Falta de investimento em programas de apoio social, desemprego, crise habitacional e um sistema fiscal deficiente são alguns dos problemas-chave, vividos em Espanha, observados por Philip Alston, relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para a pobreza extrema e direitos humanos, durante a visita a várias comunidades autónomas de Espanha, que terminou no passado dia 07 de fevereiro.

O país é recordista pelos piores motivos: há dois anos, 26,1% da população estava em risco de pobreza ou exclusão social, das taxas mais altas na Europa. Já a taxa de desemprego é mais do dobro da da União Europeia, 13,78%. O valor torna-se ainda mais gritante entre os jovens com menos de 25 anos e atinge os 30,51%.

Recuperação da crise não é para todos

A recuperação dos últimos anos caracterizou-se pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) – com as exportações, os níveis de emprego e o salário médio a subir -, mas esta recuperação é na prática pouco sentida por grande parte da população. Segundo a mesma fonte, o país “deixou para trás” os cidadãos mais vulneráveis, sendo dentre os estados-membro da União Europeia (UE) um dos que menos investe em medidas de inclusão social, como por exemplo subsídios a famílias ou a pessoas com incapacidade e apoios à habitação.

Se antes da crise económica o país estava relativamente imune às desigualdades sociais, estas acentuaram-se depois de 2010 com os lucros dos mais ricos a disparar graças à desregulação económica e redução de impostos. Jonás Candalija, da European Anti-Poverty Network (EAPN) Espanha, explica ao JPN que, enquanto que para as pessoas em melhor situação económica a recuperação da crise demorou cerca de dois anos, as pessoas em risco de pobreza continuam nessa situação quase dez anos depois.

“As medidas que deveriam corrigir esta brecha não estão a funcionar, a educação não serviu de elevador social e as classes altas reforçaram a sua posição. Só através de medidas de redistribuição da riqueza se poderá começar a reverter esta situação de polaridade social”, lembra.

 “Direitos sociais e económicos não são levados a sério”

Para Philip Alston, existe em Espanha uma cultura generalizada de complacência e de “apontar culpas a outros”. O relator da ONU diz que os direitos sociais e económicos raramente são levados a sério e que os principais problemas que assolam a população espanhola são reconhecidos mas pouco é feito para os combater.

A subida descontrolada das rendas e a privatização de terrenos conduzem a despejos cada vez mais frequentes, mas a habitação social é quase inexistente. Também a pobreza energética é um problema, com quase 10% da população a não conseguir manter a casa a uma temperatura adequada.

Estima-se que entre 3,5 a 8,1 milhões de pessoas em Espanha sejam afetadas pela pobreza energética e os apoios sociais para combater este problema não são eficazes. As novas regras para usufruir desses apoios, que entraram em vigor no ano passado, reduziram o número de beneficiários para menos de metade: em 2017, 2,3 milhões de pessoas usufruiam desse apoio, enquanto que atualmente o número se situa nos 1,1 milhões de pessoas apoiadas.

Alston encontrou, durante a visita, cidadãos isolados em bairros de lata de “pobreza concentrada”, muitos com “condições piores do que em campos de refugiados”, onde não sabem se uma ambulância chega e onde até a polícia se recusa a entrar. Pelas ruas não pavimentadas escasseiam ou não passam os transportes públicos, não há água corrente, eletricidade ou saneamento. Não existem infraestruturas como centros de saúde, escolas, centros de emprego ou creches.

A Espanha é líder da UE em abandono escolar (17,9%). A segregação também se faz sentir nas escolas, com estabelecimentos, sobretudo nas regiões mais pobres, onde a esmagadora maioria dos alunos é proveniente de meios desfavorecidos, migrantes ou da comunidade cigana.

Burocracia excessiva dificulta ajudas

O relatório fala num sistema mal desenhado que não serve as pessoas que dele precisam e que descarrega as responsabilidades num terceiro setor já por si só sobrecarregado. De acordo com a Caritas, a maioria dos 1,8 milhões de pessoas que viviam em pobreza extrema em Espanha não usufruíam de mecanismos de proteção social.

