tonalidades.

Lá dentro, o chão está coberto de flores. O cartaz pregado no vitral não engana: começaram os preparativos para o grande dia. A procissão dos tapetes de flores, tradição que remonta a 1264 e pauta-se por ciclos de quatro anos. Talvez por isso ninguém fale de outra coisa na vila. Exato, mesmo das tradicionais festas do São João que caminham a passos largos.

Em traços gerais, no dia do Corpo de Deus, este ano celebrado a 15 de junho, o núcleo antigo de Vila do Conde fica tingido de coloridos padronizados e dedicação bairrista. Desengane-se quem pensa que o trabalho se faz da noite para o dia. São semanas e semanas de muito desgaste. E tal como na Praça José Régio, desfolhar flores vira modo de vida em casas particulares e centros comunitários.

Elisa Baptista que o diga. Podia estar em casa a descansar, que os 83 anos não conferem margem para grandes aventuras. Mas está cá há quinze dias. Faz questão em ajudar. E recusa perder o ritmo fundado aos sete anos. “Já faço isto desde criança. Uns vêm de manhã, outros vêm à noite. Enquanto venho, distraio-me. De vez em quando até mandam uma anedota e a gente ri-se”, aponta ao JPN.

Folha a folha, enchem-se caixas de papelão. Umas sobrepõem-se a outras, carregando espécies diferenciadas. Abunda o funcho, herbáceas cultivadas em regiões temperadas e subtropicais. Segue-se o lenhoso e arbustivo bucho, antes de abrir espaço aos fulvos pampilhos. Não tarda muito, chegam as rosas, as hortênsias e as granjas. São as últimas a serem despidas, antes de serem conservadas em arcas frigoríficas que mantenham temperaturas reguladas. Todas, sem exceção, têm como destino final a vereda do Cais das Lavandeiras. O local mais próximo do Rio Ave por onde a manifestação religiosa deixa rasto.

“Seria bonito se isto fosse feito todos os anos”

Para outros, a arte da desfolhada é uma novidade. Alice veio ao mundo no ano da última edição dos tapetes de flores. Entre muita energia e alguma ingenuidade, a menina garante estar à altura do desafio. Na verdade, desbulha granjas como quem aperta atacadores. Pelo caminho, respira fundo e anda pela sala a cantarolar. O sono, esse fiel obstáculo, não pega, apesar de já passar da meia-noite e amanhã ser dia de aulas.

A energia de Alice é uma exceção aos olhos de Maria de Fátima. Para a senhora de 76 anos, a tradição dos Tapetes de Flores vai murchar. “Os jovens não mostram iniciativa”, lamenta. Mais otimista está Maria José Flores, ao considerar que os mais novos vão sair seduzidos pelo trabalho dos antepassados. “Vão-lhes pegar o bichinho”, assegura.

Aliás, a vila-condense de 61 anos aparece para fazer jus ao apelido e dar uma mãozinha na desfolhada. “Ajuda a aliviar o stress. Se a festa se repetisse para o ano, estaria cá outra vez. Adoro isto. A maior técnica é a paixão”, revela. Pelo trabalho e pela cidade de Vila do Conde. Um misto de fé e bairrismo, mesmo se a falta de apoio municipal é comum à maioria dos moradores. “Seria bonito se isto fosse feito todos os anos. Mas a câmara não ajuda e a gente não pode suportar uma despesa tão grande. O que nos vale são as pessoas que vêm ajudar. Trazem sempre qualquer coisa”, constata Elisa. Arranjar as flores, por exemplo, é uma tarefa espinhosa. “Pedem-se, roubam-se, faz-se de tudo”, explica Maria de Fátima.

Sousa Lopes sublinha que muitas flores foram compradas por iniciativa própria, sem qualquer financiamento camarário. “Os campos à entrada da cidade desapareceram. Os jardins das casas, onde se apanhavam as flores, foram trocadas por tijoleiras. Agora há flores no sítio delas, nas estufas. E é preciso comprá-las. Antes até dizia que alguém tinha de assumir a responsabilidade de pagar as flores, mas chamavam-me de ‘tolinho’. Chegaram até a dizer-me que o Senhor não queria flores compradas no chão”, ironiza o responsável pelo desenho dos tapetes no Cais das Lavandeiras.

Uma azáfama urbana

O tempo avança e as preocupações aumentam. “O trabalho podia correr melhor. Esta foi a última rua a começar os trabalhos. Há poucas pessoas, que não conseguem fazer tudo sozinhas”, recorda Sousa Lopes, para depois elogiar a atitude do povo vila-condense. “Esta gente dá o corpo ao manifesto. Pagam do próprio bolso para estar aqui, mas ficam contentes por virem cá”, sublinha.

Seja como for, a desfolhada não quebra. A prudência aconselha a não abrandar o ritmo. Até porque todas as flores tratadas podem não chegar para cobrir a zona histórica da cidade. De resto, há pessoal dedicado apenas à conceção das formas. A tradição manda arquivar em segredo o desenhos dos tapetes até à véspera do Corpo de Deus. Nesse dia, ao início da noite, a arte sai finalmente à rua.

Se lá dentro selecionam-se as últimas pétalas, cá fora as autoridades começam a fechar caminhos ao trânsito. A partir de agora, a rua é dominada pelos cidadãos. Ao contrário do que sucede noutras paragens, no Cais das Lavandeiras não há formas nem padrões. O giz trata de moldar o desenho entre os paralelos da estrada, possibilitando que o trabalho se alargue em várias frentes.

Durante a madrugada os tapetes ganham forma. São pintados em tons de verde, amarelo, vermelho e branco, incluindo adereços ligados à religião e ao mar. Ao todo, ficam expostos cerca de três quilómetros de manto florescido. Nas bermas, um mar de gente vai rondando a composição dos tapetes, à procura do melhor ângulo fotográfico.

“As pessoas pensam que só se faz de quatro em quatro anos pelas dificuldades. Mas ainda não perceberam que fazer de ano a ano seria mais fácil. É preciso organização. Por outro lado, importa inovar, algo que só se faz se apresentarmos trabalhos com maior periodicidade”, defende Sousa Lopes, reforçando o tom das críticas. “Eu, como vila-condense, sinto-me envergonhado, por isto ser feito apenas de quatro em quatro anos. Este é o ex-libris da cidade. E aquilo que a terra tem de mais importante tem de ser dado todos os anos”, considera.

Contas feitas, o novo dia ilumina os resultados finais. A procissão é arrastada para o final da tarde, para que milhares de pessoas, nacionais ou estrangeiras, continuem a desfrutar de um acontecimento raro. Tão raro que em 2017 até teve honras estatais, com a presença especial de Marcelo Rebelo de Sousa.

Artigo editado por Filipa Silva