O filme Raiva, de Sérgio Tréfaut, estreou em Portugal a 31 de outubro, mas, este sábado, o realizador falou para uma sala cheia numa sessão especial que decorreu no Cinema Trindade. A conversa foi moderada por Vítor Ribeiro, programador do Close-Up (Observatório de Cinema de Famalicão).

Antes do filme ser exibido, Sérgio Tréfaut agradeceu o convite ao Cinema Trindade e fez uma breve apresentação sobre Raiva. O realizador contextualizou o tema ao público: referiu que o filme se inspirou no livro “Seara de Vento” e que retrata a realidade alentejana num momento histórico específico.

Raiva, inspirado na obra de Manuel da Fonseca, retrata o Alentejo dos anos 30 de uma forma fria e “seca”, mas que simultaneamente emociona. A segunda longa-metragem de ficção de Sérgio Tréfaut aborda a fome, a pobreza e a injustiça social. Tudo isto é personificado na família de António Palma (protagonista da história), cuja raiva está na origem da revolta perante a sociedade.

Raiva é uma coprodução de Portugal, Brasil e França. O filme foi realizado pela Faux (produtora criada por Sérgio Tréfaut), pela Refinaria Filmes, do Brasil, e por Les Films d’Ici, produtora francesa.

Estreou nas salas de cinema nacionais a 31 de outubro. No entanto, foi primeiramente apresentado no Festival Internacional de Cinema de Moscovo. Apesar de recente, o filme já arrecadou alguns prémios, tal como o prémio do público no Festival Transfronteira Periferias (Portugal-Espanha).

A universalidade da trama

Tréfaut, documentarista aclamado e mais recente ficcionista, evidencia os traços de uma sociedade marcada pelo abuso social perpetrado pelos grandes proprietários de terras. Em plena ditadura, Portugal e o Alentejo, são a imagem da pobreza extrema, silêncio e opressão.

Contudo, o realizador de origem brasileira há vários anos a residir em Portugal afirma que o filme não se restringe apenas ao Alentejo. Em entrevista ao JPN, à margem da sessão de sábado, Tréfaut refere que “a história é uma realidade comum a lugares totalmente diferentes”. Apesar de mostrar Portugal e a região alentejana, “queria que o filme tivesse uma leitura internacional da mesma realidade”, explicou.

A temática do abuso do poder é, em Raiva, personificada pelo constante confronto entre os opressores – latifundiários – e os oprimidos – classe baixa. Segundo o realizador, “no tempo contemporâneo, o abuso de poder continua a existir, mas manifesta-se de forma diferente”.  É este mesmo conceito que confere intemporalidade à longa-metragem.

A perceção de quem já viu o filme, não é alheia à sua universalidade. De acordo com o cineasta, no Alentejo, as pessoas têm uma opinião muito própria, tendo em conta a ligação próxima à realidade. Mas Sérgio Tréfaut explica que “o mesmo acontece em lugares onde há pobreza ou precariedade. Isto faz com que as pessoas se identifiquem com o abuso perpetrado sobre quem não tem nada”.

Filme teve sessão especial no Cinema Trindade

Filme teve sessão especial no Cinema Trindade Foto: Mara Tribuna

Não-atores e a homenagem a Nicolau Breyner

Raiva conta com a participação de atores como Isabel Ruth, Leonor Silveira, Diogo Dória e Adriano Luz. Mas além dos vários atores consagrados que integram o filme, há “não-atores”, pessoas sem experiência na representação. Na verdade, a personagem principal, António Palma, é interpretada por um “não-ator”: Hugo Bentes. “Eu sabia que o Hugo era Palma e, a partir daí, fui em frente”, afirmou o realizador.

Para Sérgio Tréfaut, foi importante incluir pessoas mais sensíveis e familiarizadas com o tema e com a região, ainda que nunca tivessem representado antes. O documentarista explica que a escolha dos atores e das personagens parte de uma relação pessoal que estabelece: “Escolho as pessoas, dou-lhes o texto, converso com elas e, pouco a pouco, as coisas constroem-se. É preciso ter muita fé.”

Há, no filme, um destaque para a participação de Lia Gama: o seu papel ia ser interpretado por Nicolau Breyner, que acabou por falecer na véspera das filmagens. Tal como o realizador explica: “Ela tinha apenas um pequeno papel, o de mulher dele, e acabou por fazer uma homenagem ao Nicolau através da sua interpretação”.

A ligação ao Alentejo

Sérgio Tréfaut é filho de pai alentejano e mãe francesa. Nasceu em São Paulo, no Brasil, anos mais tarde foi para França e depois para Portugal. A forte ligação com o Alentejo provém do seu pai. Na verdade, este é o seu segundo filme sobre a realidade alentejana, depois de “Alentejo, Alentejo”.

A coprodução do filme – Portugal, Brasil e França – não é indiferente ao seu percurso de vida. O realizador afirma que “todas as pessoas fazem mais facilmente aquilo que tem a ver com a história delas”.

Sérgio Tréfaut diz ainda que as suas escolhas enquanto realizador de Raiva partiram “de uma vontade muito grande de respeitar as pessoas para as quais esta história é importante no Alentejo”.

A fotografia de Acácio Almeida, a preto-e-branco, é uma homenagem ao antigo cinema mudo e uma escolha justificada pelo realizador: “Não queria fazer nada de folclórico ou de regionalista. Se eu tivesse utilizado fotografia a cores podia até parecer-se com uma publicidade ao Azeite Galo”.

A relação entre o livro e o filme

Apesar do filme ser inspirado no livro de Manuel da Fonseca, denotam-se algumas diferenças entre “Seara de Vento” e Raiva, tal como o próprio título. Na conversa com o público na sessão especial do Cinema Trindade, Sérgio Tréfaut explica que raiva era o sentimento que prevalecia durante toda a obra, daí ser escolhido para título.

Além disso, a sequência de acontecimentos é igualmente diferente. Em “Seara de Vento”, há uma linearidade e uma ordem cronológica dos eventos; já em Raiva, o fim é logo apresentado no início. O realizador explica que “o objetivo é que o espetador tente adivinhar o motivo do final dramático, no decorrer do filme”.

“Um homem só não vale nada” é a moral expressa no livro, após o que acontece ao protagonista da história. Segundo Sérgio Tréfaut, “transmite a ideia de que o esforço individual é penalizado e que o esforço coletivo pode levar a um futuro melhor”. A conclusão do filme é ligeiramente diferente: esta moral não é explícita, mas o que acontece à personagem é igual. O documentarista explica que o comportamento da personagem é o mesmo: “Fui completamente fiel a Manuel da Fonseca no que toca ao retrato da sociedade e da injustiça”.

Raiva, filme de encerramento do festival Indie Lisboa deste ano, está em exibição em várias cidades do país. No Porto, pode ser visto no Cinema Trindade, Alameda Shop & Stop e UCI Arrábida.

Artigo editado por Filipa Silva