Alston aponta como grande motivo de exclusão a burocracia excessiva do sistema de assistência social. Muitas pessoas não conseguem registar-se para obter apoios sociais, já que muitas vezes as suas condições não o permitem: podem estar sem abrigo, em alojamento temporário ou incapazes de aceder a documentos altamente específicos que lhes são exigidos.

A exclusão digital é também um problema: a incapacidade de aceder a serviços de internet (com preços proibitivos em algumas zonas do país) impossibilita o processo de apoio social, cada vez mais digitalizado. Existem longos tempos de espera por uma ajuda que é insuficiente e incompatível com trabalhos temporários ou em tempo parcial, os únicos a que muitas vezes a população consegue aceder.

Crianças, migrantes e população rural em maior risco

As camadas da sociedade com níveis de educação inferiores estão mais vulneráveis à pobreza, embora uma parte significativa da população em risco de pobreza tenha um nível de formação médio ou alto (secundário ou ensino superior) e trabalho. Contudo, este trabalho é frequentemente precário, com baixo salário, apenas em regime de tempo parcial ou temporário, e não garante a satisfação de necessidades básicas. Espanha é o terceiro país da UE com mais trabalhadores pobres (13%), apenas superado pela Grécia e Roménia.

A pobreza infantil é das mais altas na Europa (29,5%). Espanha é dos poucos países da União Europeia sem um programa de apoio a famílias universal e incondicional, com quase metade das crianças pobres sem acesso ao apoio (que é de cerca de 28 euros por mês).

Os cerca de seis milhões de migrantes em Espanha enfrentam o mesmo problema, embora os cidadãos da UE encontrem menos dificuldades do que os que provêm de fora. O acesso a habitação, já reduzido, é dificultado pela discriminação. Os migrantes estão também mais vulneráveis a situações de exploração laboral e sexual e violência institucional, sobretudo a população feminina. A comunidade cigana, uma das maiores da UE, também é apontada como particularmente vulnerável, com 80% em risco de pobreza ou exclusão social.

As zonas rurais estão cada vez mais desabitadas e deparam-se com um envelhecimento crescente (mais de um quarto da população tem 65 anos ou mais). Os frequentes cortes de energia e a incapacidade em aceder a serviços básicos de saúde ou de educação desencorajam os mais jovens de ali se estabelecerem.

Jonás Candalija aponta uma Espanha com desigualdades profundas, onde há uma linha clara a separar o norte e o sul. Enquanto o norte do país apresenta baixas taxas de pobreza e exclusão social, o sul caracteriza-se por taxas extremamente elevadas. O indicador AROPE – At risk of poverty or social exclusion -, que mede o risco de pobreza e exclusão social, é dos mais baixos em zonas como o País Basco ou Navarra – 12,1% e 12,6%, respetivamente -, contra 38,2% e 44,6% na Andaluzia e na Extremadura, que são das regiões mais atrasadas.

Candalija diz que a reversão deste cenário é uma responsabilidade tanto do governo como das comunidades autónomas. “Medidas como a introdução de um rendimento mínimo e a implementação da Estratégia Nacional de Prevenção e Luta Contra a Pobreza devem servir para reduzir estas desigualdades, mas é necessária a participação de todos os atores a nível estatal, autónomo e local.”

Novo governo pode marcar nova direção

Philip Alston vê o governo recentemente formado, preocupado com a justiça social e fiscal, como uma oportunidade de mudança. Mas apesar do recente aumento no salário mínimo e nos benefícios concedidos a famílias e crianças, os avanços efetivos são ainda pouco visíveis. O relator da ONU apela a uma mudança nas políticas fiscais de forma a eliminar a fraude – que aponta como um grande problema no país – e assegurar uma redistribuição adequada dos impostos.

Alston sugere também o estabelecimento de um rendimento mínimo nacional suficiente para fazer face ao custo de vida, capaz de abranger uma maior parte da população e seja compatível com o mercado laboral existente. O relator da ONU aponta ainda medidas como a simplificação da burocracia, a criação de melhores condições de trabalho e reformas a nível educativo.

Artigo editado por Filipa Silva.