Às 21h00 desta sexta-feira, o lotado Auditório da Casa Serralves, no Porto, ficou, por instantes, em silêncio. Dele irrompeu Fred Moten com a declamação de um poema, num vídeo projetado antes do início da sessão. Um momento forte – outros excertos da obra do poeta e académico norte-americano antecederam o início de outras sessões do Forum do Futuro -, que assim revelava a temática que seria abordada naquela noite: a negritude, ou “blackness“, na expressão inglesa.

No ano em que se comemoram os quinhentos anos da primeira viagem de circum-navegação realizada por Fernão de Magalhães, o Fórum do Futuro dedicou o seu programa de debates e performances ao tema “Crossings/Travessias“, propondo-se, nas palavras da organização, a “problematizar processos de ocupação cultural e territorial”, do passado e do presente.

A sessão de Arthur Jafa decorreu em Serralves.

A sessão de Arthur Jafa decorreu em Serralves. Foto: Giorgia Paladini

Em Serralves, esta sexta-feira, falou-se sobre “Poder, beleza e alienação”. O convidado foi Arthur Jafa, uma referência da cultura contemporânea norte-americana, acompanhado por Philippe Vergne, o diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serralves a quem coube apresentar o debate: “Não é justo estar a falar depois de Fred Moten”, comentou Vergne com humor.

Arthur Jafa e a tradução de sua arte

Vergne, que se referiu a Arthur Jafa como pensador, escritor, editor, colecionador e arquiteto de tendências, esmiuçou a arte cinematográfica do norte-americano: “Jafa vem até nós com tesouras”, começou por explicar Vergne. “O corte é uma interrupção de homogeneidade” e “quando um corta, ele desmembra”: é “o desmembramento da comunidade negra”. “Ele corta pelas imagens como outros cortam da carne”, diz ainda para concluir que ”Jafa mostra a pele negra sobre a tela branca.”

O artista audiovisual, nascido no Mississipi nos EUA, tem 59 anos de idade. Destes, mais de 30 são dedicados à cinematografia. No seu currículo, tem trabalhos ao lado de personalidades da cultura pop negra como Beyoncé, Solange e Jay-Z, além de ter colaborado com grandes nomes do cinema como Stanley Kubrick e Spike Lee. Na Bienal de Veneza deste ano, Jafa foi premiado com o Leão de Ouro pelo filme “The White Album” (“O Álbum Branco”, em tradução livre) que retrata o racismo e a violência de forma explícita por meio de recortes audiovisuais brilhantemente arranjados.

O olhar sobre a própria obra

Quando convidado para subir ao palco, Arthur Jafa sentou-se na poltrona e, ao digitar a palavra-passe do computador que tinha ao seu lado, ouviu-se a tocar uma música de Frank Ocean. “Eu sou fã das músicas de Frank Ocean“, disse, para riso da audiência, que acompanha o desenrolar da conversa bem-humorada.

Jafa sublinhou que as suas obras não seguem um processo metódico de criação: “Eu não estou a tentar dizer nada, eu só estou dizendo. As pessoas supervalorizam o dizer“. Fala também sobre a maneira como coleciona os elementos dos seus trabalhos e os armazena como “arquivos numa playlist” onde cada um “coloca aquilo que quer ouvir“, além do modo como monta, que não passa só por “colocar as coisas juntas”.

Após mostrar o filme “Love Is A Message” à audiência – cuja emocionante trilha sonora deve-se à “Ultralight Beam” de Kanye West -,  os comentários de Jafa continuam a seguir a mesma linha.

O artista comenta que para criar ele não exagera e que não está sempre ciente de que as coisas se vão encaixar com um determinado sentido. “Não é muito sobre semântica ou semiótica, as coisas só fluem. (…) Quando vocês veem LeBron James ou Michael Jordan afundarem a bola, eles não planearam aquilo meticulosamente”, comparou.

“Nós prosperamos nas piores das circunstâncias”

“A música negra é a merda mais porreira do mundo”, exclamou Arthur Jafa quando Vergne o questionou sobre a relação entre a música negra e a tentativa de criação de um cinema negro.  O criador expressa, aliás, a sua insatisfação com o cinema atual e com o padrão de Hollywood que na sua visão está “preso numa visão branca”.

Entretanto, Jafa ainda opina sobre a questão de os seus trabalhos serem percebidos como ímpares e peculiares: “quando se sai da norma, aumenta a estranheza. E as pessoas negras já estão fora da normatividade”.

Intercalando as falas com algumas de suas obras transmitidas no ecrã do auditório, o convidado transitou entre os comentários críticos sobre os significados da sua obra e uns passos de dança animados, ao som das bandas sonoras dos seus filmes. Um deles mostra uma performance musical da mãe de Whitney Houston; outro, um homem a dançar divertidamente sobre botas de tacão.

Jafa falou sobre a importância de compreender a negritude: “é o emblema da abjeção e também da abundância de vida. A negritude deveria importar a toda a gente”, disse. “Nós também somos seres humanos”, enfatizou para concluir: “Nós prosperamos nas piores das circunstâncias”. Ao ser questionado por Philippe Vergne sobre as imagens do Sol que aparecem com frequência nos seus filmes, Jafa explica que “o Sol é um símbolo para se olhar para as vidas negras como se olha para cima. Ver o Sol pairar no breu e permanecer nesta mesma relação, quase que cósmica”.

Arthur Jafa considerou ainda que negritude não é sinónimo de supremacia negra, mantendo a sua visão altamente crítica da supremacia branca, que esteve em foco no último vídeo a ser transmitido na sessão.

Artigo editado por Filipa Silva