O Tribunal Arbitral do Desporto (TAS, sigla francesa) rejeitou, na última semana, o recurso apresentado por Caster Semenya, a atleta de meio fundo sul-africana que contesta a imposição de um novo limite de testosterona estabelecido pela Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF, sigla inglesa) em novembro último.

O painel do TAS considerou que a nova regulamentação para as Desordens de Diferenciação Sexual (DSD, sigla inglesa) são “discriminatórias”, mas “necessárias, razoáveis e proporcionais” para atingir uma competição justa no atletismo feminino.

Em causa, está o limite de cinco nanomoles por litro imposto pela IAAF em relação aos níveis de testosterona nas atletas que pretendam participar em provas internacionais dos 400 metros, 400 metros barreiras, 800 metros e 1.500 metros. Até aqui, o limite situa-se nos dez nanomoles.

Caster Semenya sofre de hiperandrogenismo, uma condição encontrada nas mulheres que se caracteriza pela produção excessiva de hormonas, entre as quais a testosterona.

Para poderem competir, as atletas com valores superiores são obrigadas a diminuir os níveis de testosterona e a mantê-los abaixo do limite, durante um período de pelo menos seis meses antes da competição.

Assim, ao que tudo indica, a atleta de 28 anos, bicampeã olímpica nos 800 metros, correu pela última vez pelas regras antigas esta sexta-feira em Doha, em mais uma etapa da Liga Diamante. Semenya foi, como era esperado, a mais rápida na distância e atrás de si ficaram duas atletas que poderão enfrentar o mesmo problema: a burundiana Francine Niyonsaba, que foi segunda, e a queniana Margaret Wambui, que acabou a prova no sexto lugar.

As atletas têm de apresentar exames com valores abaixo das cinco nanomoles por litro até ao dia 8 de maio para poderem competir nos próximos Mundiais de Atletismo de Doha, que começam em finais de setembro. Semenya tem o título nos 800 metros para defender. Já o venceu por três vezes, a última das quais em Londres, 2017.

A atleta pode ainda recorrer da decisão do TAS para o Tribunal Federal Suíço no prazo de 30 dias depois de conhecida a sentença, mas ainda não esclareceu se o vai fazer. Mostrou-se sim em bom nível e com boa disposição no Qatar, onde afirmou ao britânico “The Guardian”: “Eu quero inspirar o mundo. Nada é impossível”.

Decisão histórica divide opiniões

Luís Lopes, especialista em atletismo, confessou ao JPN estar surpreendido com o veredicto do TAS de proibir Caster Semenya de competir sem regular os níveis de testosterona, mas entende que foi “uma boa decisão”. O comentador da RTP considera a proposta da IAAF “equilibrada” e que o resultado contrário “seria o fim do atletismo”, abrindo a porta para muitos casos futuros.

Luís Lopes refere também os casos de Francine Niyonsaba e de Margaret Wambui, que subiram, como Semenya, ao pódio nos Jogos Olímpicos do Rio 2016 (a burundiana foi também prata nos Mundiais de Londres no ano seguinte). Para o comentador, as atletas devem também ver-se obrigadas a regular os seus valores de testosterona. Margaret Wambui, com 1,85 metros, “é maior que todos os homens da equipa queniana, com a exceção de David Rudisha”, num país em que as atletas são “normalmente baixas”, e Francine Niyonsaba tem um desenvolvimento muscular “anormal”, na opinião do especialista.

Quanto à hipótese de Semenya passar a correr distâncias acima dos 1.500 metros, Luís Lopes admite que é possível. Falta saber se a atleta sul-africana “será competitiva a esse nível”, uma vez que, em distâncias maiores, o nível de testosterona não cria uma vantagem em relação às restantes atletas.

José Augusto Rodrigues dos Santos, coordenador do gabinete de Atletismo da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP), diz que a questão “não é assim tão clara”: alguns estudos mostram que a ingestão de esteróides anabolizantes (que replicam a ação da testosterona) têm um efeito potenciador no rendimento de maratonistas.

José Augusto Rodrigues dos Santos explica que a testosterona nas mulheres, por ser sempre “inferior aos valores verificados nos homens”, potencia mais a capacidade atlética, através de “ganhos de força e potência” que não se evidenciam de uma forma tão acentuada no caso masculino.

Apesar de considerar fundamental a verificação hormonal através do passaporte biológico, até porque “as mulheres, desde a puberdade, podem sofrer muitas alterações naturais”, o professor jubilado alerta para o facto de a situação ser mais complicada do que parece. “[A Caster Semenya] tem um perfil hormonal complexo que não torna a competição justa”, reconhece José Augusto Rodrigues dos Santos, mas impedir que corra pode ser um erro.

Uma questão que vai além do desporto

O paralelismo feito entre o caso de Caster Semenya e Michael Phelps, pelas características físicas fora do comum do nadador, é um dos argumentos utilizados pelos apoiantes da atleta. O coordenador do gabinete de Atletismo da FADEUP reconhece que, para se ser rigoroso face à decisão do IAAF, “teria de se punir” o nadador norte-americano por ser fora do que é considerada “a normalidade”. “Estaríamos a entrar pelo caminho da eugenia”, adverte o docente.

No caso de Caster Semenya, diferente por ser em termos hormonais, José Augusto Rodrigues dos Santos admite que proibir a participação da atleta também pode ser “cair no erro do segregacionismo” em relação a anomalias genéticas: “Não queremos sociedades monolíticas, estereotipadas, reduzidas a um padrão. Queremos a mistura de pessoas e de culturas, porque é daí que nasce a diversidade e a riqueza humana.”

Aceitar casos como o da atleta sul-africana é um passo nesse sentido. “Tem de ser essa a perspetiva a guiar-nos, e aí assumimos todos estes desvios genéticos que criam casos raros. Na alta competição a regra é o mais e o absoluto, consideremos estes casos como naturais, também”, concluiu o docente da FADEUP.

No seguimento do anúncio da decisão do TAS, a sul-africana recebeu o apoio de vários atletas como a do compatriota, campeão olímpico e recordista mundial dos 400 metros, Wayde Van Niekerk ou de uma antiga adversária, Madeleine Pape, da Austrália, que na edição online do “Guardian” explicou por que motivo mudou de opinião em relação a Caster Semenya.

Artigo editado por Filipa Silva